quarta-feira, dezembro 30, 2020

O ano em que Godard
fez 90 anos [4/4]

Bérangère Allaux, Para Sempre Mozart (1996)

No dia 3 de dezembro, Jean-Luc Godard celebrou 90 anos. Do cinema clássico à sedução das novas tecnologias, a sua obra de mais de seis décadas evolui em paralelo com as convulsões das sociedades: ele é um experimentador e, à sua maneira, um observador crítico das histórias individuais e colectivas — este texto foi publicado no Diário de Notícias, com o título 'Godard, o louco'.

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No constante processo de inventariação e discussão de novas linguagens, Godard tem sido também um criador atento às transformações das bases técnicas do cinema. Ou melhor, do audiovisual. A par de cineastas como o sueco Ingmar Bergman (1918-2007) e o italiano Michelangelo Antonioni (1912-2007), foi mesmo pioneiro na utilização das novas câmaras de video. Exemplo fulcral é, em 1975, o filme Número Dois, retrato de uma família contemporânea, entre realismo e fábula, dando conta, em particular, de uma realidade cujo peso social e político, 45 anos depois, conhecemos bem: a crescente exposição do cidadão comum às mensagens televisivas. 
O cruzamento da memória do cinema com os novos recursos videográficos de tratamento e manipulação das imagens (e sons) teria a sua concretização nas História(s) do Cinema (1989-1999), objecto monumental de quatro horas e meia de duração (apresentado nas televisões, regra geral, em quatro episódios). O plural entre parêntesis sublinha o poder do cinema face ao tempo da sua gestação: fazer a história do cinema é também coleccionar as histórias que nele desembocam, ou dele emanam, a começar pelas memórias do Holocausto e de todos os traumas colectivos que pontuam o século XX (o “século do cinema”, precisamente). 
Dizer que Godard se coloca numa posição de vanguarda será, talvez, demasiado fácil. Vejam-se as suas experiências com o 3D, primeiro no filme colectivo 3x3D (2012) [trailer], depois na longa-metragem Adeus à Linguagem (2014). O que mais conta não é, de modo algum, a ostentação tecnológica, mas sim a demanda existencial, essa loucura branda que assombra Pierrot/Belmondo. Veja-se também esse filme mágico, rodado em 1996, em que algumas personagens, num cenário de muitas memórias trágicas (Sarajevo), procuram linguagens e modos de encenação para dar conta dos impasses do destino individual e colectivo. O título possui qualquer coisa de libertador: Para Sempre Mozart