quinta-feira, abril 30, 2020

A Ásia aqui tão perto

OKJA (2017)
Notícias do continente asiático revelam um espectacular crescimento do consumo caseiro de filmes: com ou sem covid-19, as plataformas de streaming desempenharão um papel fulcral no futuro do cinema — este texto foi publicado no Diário de Notícias (25 Abril).

Foi há apenas três anos. Na secção competitiva do Festival de Cannes de 2017, dois filmes surgiram como verdadeiros “aliens”: Okja, do sul-coreano Bong Joon-ho, uma parábola ecológica centrada num simpático “monstro” que uma jovem tenta proteger da avareza de uma multinacional, e The Meyerowitz Stories (New and Selected), do americano Noah Baumbach, retrato íntimo de uma família a ajustar contas com as suas memórias.
Qual a estranheza? Na altura, os filmes apresentavam-se unidos por um factor que, de uma maneira ou de outra, todos encarámos com um misto de perplexidade e curiosidade, alguns com inquietação: ambos exibiam chancela de produção da Netflix. Houve mesmo elementos da classe jornalística que acharam por bem formular uma dúvida deontológica: passado o festival, faria sentido estar a comentar filmes que seriam difundidos apenas online, numa das chamadas plataformas de streaming?
Convém recordar que se iniciava aí um episódio dramático da difusão cinematográfica que, três anos mais tarde, está longe de estar encerrado: apesar dos esforços negociais do certame, a Netflix fazia saber que não exibiria os referidos filmes no circuito tradicional das salas. Aliás, o próprio presidente do júri, Pedro Almodóvar, achou por bem declarar que encarava como um “enorme paradoxo” premiar um filme que não seria visto nas salas (nenhum constou do palmarés).
Na sequência de protestos dos exibidores franceses, o diferendo Cannes/Netflix agravou-se e, em boa verdade, continua por resolver (tendo a Netflix encontrado diferente receptividade em Veneza, a ponto de outra das suas produções, Roma, de Alfonso Cuarón, aí ter arrebatado o Leão de Ouro de 2018). Ironicamente, em 2019, Bong Joon-ho regressaria a Cannes, conquistando a Palma de Ouro com Parasitas (que não é uma produção Netflix), desse modo abrindo um novo capítulo artístico e comercial, não apenas para a produção sul-coreana, mas em boa verdade, nem que seja no plano simbólico, para todo o cinema asiático.
A história prossegue. No começo desta semana, a Media Partners Asia (empresa de análise dos mercados da Ásia-Pacífico) divulgou um relatório segundo o qual o confinamento motivado pelo covid-19 gerou um aumento exponencial do consumo caseiro de produtos audiovisuais. Assim, por exemplo, agregando dados provenientes da Indonésia, Malásia, Filipinas e Singapura, recolhidos entre 20 de janeiro e 11 de abril, sabemos que o tempo de consumo das plataformas de streaming aumentou 60 por cento.
Como é óbvio, todas as entidades envolvidas no streaming estão a ganhar com esta situação. A Netflix emerge como líder da maior parte dos mercados asiáticos: o tempo médio de consumo dos respectivos produtos aumentou 115 por cento; os conteúdos mais procurados são o cinema coreano, a animação de raiz japonesa (Anime) e, por fim, as produções dos EUA e da Europa.
Três anos passados sobre as atribulações de Okja e The Meyerowitz Stories em Cannes, talvez seja oportuno sublinhar dois factores emblemáticos de toda esta conjuntura: primeiro, a Netflix confirma-se como pedra de toque de uma situação que há muito superou o domínio fundamental, mas restrito, dos festivais de cinema; segundo, para lá da Netflix, o papel das plataformas de streaming, grandes ou pequenas (observe-se a evolução da oferta em Portugal, nomeadamente através da Filmin), vai-se tornando cada vez mais decisivo na percepção artística e na vida comercial dos filmes. Envolvendo tudo isso, deparamos com uma evidência global. A saber: a crescente importância dos mercados asiáticos na dinâmica industrial do cinema que se faz e difunde em todo o mundo.
Em 1967, na paisagem de uma Europa pontuada por muitas convulsões, o italiano Marco Bellocchio realizou um filme admirável sobre a contaminação das lutas políticas pelo maoísmo. Tinha o título sugestivo de La Cina È Vicina, à letra, “A China está próxima”. Agora, a proximidade é de outra natureza, mas não exclui a dimensão política e, em particular, a urgência de genuínas políticas culturais. Com ou sem covid-19, o futuro do cinema passa pelas plataformas de streaming — para o melhor e para o pior.

