terça-feira, janeiro 31, 2023

Nuno Artur Silva
ou a arte de dizer "eu"

Nuno Artur Silva e António Jorge Gonçalves
* Foto: Rita Carmo

1. Vivemos tempos de obscena saturação de individualismos. Não poucas vezes, as equívocas facilidades de expressão oferecidas em rede impuseram um novo espaço de (in)comunicação organizado e, sobretudo, desorganizado a partir da destruição de qualquer forma de responsabilidade e responsabilização. Dito de outro modo: proclamar um "eu" sem fronteiras nem respeito pelos outros "eus" passou a ser um desporto pueril, induzido e consagrado por muitas formas e dispositivos da nossa cultura virtual.

2. O espectáculo Onde É Que Eu Ia?..., de Nuno Artur Silva, corre o risco invulgar de começar por se "aproximar" dessa cultura de lamentáveis narcisismos, acabando, inteligentemente, por expô-la nos seus contrastes, contradições e mentiras — e não tenhamos dúvidas que tal cultura se sente sempre ameaçada por qualquer gesto ou discurso que não abdique do gosto da inteligência.

3.
De que se trata, então? De uma performance que começa por ter o seu quê de confessional. Num tempo pré-histórico (entenda-se: anterior às histórias que tem para nos contar), Nuno Artur Silva criou a empresa Produções Fictícias, aí contribuindo para uma espectacular reconversão de alguns padrões da ficção audiovisual, com especial destaque para o registo de comédia no pequeno ecrã televisivo. Depois, foi administrador (RTP) e membro de governo (Secretaria de Estado do Cinema, Audiovisual e Media)...

4. Digamos, para simplificar, que nem tudo foi fácil. Ou ainda: as experiências saldaram-se por uma lição de vida amarga e doce. Para usarmos a linguagem do velho e incontornável Godard, diremos que Nuno Artur Silva foi sujeito — e objecto, hélas! — de uma metódica lição de coisas.

5. O facto de o espectáculo ser pontuado pelos desenhos que António Jorge Gonçalves vai improvisando, ao mesmo tempo que informa o espectador das várias alíneas da performance, conferem a Onde É Que Eu Ia?... a respiração insólita, subtilmente envolvente, de uma memória que apetece dar a ver através de novas imagens, ao mesmo tempo que o distanciamento decorrentes das próprias imagens apela a mais palavras — e à contundência sem equivalente do verbo.

6. O resultado é um belo e sofisticado exercício de contemplação das grandezas e misérias do nosso mundo português, das convulsões próprias da cena política, incluindo os bastidores fornecidos pelas casas de banho (nada de impróprio ou chocante, podem crer), até às vergonhas e desvergonhas da expressão virtual de alguns cidadãos, cada vez mais banal e menos expressiva, tendencialmente (e orgulhosamente) medíocre.

7. A mensagem do espectáculo é... não haver mensagem. Fica, em qualquer caso, um conselho sábio: cada vez que decidirmos retomar a palavra, convém perguntar "onde é que eu ia" — a humildade é, afinal, uma virtude humana que vale a pena reabilitar.

* ONDE É QUE EU IA?...
> até dia 5 de fevereiro

>>> Instagram.

Patti Smith no país da poesia

Patti Smith, Poeta do Rock:
um filme sobre a construção de uma identidade artística

Eis uma bela surpresa com chancela da Zero em Comportamento: Patti Smith, Poeta do Rock é um filme do canal Arte capaz de nos devolver a energia e os contrastes de uma trajectória criativa sem equivalente — este texto foi publicado no Diário de Notícias (16 janeiro).

No panorama da distribuição/exibição cinematográfica em Portugal, a diversificação da oferta é uma questão de sempre, cada vez mais importante. De uma maneira ou de outra, todos os agentes do mercado estão sensibilizados para tal questão e é um facto que, mesmo reconhecendo os desequilíbrios que persistem, algo mudou nos últimos anos, em particular através do labor das empresas da chamada área independente.
No caso da Zero em Comportamento — que organizou o primeiro IndieLisboa, em 2004, tendo mantido uma ligação com o festival até 2013 —, a sua oferta decorre de uma especial relação de trabalho com as escolas, organizando programas de sensibilização e formação artística em que o cinema desempenha um papel nuclear. Ao mesmo tempo, através de estreias ou da recuperação de títulos já lançados no mercado, a sua actividade reparte-se pelas salas e pelos videoclubes (o próprio e também os das operadoras).
Com uma presença ainda limitada no circuito das salas, a Zero em Comportamento tem apostado em exibir cada um dos seus lançamentos regulares (“Filme do mês”) em sessões em espaços alternativos, nomeadamente em auditórios de associações culturais. Uma estreia a merecer destaque neste janeiro tem a sua chancela: passou na última edição do IndieLisboa, chama-se Patti Smith, Poeta do Rock e terá a sua primeira exibição amanhã, em Lisboa, no City Alvalade (21h30). Seguir-se-ão a Biblioteca de Marvila (dia 20, 21h00, incluindo debate com Inês Meneses), a Nova SBE - Campus de Carcavelos (dia 25, 19h00), a Biblioteca Orlando Ribeiro, Telheiras (dia 27, 21h00) e a Biblioteca de Alcântara (dia 28, 18h00 e 19h15).

