Billie Eilish, personagem do nosso tempo acelerado |
Que significa dizer “eu” perante uma câmara de filmar? Afinal, que sabemos (ou não sabemos) da nossa identidade? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (25 dezembro).
Sinais do tempo… Mapas de uma civilização… Porque é que o facto de fazermos pose ou falarmos directamente para uma câmara (do nosso telemóvel, por exemplo) passou a ser encarado — e, mais do que isso, infinitamente multiplicado — como um automático bilhete de identidade para consumo dos outros? E porque é que consideramos “natural” essa compulsão de nos expormos ao olhar dos outros? Afinal de contas, no Instagram, no momento em que escrevo este texto, fazendo uma pesquisa com a referência #selfie, podemos encontrar mais de 450 milhões de imagens…
Billie Eilish, nascida em Los Angeles a 18 de dezembro de 2001, por certo um dos maiores (e, a meu ver, mais fascinantes) talentos da actual música popular, tem sido protagonista regular de um desses exercícios de exposição individual. Assim, desde 2017, sempre no dia 18 de outubro, a Vanity Fair entrevista-a, colocando-lhe uma série de perguntas sobre a vida pessoal e profissional. As respostas de cada novo ano dão origem a um video (o mais recente dura 21 minutos, está disponível no site da revista e também no YouTube) pontuado por diversos paralelismos com as respostas, e respectivas imagens, de anos anteriores.
Duas perguntas servem para lançar a última gravação: primeiro, qual a idade de Billie Eilish, suscitando um painel de seis imagens em que começamos por vê-la e ouvi-la dizer que tem 15 anos (em 2017) até à entrevista mais recente, com 20 anos (faltavam dois meses para celebrar 21); depois, qual o número dos seus seguidores no Instagram — de 257 mil no primeiro registo até mais de 106 milhões na actualidade (entretanto, já passou os 107 milhões).
Escusado será dizer que não estamos perante uma derivação audiovisual do “estilo” pueril, muitas vezes tristemente anedótico, de muitas selfies. Para lá da sofisticação da apresentação e montagem do video, a inteligência de Billie Eilish faz com que as respostas, mesmo às perguntas mais banais (“O que comeu hoje? Como está decorado o seu quarto?”), surjam tocadas por um misto de gravidade e humor.
Deparamos com uma genuína performance. Entenda-se: no sentido mais literal (e, precisamente, mais genuíno) que a palavra “performance” pode envolver. Billie Eilish tem óbvia consciência do dispositivo teatral, ou teatralizado, através do qual comunica connosco, ao mesmo tempo entregando-se a tal dispositivo com a disponibilidade de quem procura um auto-retrato estável.
Ou talvez não. A certa altura, nas imagens de 2019 fala-nos da “manutenção da minha felicidade” como algo que “já não sentia há muitos anos”… O que nos garante que, ainda antes de completar 18 anos, ela se via (e representava para nós) como alguém a perseguir uma felicidade que lhe tem escapado durante “muitos anos”. Assim mesmo: “muitos anos”…
Seria fácil considerar que esta aceleração dos modos de viver (e pensar o viver) reflecte uma qualquer crise da juventude. Acontece que ser jovem e chamar-se Billie Eilish é uma excepção absoluta que não pode confundir-se com a existência dos milhões que a seguem e vivem no mais radical anonimato. Rotular Billie Eilish como mero símbolo “juvenil” seria mesmo ceder ao mais obsceno paternalismo mediático, supondo que há uma fronteira nítida e, mais do que isso, intransponível, entre o seu modo de ser e a identidade de alguém (seja quem for) de qualquer outra geração.
Nesse passado muito próximo, a crise que Billie Eilish diz ter atravessado condensava-se numa frase eloquente: “Não sei se me sinto ligada a mim própria.” Um ano mais tarde, já com um novo ponto de vista, reconhece que andava a “fingir ser Billie Eilish”. E ainda: “Sentia-me como uma paródia de mim própria.”
Esta é, afinal, a cantora/compositora que editou dois álbuns cujos títulos vale a pena traduzir: “Quando todos adormecemos, vamos para onde?” (2019) e “Mais feliz do que nunca” (2021). O primeiro assombrado por uma inequívoca pulsão de morte — ouça-se a canção Bury a Friend e veja-se o respectivo teledisco; o segundo numa missão de resgate da ideia de felicidade.
A certa altura, surge um segmento “tradicional”, quase sempre deprimente, deste tipo de videos: responder a algumas perguntas de fãs… Billie Eilish sabe ser directa e sintética, não alimentando patéticas ilusões de intimidade. Quando lhe perguntam se já fumou erva e se quer ter filhos, responde da forma mais austera, sucessivamente: “não” e “sim”. Sem esquecer que há pelo menos uma resposta que desmancha qualquer possível barreira geracional — a pergunta é: “Qual a sua banda preferida?”; a resposta: “Os Beatles”.