Jazz + Nova Orleães + COVID-19

Da esquerda para a direita: Winston Turner (trombone), Emeka Dibia (voz) e Tannon "Fish" Williams (trompete) evocam a música tradicionalmente tocada nos funerais em Nova Orleães, Louisiana, agora respeitando a distância social, para mais num contexto drasticamente atingido pelo COVID-19 — é uma notícia e um video da NPR, através do seu Jazz Night in America.

quarta-feira, abril 29, 2020

Rufus Wainwright — #RoyalAlbertHome

De Londres para o mundo: o Royal Albert Hall está a produzir concertos caseiros — #RoyalAlbertHome —, capazes de manter bem vivo o valor primordial da performance. Entre os convidados está Rufus Wainwright, numa maravilhosa meia hora de partilha de canções e expectativas: por um lado, trazendo notícias do seu novo álbum, Unfollow the Rules; por outro lado, antecipando a digressão europeia que (ainda) espera poder concretizar em Junho/Julho (com uma data portuguesa: 7 Julho, Oeiras).
Eis o concerto, incluindo um dos novos temas, algumas memórias e um encore em francês, comme il faut.

Montauk [Out of the Game, 2012]
In a Graveyard [Poses, 2001]
Peaceful Afternoon [Unfollow the Rules, 2020]
Going to a Town [Release the Stars, 2007]
Hallelujah [Leonard Cohen]
La Complainte de la Butte [Georges Van Parys / Jean Renoir]

#supportthedoctors

Sob o lema #supportthedoctors, estas são imagens de Lidija Milovanovic, numa produção da agência McCann, de Belgrado, Sérvia — uma mensagem universal para os tempos de pandemia; ou como o rosto conta sempre as nossas histórias, e as histórias da relação de cada um com os outros.

Na solidão de Rufus Wainwright

Unfollow the Rules — assim se vai chamar o novo álbum de Rufus Wainwright, a ser editado no dia 10 de Julho. Do seu alinhamento, eis a faixa final, Alone Time: uma bela e primitiva deambulação solitária, encenada com desenhos de Josh Shaffner (também responsável pela animação) e do próprio Rufus.

segunda-feira, abril 27, 2020

O cinema "teatral" de Christophe Honoré

Na situação de pandemia que estamos a viver, há filmes a estrear directamente em plataformas de “streaming”. É o caso de Quarto 212, do francês Christopher Honoré: em cena está a crise amarga e doce de um casal interpretado por Chiara Mastroianni e Benjamin Biolay — este texto foi publicado no Diário de Notícias (23 Abril).

São muitas as transformações, mais ou menos drásticas, que estão a acontecer nos mercados de cinema. Na prática, o calendário de todos os eventos — desde os festivais até ao lançamento de novos títulos — está a ser revisto e adaptado às circunstâncias da pandemia de covid-19. Em contexto português, Quarto 212, de Christophe Honoré, é um dos exemplos: a estreia agendada para 19 de março não chegou a acontecer e, agora, o filme pode ser descoberto na plataforma Filmin — chegou o tempo das estreias virtuais.
Estamos perante mais uma ilustração do gosto romanesco (não necessariamente romântico) de Honoré. O seu primeiro e fundamental valor é o respeito e, num certo sentido, a admiração pela densidade emocional de cada personagem. Encontramos tal atitude nos momentos mais crus da sua filmografia — com destaque para Agradar, Amar e Correr Depressa (2018), uma história de amor assombrada pela sida, a meu ver um dos seus melhores filmes —, mas também em registos ligeiros, próximos de uma certa tradição do musical, como As Canções de Amor (2007).
Quarto 212 pertence a esse domínio mais leve ou, se quiserem, mais irónico. A crise do casal Maria/Richard, interpretado por Chiara Mastroianni e Benjamin Biolay (que já foram casados na vida real), surge encenada como uma farsa cujo eventual dramatismo vai sendo temperado por um desconcertante humor. Isto porque, após uma conversa mais amarga sobre a infidelidade de Maria, ela decide ir passar a noite a um hotel. Acontece que o hotel fica exactamente em frente da casa do casal, sendo a noite pontuada por uma série de “encontros” de Maria com personagens da sua história, incluindo Richard vinte anos mais novo (interpretado por Vincent Lacoste).