“Contracultura”

Realizado por Sophie Peyrard e Anne Cutaia, Patti Smith, Poeta do Rock é, de facto, uma bela surpresa, tanto mais motivadora quanto, à partida, poderia esgotar-se numa função “descritiva”, característica de muitos produtos de raiz televisiva. Daí a inevitável ironia: estamos, de facto, perante uma típica produção do Arte, uma das muitas que o canal franco-alemão tem dedicado a figuras marcantes das artes contemporâneas. O certo é que assistimos a algo que nem sempre é perceptível em propostas documentais da mesma natureza: não apenas um acumular de dados mais ou menos enciclopédicos sobre a figura retratada (o que, como é óbvio, não exclui a importância didáctica de tais dados), mas uma narrativa que nos faz descobrir, ou redescobrir, a trajectória de Patti Smith a partir da singular elaboração de uma genuína identidade artística.
Nesta perspectiva, creio que o valor primordial de Patti Smith, Poeta do Rock decorre do modo como nos dá a ver a criadora de canções como Redondo Beach, People Have the Power [video] ou Because the Night (esta resultante de uma lendária colaboração com Bruce Springsteen) enquanto protagonista de um curioso “desvio” criativo. Dir-se-ia que ela vive uma aventura em que a escrita se abre ao mundo, transfigurando-se em música.
Em 1967, aos 20 anos de idade, quando abandona os estudos em New Jersey e tenta a sua sorte em Nova Iorque, Patti Smith afirma-se como alguém que está à procura da sua própria linguagem poética. Define-se mesmo como uma artista de performances em que a palavra (poética, justamente) surge como matéria decisiva.
O contexto da “contracultura” da época — em parte ligada aos crescentes protestos contra a guerra do Vietname — gera em Patti Smith uma energia e um desejo de auto-descoberta que não será alheio à sua convivência com Andy Warhol, William S. Burroughs, Bob Dylan ou Allen Ginsberg, sem esquecer, claro, a ligação amorosa com o fotógrafo Robert Mapplethorpe, tão admiravelmente evocada no seu livro Just Kids/Apenas Miúdos (ed. Quetzal, 2011).

Poesia eléctrica

Lançado em 1975, Horses, o primeiro álbum de Patti Smith — com a célebre fotografia da capa, em pose andrógina, da autoria de Mapplethorpe — surgiu, assim, como a proeza de alguém que, concebendo a escrita da sua poesia como indissociável do acto de a dizer em público, ao mesmo tempo recebe, transfigura e reinventa a força de um som rock marcado pela convulsão do punk. Para resumir o fascinante caldeirão cultural da época, lembremos apenas que 1975 é também o ano de álbuns como Blood on the Tracks, de Bob Dylan, Born to Run, de Bruce Springsteen, e Acid Queen, de Tina Turner, ou de filmes como Tubarão, de Steven Spielberg, e Voando sobre um Ninho de Cucos, de Milos Forman.
Patti Smith, Poeta do Rock evoca tudo isso através de uma imensa antologia de imagens emblemáticas, dos concertos à agitação política nas ruas, passando por vários registos de bastidores (incluindo, por exemplo, a Factory de Andy Warhol) e algumas das mais antigas entrevistas de Patti Smith. Aliás, vale a pena recordar que foi também em 1975 que Bob Dylan organizou uma mítica digressão, “Rolling Thunder Revue”, em que participaram Joan Baez, Joni Mitchell e… Patti Smith — as respectivas memórias estão registadas num admirável filme de 2019, homónimo, assinado por Martin Scorsese e disponível na Netflix.
Ainda em 1975, numa performance pública, na sequência das celebrações do fim da guerra do Vietname, Patti Smith recusava o uso de “metralhadoras e bombas”, exibindo a sua guitarra “o nosso instrumento de guerra” e “o nosso instrumento de combate”. Por isso, faz todo o sentido que o título português do filme exalte a sua condição de “poeta do punk”, tal como o francês Patti Smith, La Poésie du Punk. Seja como for, lembremos a opção em inglês: Patti Smith, Electric Poet — dito de outro modo: com ela, a linguagem poética é uma questão de electricidade.

sexta-feira, janeiro 27, 2023

Portugalex: "É tudo fake..."

Nestes tempos tristes em que qualquer verdade pode ser fake — ou talvez o contrário: o fake prolifera como verdade —, o programa Portugalex (Antena 1) ajuda-nos a lidar com as convulsões de uma cultura mediática em que a disponibilidade para pensar está longe de ser um valor muito acarinhado. Ouça-se a edição de hoje, 27 de janeiro de 2023.

* Portugalex: Moedas Talks - A inspiração de Moedas, a amnésia de Medina e a indignação de Costa.

quinta-feira, janeiro 26, 2023

Lídia Jorge e a noite da escrita

Morangos Silvestres (1957): o cinema perante a crueldade do tempo

Vivemos numa cultura mediática que recusa lidar com a dimensão humana da morte. Mas há romances (e filmes) que resistem — este texto foi publicado no Diário de Notícias (15 janeiro).

