quinta-feira, junho 03, 2021

Orson Welles
— assim nasceu o cinema moderno [3/3]

Com O Mundo a Seus Pés, depois do teatro e da rádio, Orson Welles estreou-se na realização de filmes: a sua visão, marcada pelo gosto da experimentação, mudou a arte de contar histórias em cinema — este texto foi publicado no Diário de Notícias, por ocasião do 80º aniversário da respectiva estreia (1 maio).
 
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Para Welles, a realização de O Mundo a Seus Pés foi também, num certo sentido, uma passagem do universo das palavras para a dinâmica das imagens. Se ele conseguiu concretizar um projecto tão ambicioso e “marginal” no interior de um grande estúdio, isso ficou a dever-se, em grande parte, à popularidade angariada com uma emissão de rádio que se tornou um fenómeno nacional: em 1938, a sua adaptação de A Guerra dos Mundos, de H. G. Wells, gerou verdadeiras cenas de pânico em ouvintes que acreditaram que o planeta Terra estava mesmo a ser invadido por marcianos.
A Guerra dos Mundos
foi um dos episódios de “The Mercury Theatre on the Air”, programa para a rádio CBS, derivação do labor que Welles ia desenvolvendo no Mercury Theatre, companhia independente, em Nova Iorque, que fundara em 1937 com o actor e produtor John Houseman. No essencial, o elenco de O Mundo a Seus Pés — Joseph Cotten, Agnes Moorehead, Everett Sloane, etc. — é constituído pelos seus actores, aliás devidamente identificados (“The Mercury Actors”) nos cartazes originais do filme.
Apesar de já há alguns anos não ser reposto nas salas de cinema de todo o mundo, o filme de Welles ressurgiu na actualidade graças a Mank, a realização de David Fincher, produzida e difundida pela Netflix, sobre o trabalho de Herman J. Mankiewicz (1897-1953) enquanto argumentista de O Mundo a Seus Pés. Através de um admirável golpe dramático, nele encontramos Mankiewicz (Gary Oldman) frente a frente com Hearst (Charles Dance), além da sua amante, a actriz Marion Davies (Amanda Seyfried) e o próprio Welles (Tom Burke).
O filme de Fincher relança a energia criativa, e também o gosto de experimentação, herdados da obra de Welles. E não deixa de envolver algum simbolismo o facto de Mank ter sido distinguido com um Oscar para a sua fotografia, da autoria de Erik Messerschmidt (o filme ganhou também na categoria de cenografia). As prodigiosas imagens a preto e branco assinadas por Messerschmidt constituem uma homenagem muito directa ao visual de O Mundo a Seus Pés, da responsabilidade de Gregg Toland (1904-1948). Na altura já “oscarizado” pelo seu trabalho na versão de 1939 de O Monte dos Vendavais, Toland viria a revelar-se decisivo na realização de Welles.
“É impossível dar conta de tudo o que devo a Gregg”, diz Welles no livro com Bogdanovich. Além de, na altura, ser “o operador nº 1 do mundo”, foi ele próprio que manifestou o desejo de “trabalhar com alguém que nunca tivesse feito um filme.” Welles recorda-o com tanto mais carinho quanto reconhece que, nos primeiros dias de rodagem, se assumiu como criador da iluminação das cenas… Demonstrando infinita paciência e disponibilidade, Toland disse-lhe, mais tarde, que trabalhar “com alguém que não sabe nada” (de fotografia) é uma boa maneira de “aprender alguma coisa”.
Toland soube potenciar a ousadia de experimentação de Welles, nomeadamente na composição das imagens e na exploração de uma grande profundidade de campo (com os objectos próximos e distantes igualmente focados) — e no modo como tudo isso abria fascinantes possibilidades à arte de contar histórias. A oito décadas de distância, a herança de tal experimentação é cristalina: há um “antes” e um “depois” de O Mundo a Seus Pés, como se Welles tivesse sido o derradeiro dos clássicos e o primeiro dos modernos.