O filme seduz pelo seu elenco (Chiara Mastroianni ganhou o prémio de melhor actriz na secção “Un Certain Regard” de Cannes/2019) e também pelo bizarro artificialismo da sua encenação. Há mesmo várias situações em que Maria e o Richard mais jovem, à janela do hotel, contemplam o Richard do presente em que a história se situa… Ao mesmo tempo, dir-se-ia que, desta vez, Honoré se interessa menos pelas vivências das suas personagens e mais pelo desconcertante “teatro” de cenários espelhados que quis fabricar.
Quando Quarto 212 arranca, em particular durante a breve deambulação de Chiara Mastroianni pelas ruas de Paris (que serve de genérico ao filme), reencontramos uma das componentes mais fascinantes do cinema de Honoré: a personagem existe através de um relação sensual com o próprio cenário porque, de facto, a vibração dos seus volumes, cores e sons possui também qualquer coisa de uma personagem — as ruas apresentam-se como um “palco” que o cinema regista e, mais do que isso, reinventa. A partir do momento em que tudo se transfere para os cenários fabricados em estúdio, incluindo mesmo algumas imagens “aéreas” que dão a ver as paredes artificiais (para quê?…), a ostentação do dispositivo sobrepõem-se à celebração das personagens.
Honoré, convenhamos, é um verdadeiro cinéfilo. E não será abusivo considerar que o seu romanesco pertence a uma linhagem nobre do cinema francês que passa pelas referências tutelares de Jean Renoir (1894-1979) e François Truffaut (1932-1984). Com Quarto 212, apetece dizer que ele quis retomar a herança de outro mestre, Jacques Demy (1931-1990), nomeadamente de um filme como Um Quarto na Cidade (1982) — para lá dos títulos, a sugestão de alguma cumplicidade estética provém, sobretudo, da utilização do estúdio como lugar de uma metódica transfiguração “teatral”da acção e, em particular, das relações passionais. Não lhe fica mal o gosto e o risco de tal proximidade, mas falta-lhe a intensidade vital dos corpos e das vozes do cinema de Demy. Acontece aos melhores.

Erin Bates venceu o COVID-19

A foto tem assinatura de Emma Bates: ao fotografar a sua filha, Erin, de seis meses, produziu um daqueles testemunhos cuja radical intimidade não exclui, antes amplia, a possibilidade de uma tocante universalidade. Tratada no Alder Hey Children's Hospital, em Liverpool, Erin é um caso extraordinário de resistência: atingida pelo COVID-19, esteve em isolamento durante duas semanas e, mesmo com problemas cardíacos e pulmonares, venceu o vírus [ITV].

A guerra do streaming

Bob Iger (Disney), Jeff Bezos (Amazon) e Reed Hastings (Netflix)
A guerra económica pelo controle do streaming está em marcha. O COVID-19 abriu novas frentes de combate, mas, em boa verdade, o conflito já vem detrás. Os seus protagonistas chama-se Netflix, Disney e Amazon. E o seu principal cenário é a Índia, ou seja, 550 milhões de consumidores — vale a pena ler o ponto da situação em The Hollywood Reporter.

domingo, abril 26, 2020

Brad Pitt e Miley Cyrus no SNL

Brad Pitt abriu a edição (caseira) de Saturday Night Live com uma notável imitação de Anthony Fauci, o médico imunologista que tem sido figura central na "task force" da Casa Branca para enfrentar o COVID-19; depois, Pitt apresentou Miley Cyrus a cantar o clássico Wish You Were Here, do álbum homónimo dos Pink Floyd, lançado em 1975 — dois belos momentos de televisão.



Shirley Knight (1936 - 2020)

Grande senhora do teatro e do cinema dos EUA, Shirley Knight faleceu de causas naturais, no dia 22 de Abril, em San Marcos, Texas — contava 83 anos.
A sua formação passou pelo Herbert Berghof Studio e também pelo Actors Studio, que acabou por integrar de forma vitalícia — Erwin Piscator e Lee Strasberg foram alguns dos seus mestres. Presença regular na televisão a partir de meados da década de 50, afirmou-se no cinema através de dois títulos que lhe trouxeram outras tantas nomeações para o Oscar de melhor actriz secundária: Escuro no Cimo das Escadas (1960), de Delbert Mann, e Corações na Penumbra (1962), de Richard Brooks, ambos baseados em textos teatrais, respectivamente de William Inge e Tennessee Williams.
Distinguido-se pela intensidade emocional das suas composições, passou por alguns títulos marcantes das transformações dos anos 60/70, incluindo O Grupo do Colégio (1966), de Sidney Lumet, Dutchman (1966), de Anthony Harvey, que lhe valeu um prémio de interpretação no Festival de Veneza, Petulia (1968), de Richard Lester, e Chove no Meu Coração (1969), maravilhoso drama intimista de Francis Ford Coppola, porventura a referência mais injustamente subvalorizada da sua filmografia (título original: The Rain People). A partir da década de 70, são os títulos televisivos que predominam na sua trajectória; ganhou um Globo de Ouro de melhor actriz secundária em mini-série ou telefilme com O Silêncio dos Acusados (1995), de Mick Jackson. No cinema, entre os seus trabalhos finais, destacam-se Melhor É Impossível (1997), de James L. Brooks e As Vidas Privadas de Pippa Lee (2009), de Rebecca Miller.

>>> Trailer de Corações na Penumbra.