Ao ler o novo e belíssimo romance de Lídia Jorge, Misericórdia (ed. D. Quixote, outubro de 2022), revi a memória de alguns momentos emblemáticos de filmes centrados no envelhecimento dos seus protagonistas, em particular com assinatura de Ingmar Bergman. Ao dizê-lo assim, como uma espécie de causa e efeito, sei que estou a atrair um velho lugar-comum do qual gostaria de me demarcar.
Não se trata de sugerir que a escrita literária é intrinsecamente limitada, necessitando de uma confirmação “visual” para cumprir os seus desígnios. Além do mais, não me reconheço, nem de longe nem de perto, na noção corrente, poderosíssima, que define a relação com um livro como uma antologia de imagens “motivadas” pela própria escrita — quando alguém celebra o facto de, ao ler um romance, lhe “parecer que estava a ver” aquilo a que o autor se refere, ainda que respeitando as sensações de cada um, sou levado a pensar que o leitor terá visto muita coisa… mas não viu a própria escrita.
Lídia Jorge
Que acontece, então, nesta narrativa na primeira pessoa de uma personagem que se chama Maria Alberta Nunes Amado, habitante de um lar que ostenta o nome, inevitavelmente ambíguo, de Hotel Paraíso? A resposta, sem nada de esotérico, poderá ser: desde o primeiro momento, somos confrontados com as marcas muito concretas da noite. Que noite é essa? As primeiras linhas do primeiro capítulo (com um título programático: “Atlas”) são exemplares. Cito-as (pág. 11): “Aqui onde me encontro, mesmo em tempo de Primavera, quando os dias costumam ser do tamanho das noites, a noite é sempre mais longa que o dia. Sabendo disso, é precisamente a meio da noite que a noite vem ter comigo, dirigindo-me perguntas inimagináveis como se fosse aquele gato pardo, muito antigo, que se chamava esfinge.”
Eis a claridade que nasce da escrita: a noite dentro da noite é a morte. E o que dela, na noite que a transporta, desafia o ser humano na sua condição de ser da linguagem — e através da linguagem. Como dizer a morte? Que palavras acrescentar à sua proximidade? Maria Alberta reconhece o impasse (pág. 60): “Desde há algum tempo que os meus pensamentos são muitos, mas as minhas letras são poucas. Sobre o papel, junto só as palavras essenciais como costumam fazer as crianças quando ainda não sabem construir frases e, no meu caso, daí resultam escritos a que dificilmente alguém, além de mim própria, poderá atribuir um sentido.”
Esta irredutibilidade individual afasta-nos de outros dois lugares-comuns, ambos muito na moda, que tendem a conferir um inusitado poder mediático a quem (realmente ou supostamente) os protagoniza: primeiro, Misericórdia não é um livro sobre o “tema” do envelhecimento, como se a inventariação de um “tema”, seja ele qual for, fosse o destino obrigatório de qualquer narrativa; segundo, Misericórdia não é uma ilustração mais ou menos redentora do “feminino”, como se uma narrativa centrada numa mulher não pudesse deixar de ser uma exaltação de “todas” as mulheres, como se o universo das mulheres fosse um colectivo político em que qualquer uma delas está (narrativamente) condenada a ser um “símbolo” de todas as outras — seria uma estupidez aplicar tal noção a uma personagem masculina, por que razão se transforma em obrigação panfletária quando é uma mulher que está em cena?
De que nos fala, então, esta narradora? Maria Alberta reconhece-se perante o indizível da morte (pág. 119): “A vida é um arco, tem o seu começo e o seu fim, inicia-se num berço, faz o seu voo ascendente, e a partir de certa altura a curva desce até nos entregarmos à terra, de novo dentro de uma caixa de madeira que em nada difere de um berço.” Aliás, com uma secura que repele a piedade obscena com que, no circo mediático, são tantas vezes tratados os mais velhos: “Recuso o lamento, repudio a contemplação da doença e condeno o prolongamento da vida para além dos seus limites.”
Retomo, por isso, a hipótese “bergmaniana”. Assim como a escrita de Lídia Jorge lida com o indizível — materializando a distância imaterial em que reconhecemos a “figura” da morte —, assim também em filmes como Morangos Silvestres (1957) deparamos com a contradição criativa do gesto cinematográfico. A saber: enfrentar a morte como “objecto” que resiste a ser filmado.
Logo na abertura de Morangos Silvestres, reveja-se o sonho da personagem do velho interpretado por Victor Sjöström. Os pressentimentos da morte, incluindo uma carruagem funerária sem condutor, adquirem a sua expressão mais intensa num relógio sem ponteiros — este é um tempo que perdeu as medidas do tempo. Ou como diz Maria Alberta (pág. 203): “As horas são a melhor manobra que se inventou de modo a desafiar a ausência de fim. Invenção humana para retalhar o tempo e dar-lhe o sentido que porventura não tem.”
Vivemos um tempo dominado por determinismos mediáticos em que muitos protagonistas, homens e mulheres, velhos e novos, parecem condenados a ilustrar uma condição de vida, espectacular e festiva, que não reconhece a verdade da própria morte — verdade humana, demasiado humana, ainda que não seja possível escrevê-la ou filmá-la. O romance de Lídia Jorge resiste a tudo isso, espelhando a cruel prisão do tempo. E também o seu carácter insondável. O que não impede que a angústia do empreendimento envolva uma irredutível alegria. Alegria de quem? De ninguém em particular, apenas da própria escrita.

quarta-feira, janeiro 18, 2023

Iggy Pop, opus 19

Every Loser, 19º álbum de estúdio de Iggy Pop, talvez se possa definir como uma revisão da matéria dada: uma colecção de variações e auto-variações sobre os restos de um rock cuja agonia ele simboliza como ninguém, quer dizer, transfigurando a própria agonia em celebração. E também em desafio às leis de decomposição que a natureza impõe aos seus frutos — literalmente, veja-se o poderoso teledisco de Strung Out Johnny.

terça-feira, janeiro 17, 2023

Na companhia de Pedro Costa

Sweet Exorcist (2012)

Como aniquilar a crítica de cinema em Portugal? A pergunta é também uma forma de desporto cultural — este texto foi publicado no Diário de Notícias (8 janeiro).

