Com O Mundo a Seus Pés, depois do teatro e da rádio, Orson Welles estreou-se na realização de filmes: a sua visão, marcada pelo gosto da experimentação, mudou a arte de contar histórias em cinema — este texto foi publicado no Diário de Notícias, por ocasião do 80º aniversário da respectiva estreia (1 maio).
O “melhor filme” de todos os tempos? Cada espectador elege o seu. O certo é que, numa espécie de memória oficiosa da história do cinema, O Mundo a Seus Pés (título original: Citizen Kane), primeiro filme de Orson Welles (1915-1985), continua a ser o mais associado a tão honrosa classificação. A sua sedução permanece para lá da passagem do tempo, das revoluções estéticas e dos ditames das modas, através de novas gerações de espectadores. Celebremos, por isso, a sua memória: foi há 80 anos, no dia 1 de maio de 1941, no RKO Palace Theatre, na Broadway, que ocorreu a estreia da obra-prima de Welles.
A condição de “melhor filme” não é estranha a muitas formas de subjectividade, ainda que conjugada com factos objectivos. Bastará citar a sondagem realizada, de dez em dez anos, pela Sight & Sound (revista do British Film Institute, fundada em 1932). Trata-se do mais respeitado inquérito internacional sobre os “melhores filmes de todos os tempos” — em boa verdade, à letra, os “maiores filmes de todos os tempos” (“the greatest films of all time”). Realizado pela primeira vez em 1952, consagrou Ladrões de Bicicletas (1948), de Vittorio De Sica. Nas cinco edições seguintes, de 1962 a 2002, O Mundo a Seus Pés surgiu sempre em primeiro lugar. Em 2012, com um recorde de votantes (846, incluindo críticos, jornalistas da área cinematográfica, programadores de festivais, etc.), o nº 1 passou a ser Vertigo (1958), de Alfred Hitchcock, surgindo O Mundo a Seus Pés em segundo lugar.
Todo este cruzamento de memórias não seria possível se O Mundo a Seus Pés não existisse… Óbvio? Não necessariamente, já que foi encarada a possibilidade de destruir o negativo do filme. Motivo: o alegado paralelismo entre a personagem de Charles Foster Kane, interpretada por Welles, e o magnate da imprensa William Randolph Hearst (1863-1951). Convencido que Kane era uma paródia de si próprio, Hearst nem sequer esperou pela estreia: por um lado, proibiu qualquer abordagem do filme nos seus jornais; por outro lado, as suas pressões levaram o estúdio produtor, RKO, a optar por um lançamento de escala reduzida, contribuindo para resultados medianos nas bilheteiras.
Welles nunca reconheceu tal paralelismo, embora sempre dissesse que algumas cenas foram inspiradas por episódios da vida de Hearst e outros homens de negócios, como Harold McCormick ou Howard Hughes. Em qualquer caso, a destruição do negativo era mesmo uma “alternativa” quando foi organizada uma projecção para que o filme fosse avaliado por Joseph Breen, responsável pela aplicação do Código Hays (sistema de censura interna que os estúdios de Hollywood aplicaram de 1934 até finais da década de 50). A pressão de Hearst levara alguns sectores de Hollywood a considerar que seria melhor “não fazer ondas” e, pura e simplesmente, destruir o filme. Breen acabou por não interditar a sua difusão, dir-se-ia que graças a uma intervenção “divina”…
O próprio Welles assim o explicou a Peter Bogdanovich, no livro de entrevistas This Is Orson Welles (ed. HarperCollins, 1992): “Arranjei um rosário, meti-o no bolso e quando a projecção acabou, levantei-me, em frente de Joe Breen, um bom católico irlandês, deixei cair o rosário no chão e disse ‘Oh, peço desculpa’. Apanhei-o e voltei a metê-lo no bolso.” Resultado prático? Welles esclarece: “Se não o tivesse feito, não haveria Citizen Kane.”