>>> Contracenando com Helen Hunt em Melhor é Impossível.


>>> Obituário em The Los Angeles Times.

sábado, abril 25, 2020

Sophia de Mello Breyner Andresen
— por João César Monteiro (1969)

Al Pacino, 80 anos

Dick Tracy (1990)
No último meio século da história do cinema, é um dos génios da arte de representar. Os espectadores mais jovens talvez o associem, sobretudo, a dois títulos marcantes de 2019: Era uma Vez em Hollywood, de Quentin Tarantino, e O Irlandês, de Martin Scorsese. É pouco para resumir a admirável versatilidade da sua trajectória, ele que começou por se destacar no interior do realismo dos anos 70 em filmes de tão admirável imaginação narrativa e energia emocional como Pânico em Needle Park (1971), de Jerry Schatzberg, Serpico (1973) e Um Dia de Cão (1975), ambos de Sidney Lumet. Foi também, claro, o Michael Corleone da trilogia de O Padrinho (1972/1974/1990), de Francis Ford Coppola, sabendo transfigurar-se do Big Boy Caprice da BD em Dick Tracy (1990), de Warren Beatty, até à duplicidade moral do advogado Roy Cohn em Anjos na América (2003), de Mike Nichols.
Al Pacino, de seu nome Alfredo James Pacino, nasceu em Nova Iorque, no dia 25 de Abril de 1940 — faz hoje 80 anos.

>>> Cena de Um Dia de Cão, filme exemplar de uma época em que Hollywood produzia muitas histórias com personagens, não "franchises" de super-heróis — para além da sofisticação da mise en scène de Sidney Lumet, repare-se na métrica exemplar da montagem de Dede Allen.


>>> Al Pacino na Enciclopédia Britânica.
>>> A trilogia de O Padrinho no BFI.

A IMAGEM: Gilles Peress, 1974

GILLES PERESS / Magnum
25 de Abril de 1974
Portugal

sexta-feira, abril 24, 2020

Rolling Stones — canção/fantasma

Living in a Ghost Town — em situação de confinamento, e muitas formas de solidão, a evocação de uma cidade-fantasma envolve uma verdadeira tentação simbólica. Os Rolling Stones não resistiram e lançaram uma nova canção. Há oito anos que tal não acontecia... Será, por certo, tema para integrar um novo álbum — para já, a satisfação está garantida.

quinta-feira, abril 23, 2020

TIME100 / Talks [directo]

Conversa/debate online promovido pela revista Time: como lidar com a conjuntura social e política do COVID-19?

"Morte à PIDE!" — lançamento no YouTube

Novo livro de António Araújo, Morte à PIDE! — A queda da polícia política do Estado Novo, retomando e ampliando uma abordagem que o autor já publicara:

>>> Por ocasião do 45.º aniversário do 25 de Abril, considerou-se oportuno republicar o texto «A queda da PIDE/DGS: narrativa de um passado recente», que saiu originalmente na revista Atlântico, n.º 5, de 28 de Julho de 2005, e n.º 6, de 6 de Setembro de 2005, e agora é dado à estampa numa versão substancialmente aumentada e actualizada.

É hoje o lançamento virtual — às 15h00, no canal YouTube do Instituto de História Contemporânea.

quarta-feira, abril 22, 2020

Laura Marling, em família

O título serve de sintoma e programa: Song for Our Daughter, sétimo álbum de estúdio da inglesa Laura Marling, apresenta-se como um delicado exercício de intimidade familiar. Na NPR, numa edição muito especial dos actuais 'Tiny Desk [home] Concerts', Marling gravou três temas do respectivo alinhamento — são 11 minutos de serena partilha emocional.

Allen Daviau (1942 - 2020)

As imagens de filmes como E.T., o Extraterrestre, A Cor Púrpura e Império do Sol são da sua responsabilidade: morreu Allen Daviau, um génio da fotografia no cinema — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 Abril), com o título 'Elogio de Allen Daviau'.