Não me é possível falar sobre a obra do cineasta português Pedro Costa a partir de um ponto de vista neutro, distante ou desapaixonado. Primeiro, porque o considero um dos grandes autores do cinema contemporâneo; depois, porque, profissionalmente, já estive envolvido com o seu trabalho quando, como responsável pela programação da área de cinema de Guimarães 2012-Capital Europeia da Cultura, o convidei para realizar um dos segmentos, intitulado Sweet Exorcist, que integraram a longa-metragem Centro Histórico (a par de Manoel de Oliveira, Víctor Erice e Aki Kaurismäki).
Há dias, consultando o Instagram da Optec Filmes, empresa produtora de grande parte da filmografia de Pedro Costa, deparei com uma citação sua — “Só sei que os filmes deviam testemunhar sempre da razão da sua existência e da sua necessidade.” —, remetendo para uma entrevista cujo texto integral se encontraria no Facebook da mesma produtora. Embora não esteja inscrito no Facebook, verifiquei que a entrevista pode ser lida num post aberto: foi feita por Catarina Brites Soares, estando publicada no site do Expresso com data de 4 de janeiro (mesmo não dominando os modos de informação no Facebook, creio que o post não refere o jornal).
A certa altura, a entrevistadora pergunta: “Sente que o seu trabalho é valorizado em Portugal, como sucede em França, Espanha e noutros países?” Transcrevo na íntegra a resposta de Pedro Costa: “Preferia responder de uma maneira mais materialista: não é raro que alguns dos chamados filmes comerciais portugueses façam seis ou sete mil espectadores em 60 ou 70 salas do país. Seis mil em 60 cinemas. É verdade que pouca gente pode ver os meus filmes nas salas portuguesas. Estreiam em três ou quatro. Rondam os cinco mil espectadores. Portanto, é só fazer as contas. Gostava de saber o que aconteceria se pudesse entrar nessas salas, quem sabe se não haveria uma surpresa. E podia estar a falar de outros filmes e de outros realizadores. Mas ninguém se apoquenta, nem os financiadores públicos, nem os distribuidores, nem a crítica. Dizem que não há público. Justamente, era preciso que a crítica não apresentasse estes filmes como umas bizarrias, que não lhes chamasse espectrais e elitistas, entre outras coisas. Mas enfim, se quiser ler um texto interessante sobre um filme, não é nos jornais portugueses que o vai encontrar.”
As observações de Pedro Costa sobre o funcionamento e, em particular, os desequilíbrios estruturais do mercado português interessam-me muito. Melhor ou pior, por certo de forma sempre discutível, há quase meio século que escrevo sobre tais problemas e, em particular, sobre aquilo que considero os modos equívocos e inoperantes com que as práticas dominantes nesse mercado tendem a fragilizar toda (repito: toda) a produção cinematográfica portuguesa. Sem esquecer que não é possível pensar tudo isso recalcando os nossos endémicos défices educacionais para o cinema (e todos os domínios artísticos) que, a meu ver, e apesar das excepções individuais, continuam a suscitar a obscena indiferença da nossa classe política, direitas e esquerdas confundidas.
Aliás, o próprio Pedro Costa tem-me ajudado a reflectir sobre tais questões. Citando-o: “Vivemos num país a sofrer o embate da televisão e desse verdadeiro electrochoque a que deram o nome de ‘ficção portuguesa’. Vai-se muito pouco ao cinema. Vai-se, sobretudo, de forma muito distraída, porque se vai jantar ao centro comercial. Poucas pessoas vão ver um filme por, realmente, quererem ver esse filme” (são palavras de uma entrevista por mim conduzida, publicada no Diário de Notícias, a 26 de novembro de 2006).
Algo mudou. E não posso esconder o choque resultante do facto de, agora, Pedro Costa reproduzir a mediocridade argumentativa de um velho desporto cultural, descrevendo a crítica de cinema como um rebanho de gente suspeita que se limita a proferir generalizações estúpidas (como as que ele refere), a ponto de, “nos jornais portugueses”, não ser possível encontrar “um texto interessante sobre um filme”.
Não serei eu a subscrever qualquer visão redentora, muito menos triunfalista, de todas as formas de jornalismo que se fazem em Portugal. Interessante seria, por exemplo, avaliar a futilidade jornalística de alguma crítica de cinema, em parte gerada pela demagógica “liberalização” favorecida pelas ambiguidades democráticas da internet. Mas Pedro Costa não mostra qualquer disponibilidade para pensar a complexidade estrutural, educativa e financeira de tudo isso, até porque avança com mais generalizações: “A colonização norte-americana está consumada, os intelectuais portugueses especulam sobre as séries da moda, o Roth e o Rothko, e gabam-se de nunca terem visto um filme do Manoel de Oliveira.”
Sou praticante desse pecado pró-americano, incluindo em relação a algum cinema que exibe a chancela de Hollywood. Além do mais, Roth e Rothko não me deixam indiferente — atrevo-me até a pensar que a sua grandeza criativa os coloca na companhia de Pedro Costa. O que me desconcerta é que Pedro Costa varra assim da memória jornalística e cinéfila a avalanche de abordagens da sua obra escritas em Portugal, a começar pelas apoteóticas formas de consagração (em que não me reconheço, é verdade) que encontrou com as suas duas primeiras longas-metragens, O Sangue (1994) e Casa de Lava (1997).
Muito a propósito, consulte-se no site da Optec Filmes o manancial de abordagens críticas a Vitalina Varela (2019), a mais recente longa-metragem de Pedro Costa. Não é fácil, reconheço, já que o site privilegia alguns textos não portugueses (“International reviews”), destacando os logotipos de quase duas dezenas de publicações, incluindo The New York Times, The Guardian e a revista Sight & Sound. O certo é que, procurando um pouco, podemos encontrar links das mais diversas origens (“World wide clipping”), deparando com 182 publicações portuguesas, entre jornais, televisão, rádio e internet, dedicadas a Vitalina Varela (já agora: seis têm a minha assinatura).
Ficamos a saber que 182 vezes não bastam a Pedro Costa para encontrar “um texto interessante”. Está no seu direito. E esta observação não contém ironia: assim como as intenções do criador são indiferentes a qualquer abordagem crítica (é a obra que conta), assim também a rejeição dessa abordagem pelo próprio criador envolve um raro misto de desafio, coragem e solidão que me merece todo o respeito.
O que me entristece é o modo como a ligeireza das palavras de Pedro Costa, ainda que inadvertidamente, vem alimentar os discursos mais cínicos, e também mais destrutivos, que sempre acompanharam o cinema que se faz em Portugal. Como se, desse modo, no aconchego do esplendor universal do seu trabalho, a legítima revolta das suas palavras tivesse sido contaminada por um simplismo ideológico e, sobretudo, um moralismo vingativo que não fazem justiça ao sublime furor de filmes como Ossos (1997), Juventude em Marcha (2006) ou o já citado Vitalina Varela. Até porque acredito piamente que tais filmes são tão fortes e tão genuínos que não precisam dos críticos para nada — basta a sua existência e a sua necessidade.

Madonna, "The Celebration Tour"
— Lisboa & etc.

Produzida pela Live Nation, "The Celebration Tour" arranca a 15 de julho, em Vancouver — a digressão mundial de Madonna, apostado em recordar as canções de 40 anos de carreira, passará por Lisboa, Altice Arena, no dia 6 de novembro. Será, por certo, um acontecimento recheado de memórias paradoxais, tal como se prova através do video produzido para o seu anúncio — dir-se-ia Na Cama com Madonna (1991) refeito, entre a nostalgia e a farsa, para o século XXI.

domingo, janeiro 15, 2023

Mitsuko Uchida, Mozart & Schönberg

[FOTO: Richard Avedon]

MAHLER CHAMBER ORCHESTRA
MITSUKO UCHIDA Piano / Direção
JOSÉ MARIA BLUMENSCHEIN Concertino

* Fundação Calouste Gulbenkian
Grande Auditório, 09 jan 23 (20h00)


No regresso de Mitsuko Uchida ao Grande Auditório da Gulbenkian, as suas interpretações de dois Concertos para Piano e Orquestra de Mozart (nºs 25 e 27, compostos em 1786 e 1791, respectivamente) tiveram um intermezzo, no final da primeira parte, neste caso apenas com a Mahler Chamber Orchestra, tocando a Sinfonia de Câmara nº 1, Arnold Schönberg.
A "estranheza" do arranjo do próprio concerto visava, como se viu e ouviu, a sugestão de laços de uma cumplicidade distante, mas em nada decorativa. Cito a chamada de atenção das notas do programa, da responsabilidade de João Silva: "A herança do Classicismo Vienense encontra-se patente na Sinfonia de Câmara nº 1, op. 9, de Arnold Schönberg. Terminada em julho de 1906, é um exemplo de como a escrita camerística das serenatas e sinfonias do Classicismo marcou a transição do Romantismo para o Modernismo."
De algum maneira, pudemos sentir a ambígua reverberação de Mozart na composição de Schönberg — como se, por exemplo, os contrastes do Andante do Concerto nº 25 "antecipassem" os prodigiosos ziguezagues estruturais da peça composta no começo do século XX. Além do mais, através da precisão da orquestra, fruindo todas as nuances da escrita de Schönberg. O mesmo se dirá, inevitavelmente, da arte suprema de Mitsuko Uchida, connosco partilhando essa sensação, também ela tecida de ambiguidade e racionalismo, de descoberta naquele instante da riqueza melódica e rítmica da pauta (que ela, naturalmente, não usa...). Em resumo: duas horas, cinco estrelas — um concerto para incluir nas melhores memórias musicais de 2023.

>>> Um excerto do Allegretto do Concerto nº 25, num espectáculo de 2006, em Salzburgo, integrado nas comemorações dos 250 anos do nascimento de Mozart — Mitsuko Uchida toca com a Filarmónica de Viena, dirigida por Riccardo Muti.
 

sábado, janeiro 14, 2023

Gracie Abrams, em família

Nascida em Los Angeles, 23 anos, eis Gracie Abrams — o menos que se pode dizer é que, com a sua música, vogamos em território familiar, simples e acolhedor, marcado por uma sensibilidade pop tradicional trabalhada através de um produção sofisticada. Este é o teledisco de Where do we go now?, canção do álbum de estreia, Good Riddance, com lançamento marcado para 24 de fevereiro. Familiar é também a genealogia artística: Gracie é filha do realizador J. J. Abrams; o teledisco foi dirigido por Gia Coppola, neta de Francis Ford Coppola.

sexta-feira, janeiro 13, 2023

Barbra Streisand, 1962

Ainda um "resto" das edições de 2022... Live at the Bon Soir é, ou melhor, seria o primeiro álbum de Barbra Streisand quando, depois de ter ganho um concurso de canções para principiantes num clube de Greenwich Village, assinou um contrato com a Columbia. Esta performance de novembro de 1962, tinha ela 20 anos, foi gravada num outro clube, o Bon Soir, e... ficou arquivada. Seis décadas depois, podemos escutar a esplendorosa revelação de uma voz imaculada e um talento invulgar — eis Cry Me a River, tema clássico de Arthur Hamilton, datado de 1953.

quinta-feira, janeiro 12, 2023

Bob Dylan, "The Bootleg Series", nº 17

Time Out of Mind (1997), o álbum de Bob Dylan produzido por Daniel Lanois, ficou como um capítulo essencial de um processo de transfiguração criativa que, em qualquer caso, não implicou qualquer afastamento das raízes do autor de The Times They Are a-Changin'.
Agora, é objecto de uma revisão/revisitação: Bob Dylan – Fragments – Time Out of Mind Sessions (1996-1997): The Bootleg Series Vol.17 chega a 27 de janeiro e não será arriscado supor que nele encontraremos, não apenas as peculiaridades do contexto criativo em que tudo aconteceu, mas também a crónica de um tempo em que Dylan, como sempre, seguia um caminho pessoalíssimo, alheio a conceitos de "vanguarda" ou "revivalismo" com que outros, não poucas vezes, tentam escudar a sua limitada imaginação.
Para já, eis um fabuloso video daquela que foi a versão nº1 de Not Dark Yet — com uma fascinante montagem de imagens dos seguintes fotógrafos:
 
Wayne Miller
Elliott Erwitt
Ian Berry
Alex Webb
Burt Glinn
Richard Kalvar
Leonard Freed
Eve Arnold
Alex Majoli
Paul Fusco
Dennis Stock
Guy Le Querrec
Thomas Hoepker
Raymond Depardon
Danny Lyon
Christopher Anderson
Jonas Bendiksen
Chris Steele-Perkins
Nikos Economopoulos
Paolo Pellegrin
Peter Marlow
Rene Burri
Chien-Chi Chang
Eli Reed
Hiroji Kubota


As aventuras do Rato Mickey no século XXI

Walt Disney, fundador de um dos impérios do mundo do espectáculo
© AFP PHOTO / The Walt Disney Company / © Disney [DN]
Notícia de Hollywood: em 2023, os estúdios Disney vão comemorar 100 anos. Nos tempos de Walt Disney, os desenhos animados definiam as suas principais componentes artísticas. Agora, no seu império de produção e difusão, encontramos um pouco de tudo, incluindo os super-heróis da Marvel e o novo Avatar — este texto foi publicado na edição especial que assinalou os 158 anos do Diário de Notícias (29 dezembro).