A conjuntura drástica que estamos a viver tem vindo a reforçar a nossa condição, não apenas de consumidores, mas também de produtores de imagens. Não é um efeito da pandemia, longe disso. Há vários anos que os nossos telemóveis, e respectivos programas “sociais”, nos transformaram em fotógrafos ou cineastas, mais ou menos conscientes, mais ou menos talentosos, apostados em romper as fronteiras tradicionais dos mundos privados. De facto, a tradição iconográfica já não é o que era: não nos basta partilhar o nosso assado no forno com o vizinho do lado; precisamos de, algures, online, colocar uma imagem de tão prometedora iguaria, dando conta das nossas proezas culinárias ao planeta inteiro.
Não vem daí grande mal ao mundo, dirão os mais liberais. E têm razão. Em todo o caso, seja qual for o sabor virtual dos nossos cozinhados, não creio que isso seja razão para deixarmos de pensar o modo como a nossa relação com as imagens tem vindo a mudar para parâmetros de (des)entendimento que encaramos, muitas vezes, com equívoca ligeireza.
Observe-se a proliferação de imagens geradas nas mais diversas paisagens virtuais da Net (Instagram, Skype, Zoom, etc.), agora correntes no nosso quotidiano. Que têm em comum? Apesar da sofisticação técnica de muitos dos aparelhos que usamos, uma imensa percentagem dessas imagens é, mesmo de um ponto de vista amador, de qualidade francamente deficiente. Muitas imagens dos que, através desses instrumentos, jornalistas ou não, passaram a ser personagens obrigatórias de todos os noticiários televisivos são reveladoras de tais limitações.
Se o leitor me seguiu até aqui, atrevo-me a solicitar-lhe um mínimo de paciência (até porque, como é óbvio, nem sequer me estou a colocar fora de todo esse universo). Não se trata, de modo algum, de desvalorizar a importância informativa e pedagógica de muitas dessas imagens. Trata-se, isso sim, de observar os sintomas de uma crescente banalização da cultura das imagens, induzida, não pelos seus utilizadores, mas pela generalização pueril das suas máquinas e “gadgets”.
Devo também confessar o meu pecado cinéfilo. Se voltei a pensar em tudo isto, não foi exactamente por causa dos dramas prementes e incontornáveis do nosso aqui e agora. Acontece que uma notícia do final da tarde de quinta-feira, genericamente tratada com evidente distanciamento (e talvez não pudesse ser de outro modo), nos fez saber que morreu um génio das imagens do cinema: Allen Daviau, o americano que assinou a direcção de fotografia de três filmes de Steven Spielberg — E.T., O Extraterrestre (1982), A Cor Púrpura (1985) e Império do Sol (1987) —, faleceu aos 77 anos de idade, devido a complicações provocadas pelo coronavírus. Todos esses títulos lhe valeram nomeações para o Oscar de melhor fotografia — tal como Avalon (1990) e Bugsy (1991), ambos de Barry Levinson —, distinção que nunca ganhou. Em 2007, a associação americana dos profissionais de fotografia no cinema (American Society of Cinematographers) homenageou-o com um prémio de carreira.
A sua visão possuía uma qualidade rara ou, pelo menos, frequentemente desvalorizada neste nosso presente de multiplicação de cenários digitais. A saber: mesmo quando o seu trabalho envolvia a metódica utilização de muitas fontes de luz artificial (e escusado será lembrar que, também nesse aspecto, E.T. é um prodigioso exercício cinematográfico), Daviau procurava, não exactamente o naturalismo esquemático que os nossos telemóveis agora nos concedem, antes uma celebração visual de uma noção primitiva e exuberante de natureza.
Creio que um bom exemplo desse trabalho está em Congo (1995), de Frank Marshall, adaptação (menor, a meu ver) do romance homónimo de Michael Crichton. A sua abordagem da luz, cores e volumes da selva africana convoca-nos para uma beleza perdida, porventura inquietante, em que pressentimos a hipótese de alguma transcendência. Em causa, através das imagens, está a nossa relação com o sagrado. Não apenas como possibilidade, mas como desejo.

terça-feira, abril 21, 2020

O óbvio e o obtuso [Instagram]

17 Abril 2020
O Instagram de Francisco Toscano Silva apresenta-se com um mote de William Eggleston: "Estou em guerra com o óbvio." Recorrendo a outros preciosos ensinamentos, neste caso de Roland Barthes, poderíamos acrescentar que, nesse conflito com o óbvio, se trata também de não recusar o obtuso. Que é como quem diz: essas contorções com que o real discute as suas próprias evidências, convocando-nos para um olhar que troque a ideologia da preguiça pela filosofia da atenção militante. Ou ainda: velho companheiro de algumas aventuras e desventuras cinéfilas & editoriais, FTS é um fotógrafo de corpo inteiro, sensível, metódico, disponível para a contemplação dos lugares, objectos e pessoas, organizando uma proximidade que sabe medir as suas distâncias — vale a pena descobrir as suas imagens.
17 Abril 2018
13 Abril 2018

segunda-feira, abril 20, 2020

Fiona Apple, opus 5

Obra-prima. 5 estrelas. Álbum do ano.
Tudo isso. E mais. Por uma vez, neste tempo em que o social está condenado a ser predominantemente virtual, eis a Net a acolher um coro de vozes entusiásticas (ao qual se junta agora este humilde ouvinte), consagrando o álbum nº 5 de Fiona Apple — um prodígio de invenção, imaginação e sensibilidade: Fetch the Bolt Cutters surgiu a 17 de Abril, quase oito anos passados sobre The Idler Wheel Is Wiser Than the Driver of the Screw and Whipping Cords Will Serve You More Than Ropes Will Ever Do (lançado a 18 de Junho de 2012), mas valeu a pena esperar. Esperando também por outras digressões com as 13 canções do álbum, eis o tema-título.