Foi no dia 16 de outubro de 1923 que Walt Disney (1901-1966) e o seu irmão Roy O. Disney (1893-1971) fundaram a empresa cinematográfica cujo nome simplificado — “Disney” — se tornou um símbolo universal do espectáculo (ou do entertainment, para sermos fiéis às origens). A sua mascote, o Rato Mickey, impôs-se como um ícone sem fronteiras, seguindo-se Pinóquio [foto], Bambi, etc. Apetece dizer: o resto é história…
Ou talvez não. Isto porque as comemorações dos 100 anos da Disney — que, não tenhamos dúvidas, irão pontuar o panorama cinematográfico de 2023 — ocorrerão num contexto bem diferente. Vale a pena recordar que a última grande produção que Walt Disney acompanhou foi Mary Poppins (1964), transformando Julie Andrews numa estrela, para mais consagrada com o Oscar de melhor actriz. E também que os tempos que se seguiram, em especial os desenhos animados das décadas de 70/80 (Robin dos Bosques, As Aventuras de Bernardo e Bianca, Rato Basílio, O Grande Mestre dos Detectives, etc.) são, no plano artístico, dos menos interessantes na história da Disney.
Se há um momento de viragem a partir do qual o “conceito” Disney se refaz e repensa, lançando as bases do império consolidado neste século XXI, esse momento não pode ser desligado do nome de Jeffrey Katzenberg. Foi durante a sua gestão da produção cinematográfica que nasceram sucessos como Três Homens e um Bebé (1987) ou Bom Dia, Vietname (1987), iniciando-se também uma reconversão radical do departamento de animação, gerando títulos como A Pequena Sereia (1989) ou A Bela e o Monstro (1991), primeira longa-metragem de desenhos animados a obter uma nomeação para o Óscar de melhor filme, para desembocar no fenómeno global de O Rei Leão [foto] (1994).

Entertainment global


Os números mais recentes da companhia são impressionantes, reforçando o lugar da Disney na linha da frente do entertainment global. Assim, em agosto, a Walt Disney Company fez saber que, nos nove meses anteriores, acumulou lucros de 2.983 milhões de dólares (contas redondas: 2.900 milhões de euros), numa dinâmica em que os filmes e os parques temáticos passaram a ter como “rivais” as plataformas de streaming, com destaque para a Disney+, actualmente com mais de 160 milhões de assinantes (ainda que seja um sector deficitário, devido aos elevados custos de produção).
O certo é que a 20 de novembro, a administração da Disney dispensou os serviços do director executivo, Bob Chapek. A sua gestão, privilegiando os parques temáticos, terá menosprezado os sectores criativos, além do mais favorecendo diversos episódios mediáticos (incluindo um conflito com Scarlett Johansson por causa do valor do seu contrato no filme Viúva Negra) que abalaram a imagem pública da companhia. Alternativa? Um inesperado “regresso ao futuro”: o anterior CEO, Bob Iger, foi de novo contratado, agora por dois anos, tendo por missão reorganizar a companhia e encontrar um sucessor.

Branca de Neve & Avatar


Se Walt Disney foi o pioneiro lendário dos tempos heróicos da animação, o panorama actual é bem diferente — a começar pela animação, precisamente. Exemplo sugestivo: o cowboy Woody e o astronauta Buzz Lightyear são agora símbolos do cinema da Disney e dos seus parques temáticos, mas começaram em Toy Story (1995), como criações dos estúdios Pixar, comprados pela Disney em 2006. A Pixar foi, afinal, a primeira grande aquisição do primeiro período de Bob Iger como CEO (2005-2020): custou 7,4 mil milhões de dólares. Seguiram-se a Marvel Entertainment (4 mil milhões), a Lucasfilm (4 mil milhões) e a 20th Century Fox (71 mil milhões), com todo o seu património televisivo e cinematográfico, incluindo os estúdios de animação que produziram os títulos de A Idade do Gelo [foto].
Há outra maneira de dizer isto: da primeira longa-metragem de animação, Branca de Neve e os Sete Anões (1937), até às mais recentes atribulações dos super-heróis da Marvel, passando pelas odisseias, em cinema e televisão, dos heróis de Star Wars, tudo isso integra o gigantismo da Disney. Sem esquecer que o primeiro Avatar (2009), de James Cameron, nasceu na 20th Century Fox, enquanto o segundo, Avatar: O Caminho da Água, estreado em meados de dezembro, tem chancela Disney, através da mesma companhia de produção, ainda que renomeada para 20th Century Studios.
Para o seu segundo mandato, Bob Iger irá enfrentar aquilo que, tanto em termos artísticos como financeiros, configura uma verdadeira crise de crescimento, mesmo se os analistas de Hollywood responsabilizam Bob Chapek pelos elementos mais dramáticos dessa crise. Num recente artigo na Variety (29 nov.), Tyler Aquilina resumia a situação com cruel ironia, escrevendo que a reorganização proposta por Bob Iger vai tentar “resolver os problemas que ele ajudou a semear”.

quarta-feira, janeiro 11, 2023

Do futebol como religião

[ 23-01-11 ]

Em Portugal, o futebol é vivido, encenado e santificado como uma ficção de muitos pecados. Muitos estão sujeitos a todos os desvios pecaminosos, mas alguns possuem o condão (inevitavelmente divino) de administrar culpas e atribuir perdões — de uma maneira ou de outra, somos todos personagens, crentes e acólitos desta singular religião colectiva.

terça-feira, janeiro 10, 2023

A felicidade segundo Billie Eilish

Billie Eilish, personagem do nosso tempo acelerado

Que significa dizer “eu” perante uma câmara de filmar? Afinal, que sabemos (ou não sabemos) da nossa identidade? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (25 dezembro).