I've been thinking about when I was trying to be your friend
I thought it was then, but it wasn't, it wasn't genuine
I was just so furious, but I couldn't show you
'Cause I know you and I know what you can do
And I don't want a war with you, I won't afford it
You get sore, even when you win

And you maim when you're on offense
But you kill when you're on defense
And you've got them all convinced
That you're the means and the end
All the VIPs and PYTs and wannabes
Afraid of not being your friend


And I've always been too smart for that
But you know what? My heart was not
I took it like a kid, you see
The cool kids voted to get rid of me
I'm ashamed of what it did to me
What I let get done
It stole my fun, it stole my fun

Fetch the bolt cutters, I've been in here too long
[...]
He sings so nice, I guess he tries (I've been thinking about when I was trying to be your friend)
(I thought it was then, but it wasn't, it wasn't genuine)

Fetch the bolt cutters, I've been in here too long
Fetch the bolt cutters (I've been in here too long)
Whatever happens, whatever happens (Whatever happens)
Fetch the bolt cutters, I've been in here too long
Fetch the bolt cutters

While I'd not yet found my bearings
Those it girls hit the ground
Comparing the way I was to the way she was
Sayin' I'm not stylish enough and I cry too much
And I listened because I hadn't found my own voice yet
So all I could hear was the noise that
People make when they don't know shit
But I didn't know that yet

I grew up in the shoes they told me I could fill
When they came around, I would stand real still
A girl can roll her eyes at me and kill
I got the idea I wasn't real
I thought being blacklisted would be grist for the mill
Until I realized I'm still here (I'm still here)
I grew up in the shoes they told me I could fill
Shoes that were not made for running up that hill
And I need to run up that hill, I need to run up that hill
I will, I will, I will, I will, I will

Fetch the bolt cutters, I've been in here too long
Fetch the bolt cutters, whatever happens, whatever happens
[...]


>>> Mesa-redonda sobre Fetch the Bolt Cutters na NPR.

domingo, abril 19, 2020

'Together at Home': 5 canções



'One World: Together at Home': assim se chama o concerto virtual organizado pela Global Citizen, apoiando a Organização Mundial de Saúde no combate à pandemia de COVID-19 e promovendo a prática da distância social — eis cinco momentos musicalmente exemplares, vividos na nossa desencantada globalização.

>>> LADY GAGA: Smile, música de Charlie Chaplin, para o filme Tempos Modernos (1936); letra de John Turner/Geoffrey Parsons (1954).


>>> THE ROLLING STONES: You Can't Always Get What You Want, do álbum Let it Bleed (1969).


>>> EDDIE VEDDER: River Cross, do álbum Gigaton (2020), dos Pearl Jam.


>>> BILLIE EILISH (com o irmão, Finneas): Sunny, de Bobby Hebb (1963).


>>> JIMMY FALLON + THE ROOTS: The Safety Dance, versão de uma canção do álbum Rhythm of Youth (1982), dos Men Without Hats.

Memórias de Filipe Duarte

Impossível racionalizar a brusquidão da notícia: na sexta-feira, 17 de Abril, soubemos que o actor Filipe Duarte falecera, na sequência de um fulminante enfarte do miocárdio — nascido em Nova Lisboa, Angola, a 5 de Junho de 1973, contava 46 anos [Wikipedia].
No contexto sempre instável em que trabalham os actores portugueses, a sua carreira obedeceu a um constante jogo de equilíbrios entre o palco, o cinema e a televisão. Recentemente, no grande ecrã, tinhamo-lo visto no papel de Fernando Ataíde no filme Variações (2019), de João Maia, e assumindo a figura de um tenente do exército português em Mosquito (2020), de João Nuno Pinto. Em fase de pós-produção está aquela que seria a sua derradeira interpretação cinematográfica: Nothing Ever Happened (2020), de Gonçalo Galvão Teles.
No site da Medeia Filmes, podemos ver ou rever, por um breve período, três títulos da sua filmografia:
— SÓ POR ACASO (2003), de Rita Nunes.
— A OUTRA MARGEM (2007), de Luís Filipe Rocha.
— ENTRE OS DEDOS (2008), de Tiago Guedes e Frederico Serra [trailer].

Shostakovich, de olhos bem abertos

Dmitri Shostakovich
Depois do Bolero de Ravel, a Orquestra Nacional de França propõe-nos a Valsa nº 2, de Dmitri Shostakovich, em magnífica performance virtual — é a revisitação de um tema que adquiriu especial popularidade através da sua inclusão na banda sonora do filme final de Stanley Kubrick, De Olhos Bem Fechados (1999).

Brian Dennehy (1938 - 2020)

Exemplo modelar da grande tradição americana de representação, no palco e no cinema, Brian Dennehy faleceu no dia 15 de Abril, em sua casa, em New Haven, Connecticut, vítima de paragem cardíaca — contava 81 anos.
Foi intérprete frequente do Goodman Theatre, em Chicago, em particular de peças de Eugene O'Neill — em 2003, o seu trabalho em Uma Longa Jornada para a Noite valeu-lhe um prémio Tony (prémio que já conquistara, em 1999, com A Morte de um Caixeiro Viajante, de Arthur Miller). No cinema, terá sido o seu papel de xerife em A Fúria do Herói (1982), contracenando com Sylvester Stallone (no primeiro papel como 'John Rambo'), sob a direcção de Ted Kotcheff, que consolidou a sua carreira no interior de Hollywood. Seja como for, antes e depois, esse filme é francamente insuficiente para simbolizar o seu talento multifacetado. Da sua filmografia imensa, de mais de 150 títulos, podemos recordar, por exemplo, À Procura dum Homem (1977), de Richard Brooks, 10 - Uma Mulher de Sonho (1979), de Blake Edwards, Os Lobos Não Choram (1983), de Carroll Ballard, Silverado (1985), de Lawrence Kasdan, A Barriga de Um Arquitecto (1987), de Peter Greenaway, Romeu + Julieta (1996), de Baz Luhrmann, ou Ela Odeia-me (2004), de Spike Lee. Pertencia ao American Theatre Hall of Fame, desde 2010.

>>> Cenas de A Fúria do Herói + A Barriga de um Arquitecto.




>>> Obituário no site Deadline.

sexta-feira, abril 17, 2020

17 câmaras para filmar Zidane

Entre os documentários disponíveis nas plataformas de “streaming”, Zidane - Um Retrato do Século XXI é um dos mais originais e fascinantes: trata-se da “reportagem” de um jogo de futebol visto através da performance de um único jogador — este texto foi publicado no Diário de Notícias (16 Abril).

Ao longo deste século XXI, muito se tem falado da diversificação de propostas do género documental. E com justificação, sem dúvida. Mas, nesse domínio, talvez não encontremos nenhum filme como aquele que Douglas Gordon e Philippe Parreno dedicaram a uma figura lendária do mundo do futebol, Zinedine Zidane. Dir-se-ia que pressentindo o alcance simbólico da sua ousadia criativa, os realizadores escolheram mesmo um título inequivocamente ambicioso ou, pelo menos, saudavelmente irónico: Zidane - Um Retrato do Século XXI — é uma das preciosidades actualmente disponíveis online (Filmin).
Que se passa, então? Vale a pena referir que o escocês Gordon e o francês Parreno são artistas muito ligados às imagens, à experimentação videográfica e ao conceito de performance, mas não necessariamente ao universo do cinema. Não admira, por isso, que tivessem encarado a filmagem de Zidane — na altura no Real Madrid, integrando um fabuloso colectivo que incluía jogadores como o brasileiro Ronaldo, o inglês David Beckham e o português Luís Figo — muito para lá de qualquer modelo decorrente das regras televisivas de tratamento do futebol.
Em boa verdade, seguimos “apenas” as ocorrências de um Real Madrid-Villarreal, disputado a 23 de abril de 2005 no Estádio Santiago Barnabéu. Com uma “pequena” diferença conceptual: a dupla de realizadores teve à sua disposição 17 câmaras que, em vez de seguirem os ziguezagues da bola, se mantiveram “coladas” à figura de Zidane, aos seus movimentos e também aos seus momentos de quietude. O resultado é fascinante, já que consegue produzir algo de visceralmente cinematográfico e, claro, alheio às normas do dispositivo televisivo.


Não se trata, entenda-se, de sugerir que esta forma de abordagem do futebol — e, mais concretamente, de um jogador de futebol — deveria ser adoptada pelas televisões. A questão é outra e, sobretudo, é de outra natureza. Gordon/Parreno procuram qualquer “coisa” de indefinível que começa na contemplação da duração do jogo, sobretudo das acções que não costumam suscitar a atenção das câmaras televisivas, desembocando numa desconcertante intimidade com o próprio jogador.
Daí o efeito onírico do filme, mesmo se as suas imagens estão contaminadas por muitas componentes realistas. Daí também a opção por uma banda sonora musical de bizarra sensualidade, a cargo da banda escocesa Mogwai. Tudo se passa como se Zidane - Um Retrato do Século XXI fosse um tratado, tão cerebral quanto lúdico, sobre as imagens e os sons nascidos das novas tecnologias, de algum modo levando-nos a repensar os efeitos de “reportagem” que, todos os dias, pontuam o nosso espaço mediático e, em especial, como é óbvio, a comunicação televisiva.
Para a história, vale a pena recordar que o jogo terminou com a vitória do Real Madrid por 2-1. Mas quem não terminou o jogo foi o próprio Zidane que, aos 90 minutos, se envolveu numa discussão, tendo sido sancionado com um cartão vermelho — estava-se na 27ª jornada de La Liga e o líder Barcelona viria a sagrar-se campeão.