Sinais do tempo… Mapas de uma civilização… Porque é que o facto de fazermos pose ou falarmos directamente para uma câmara (do nosso telemóvel, por exemplo) passou a ser encarado — e, mais do que isso, infinitamente multiplicado — como um automático bilhete de identidade para consumo dos outros? E porque é que consideramos “natural” essa compulsão de nos expormos ao olhar dos outros? Afinal de contas, no Instagram, no momento em que escrevo este texto, fazendo uma pesquisa com a referência #selfie, podemos encontrar mais de 450 milhões de imagens…
Billie Eilish, nascida em Los Angeles a 18 de dezembro de 2001, por certo um dos maiores (e, a meu ver, mais fascinantes) talentos da actual música popular, tem sido protagonista regular de um desses exercícios de exposição individual. Assim, desde 2017, sempre no dia 18 de outubro, a Vanity Fair entrevista-a, colocando-lhe uma série de perguntas sobre a vida pessoal e profissional. As respostas de cada novo ano dão origem a um video (o mais recente dura 21 minutos, está disponível no site da revista e também no YouTube) pontuado por diversos paralelismos com as respostas, e respectivas imagens, de anos anteriores.
Duas perguntas servem para lançar a última gravação: primeiro, qual a idade de Billie Eilish, suscitando um painel de seis imagens em que começamos por vê-la e ouvi-la dizer que tem 15 anos (em 2017) até à entrevista mais recente, com 20 anos (faltavam dois meses para celebrar 21); depois, qual o número dos seus seguidores no Instagram — de 257 mil no primeiro registo até mais de 106 milhões na actualidade (entretanto, já passou os 107 milhões).


Escusado será dizer que não estamos perante uma derivação audiovisual do “estilo” pueril, muitas vezes tristemente anedótico, de muitas selfies. Para lá da sofisticação da apresentação e montagem do video, a inteligência de Billie Eilish faz com que as respostas, mesmo às perguntas mais banais (“O que comeu hoje? Como está decorado o seu quarto?”), surjam tocadas por um misto de gravidade e humor.
Deparamos com uma genuína performance. Entenda-se: no sentido mais literal (e, precisamente, mais genuíno) que a palavra “performance” pode envolver. Billie Eilish tem óbvia consciência do dispositivo teatral, ou teatralizado, através do qual comunica connosco, ao mesmo tempo entregando-se a tal dispositivo com a disponibilidade de quem procura um auto-retrato estável.
Ou talvez não. A certa altura, nas imagens de 2019 fala-nos da “manutenção da minha felicidade” como algo que “já não sentia há muitos anos”… O que nos garante que, ainda antes de completar 18 anos, ela se via (e representava para nós) como alguém a perseguir uma felicidade que lhe tem escapado durante “muitos anos”. Assim mesmo: “muitos anos”…
Seria fácil considerar que esta aceleração dos modos de viver (e pensar o viver) reflecte uma qualquer crise da juventude. Acontece que ser jovem e chamar-se Billie Eilish é uma excepção absoluta que não pode confundir-se com a existência dos milhões que a seguem e vivem no mais radical anonimato. Rotular Billie Eilish como mero símbolo “juvenil” seria mesmo ceder ao mais obsceno paternalismo mediático, supondo que há uma fronteira nítida e, mais do que isso, intransponível, entre o seu modo de ser e a identidade de alguém (seja quem for) de qualquer outra geração.
Nesse passado muito próximo, a crise que Billie Eilish diz ter atravessado condensava-se numa frase eloquente: “Não sei se me sinto ligada a mim própria.” Um ano mais tarde, já com um novo ponto de vista, reconhece que andava a “fingir ser Billie Eilish”. E ainda: “Sentia-me como uma paródia de mim própria.”
Esta é, afinal, a cantora/compositora que editou dois álbuns cujos títulos vale a pena traduzir: “Quando todos adormecemos, vamos para onde?” (2019) e “Mais feliz do que nunca” (2021). O primeiro assombrado por uma inequívoca pulsão de morte — ouça-se a canção Bury a Friend e veja-se o respectivo teledisco; o segundo numa missão de resgate da ideia de felicidade.
A certa altura, surge um segmento “tradicional”, quase sempre deprimente, deste tipo de videos: responder a algumas perguntas de fãs… Billie Eilish sabe ser directa e sintética, não alimentando patéticas ilusões de intimidade. Quando lhe perguntam se já fumou erva e se quer ter filhos, responde da forma mais austera, sucessivamente: “não” e “sim”. Sem esquecer que há pelo menos uma resposta que desmancha qualquer possível barreira geracional — a pergunta é: “Qual a sua banda preferida?”; a resposta: “Os Beatles”.

domingo, janeiro 08, 2023

10 FILMES DE 2022

Depois da publicação de posts individuais sobre cada um destes discos (o primeiro a 19 de dezembro, o último a 6 de janeiro), aqui fica o respectivo balanço.

01_DAS PROFUNDEZAS
Michelangelo Frammartino

02_CRIMES DO FUTURO
David Cronenberg

03_BLONDE
Andrew Dominik

04_RECREIO
Laura Wandel

05_CAUSEWAY
Lila Neugebauer

06_OSSOS E TUDO
Luca Guadagnino

07_IRMÃO E IRMÃ
Arnaud Desplechin

08_UM FILME EM FORMA DE ASSIM
João Botelho

09_PATHOS, ETHOS, LOGOS
Joaquim Pinto, Nuno Leonel

10_MOONAGE DAYDREAM
Brett Morgen

sábado, janeiro 07, 2023

Eddie Vedder canta One

Eis uma bela memória da mais recente cerimónia de homenagem do Kennedy Center a personalidades do mundo das artes — foi no dia 4 de dezembro. Consagrados pela sua carreira foram: George Clooney, Amy Grant, Gladys Night, Tania León e ainda Bono, The Edge, Adam Clayton e Larry Mullen Jr., isto é, os U2.
Entre os momentos fortes — é sempre um evento em que sobriedade e alegria, pensamento e espectáculo se cruzam de forma contagiante —, será forçoso destacar a interpretação de uma das canções mais emblemáticas dos U2, One, por Eddie Vedder [video]. Sem esquecer que, depois dos anos em que Donald Trump quebrou a tradição, não aceitando o convite do Kennedy Center para acompanhar a cerimónia, Joe Biden não faltou.

10 DISCOS DE 2022

* Depois da publicação de posts individuais sobre cada um destes discos (o primeiro a 19 de dezembro, o último a 5 de janeiro), aqui fica o respectivo balanço.

01_KEITH JARRETT
Bordeaux Concert

02_THE SMILE
A Light for Attracting Attention

03_MITSUKO UCHIDA
Beethoven Diabelli Variations

04_EZRA FURMAN
All of Us Flames

05_TESS PARKS
And Those Who Were Seen Dancing

06_LEONIDAS KAVAKOS
Bach: Sei Solo

07_JACK WHITE
Entering Heaven Alive

08_SONIC YOUTH
In/Out/In

09_ANNA VON HAUSSWOLFF
Live at Montreux Jazz Festival

10_FADO BICHA
Ocupação

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quinta-feira, janeiro 05, 2023

10 filmes de 2022 [10]

* DAS PROFUNDEZAS 
Michelangelo Frammartino

Neste tempo de artifícios desregrados, ignorantes da ligação do prazer do simulacro à pulsação do real, que bom que é reencontrar a vontade primitiva dos Lumière. A saber: redescobrir e, num certo sentido, reinventar o cinema como instrumento prático para dar a ver o que não conhecemos. Michelangelo Frammartino, autor desse filme misterioso e envolvente que é As Quatro Voltas (2010), revisita a Itália da década de 1960, marcada por uma "revolução" económica de obscena ostentação — construía-se o mais alto edifício do mundo como símbolo da prosperidade do Norte do país —, encenando a odisseia de um grupo de espeleólogos que, mais ao Sul, na região da Calábria, exploram pela primeira vez aquela que é tida como a gruta mais funda (700 metros) do continente europeu. A pulsação documental tem tanto de intenso como de detalhado, mas está longe de esgotar o verdadeiro milagre de imagens e sons que Frammartino nos oferece: esta é uma aventura, rara e concisa, do espírito de descoberta do ser humano que, por assim dizer, se duplica no próprio exercício cinematográfico que nos é dado partilhar — se os balanços de fim de ano exigem que definamos uma hierarquia de valor (mesmo sabendo da sua imprecisão e futilidade), então digamos que, no mercado português, Das Profundezas pode exibir o rótulo de melhor filme de 2022.


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[ Moonage Daydream ]   [ Pathos, Ethos, Logos ]  [ Um Filme em Forma de Assim ]  [ Irmão e Irmã ]

Bruce Springsteen, opus 1

Greetings from Asbury Park, N.J., primeiro álbum de Bruce Springsteen, chegou às lojas (nada virtuais, entenda-se...) no dia 5 de janeiro de 1973 — faz hoje 50 anos. A história do meio século que se seguiu assegura-nos que a energia criativa dessa estreia estava longe de ser acidental. Eis um video oficial a assinalar a efeméride, e as canções de abertura e fecho do álbum: Blinded by the Light (VH1 Storytellers, 23 abril 2005) e It's Hard to Be a Saint In the City (Hammersmith Odeon, Londres, 18 novembro 1975).





10 discos de 2022 [10]

* Bordeaux Concert

Keith Jarrett sofreu dois AVC em 2018, só conseguindo tocar o piano com a mão direita. A sua prodigiosa discografia de improvisos termina, assim, com os registos da digressão europeia de 2016 a que pertence este concerto realizado a 6 de julho, no Auditório da Ópera Nacional de Bordéus — Munich 2016 e Budapest Concert tinham sido editados em 2019 e 2020, respectivamente. Dir-se-ia que as performances a solo de Jarrett definem um longo romance, de que ele é personagem única, em que cada capítulo parece começar onde terminou o improviso anterior, segundo uma lógica cuja angústia primordial se vai dissipando no equilíbrio instável que as formas, milagrosamente, adquirem e representam. É de solidão a música de Jarrett, e também de um universalismo que convoca a humildade da nossa escuta — eis a Part III do aconteceu em Bordéus.


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[ Fado Bicha ]  [ Anna von Hausswolff ]  [ Sonic Youth ]  [ Jack White ]  [ Leonidas Kavakos ]

quarta-feira, janeiro 04, 2023

10 filmes de 2022 [9]

* CRIMES DO FUTURO 
David Cronenberg

Inscrever o cinema de David Cronenberg no domínio do terror sempre foi tarefa votada a um banal superficialismo — para mais na actualidade em que o género está pontuado por muitas variações medíocres sobre matrizes há muito esgotadas. Como se prova neste genuíno conto filosófico, o que ele encena repetidamente (entenda-se: obsessivamente) é a permanente contaminação do factor humano e da tecnologia, numa aliança perversa em que tudo vacila, a ponto de a própria noção de natureza se dissipar como um fantasma sem rosto. O radicalismo da proposta envolve a fascinante frieza dos seus actores, neste caso com destaque para Viggo Mortensen [cartaz], Léa Seydoux e Kristen Stewart.


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[ Moonage Daydream ]   [ Pathos, Ethos, Logos ]  [ Um Filme em Forma de Assim ]  [ Irmão e Irmã ]
[ Ossos e Tudo ]  [ Causeway ]  [ Recreio ]  [ Blonde ]

The Smile, concerto na NPR

[ The Smile ]

Para Bob Boilen, responsável pelos Tiny Desk Concerts, na NPR, este foi o momento mais alto da música de 2022. E compreende-se porquê: a performance de The Smile é um pequeno prodígio de transfiguração de três canções — Pana-vision, The Smoke e Skrting On the Surface — do seu álbum A Light for Attracting Attention: a hiper-sofisticação do trabalho de estúdio dá lugar, aqui, a uma austeridade que, em boa verdade, acaba por reafirmar a vibração poética das composições. Reforçando o entusiasmo de Boilen, digamos que são apenas 15 minutos, mas tanto basta para que estejamos perante um dos grandes concertos (tiny ou não...) do ano.