quinta-feira, abril 16, 2020

Lee Konitz (1927 - 2020)

Figura lendária do cool jazz, o saxofonista americano Lee Konitz faleceu no dia 15 de Abril, em Nova Iorque, vítima de uma pneumonia causada pelo coronavírus — contava 92 anos.
Era o derradeiro sobrevivente do clássico Birth of the Cool (1957, com gravações de 1949-50), de Miles Davis. Em qualquer caso, a diversidade da sua carreira de sete décadas faz com que não seja possível defini-lo através de um "único" estilo, oscilando da alegria do cool até aos contrastes das experimentações vanguardistas. Esteve ainda com Miles em Miles Ahead (1957), tendo também colaborado, por exemplo, com Chick Corea, Lennie Tristano ou Bill Evans. Das dezenas de registos da sua obra em nome pessoal, Lee Konitz at Storyville (1954), no clube Storyville de Boston, Tranquility (1957) e Spirits (1971) são referências emblemáticas. Algumas das suas derradeiras performances públicas ocorreram em 2014, poucos dias depois do seu 84º aniversário, no Cafe Stritch (San Jose, Califórnia), na companhia do trio de Jeff Denson.

>>> Lee Konitz at Storyville [integral].


>>> Improvisation #3 — da série televisiva canadiana SOLOS: The Jazz Sessions (2005).


>>> Obituário na revista Downbeat.

The Strokes, opus 6

Bird on Money — assim se intitula a pintura de Jean-Michel Basquiat, datada de 1981, cuja zona central serve de capa a The New Abnormal, álbum nº 6 da banda nova-iorquina The Strokes (o primeiro desde Comedown Machine, 2013); Basquiat concebeu-a como um tributo a Charlie Parker.


Convenhamos que não parece fácil associar o novo registo à herança do autor de Ornithology, mas o título avisa-nos da anormalidade em que tudo isto terá sido gerado. Até porque, dizem as más-línguas jornalísticas, Julian Casablancas estará actualmente mais empenhado no projecto paralelo de The Voidz. E se estiver?...
Talvez seja útil sublinhar apenas o valor sintomático da linguagem fria dos números. Da métrica das canções, neste caso. Assim, não encontramos aqui esses esboços selvagens, punk, pós-punk ou o que se quiser, que faziam as delícias do álbum fundador Is This It (2001), raiz de todas variações mais ou menos felizes que se seguiram em Room on Fire (2003), First Impressions of Earth (2005), Angles (2011) e o já citado Comedown Machine. Em The New Abnormal, os temas oscilam entre 03m42s (Selfless) e 06m15s (Eternal Summer) — a duração integrou a contemplação.
Cronómetros à parte, digamos que The Strokes talvez andem à procura de outro som, mais denso, de diferentes contrastes, aberto à exposição de emoções esquecidas, porventura implicando a ruptura de velhas cumplicidades — "I want new friends / But they don't want me", canta Casablancas em Brooklyn Bridge to Chorus.
Depois de At the Door e Bad Decisions, não há novos telediscos. Fiquemo-nos pelo tema final, Ode to the Mets, uma preciosidade clássica (?) com vocação para se tornar um hino rock. Tanto pior se já não acreditamos em hinos.

Up on his horse, up on his horse
Not gonna wake up here anymore
Listen one time, it's not the truth
It's just the story I tell to you
Easy to say, easy to do
But it's not easy, well maybe for you
Hope that you find it, hope that it's good
Hope that you read it, think that you should
Cuts you some slack as he sits back
Sizes you up, plans his attack

Da-da-da
Drums please, Fab

And I got it all, I got it all
Waitin' for me down on the street
But now you gotta do somethin' special for me
I'm gonna say what's on my mind
Then I'll walk out, then I'll feel fine

Yeah, I'm under his thumb, I'm on his back
I will not show my teeth too quick
I needed you there, I needed you there
But I didn't know, I didn't know

Go alone
I'll go alone
We'll go alone
I'll go alone

Back from his trip, he's at the door
When he gets back, he's on the phone
Innocent eye, innocent heart
No, it's not wrong, but it's not right
Innocent time, out on his own
Not gonna do that, fuck, I'm out of control
I was just bored, playin' the guitar
Learned all your tricks, wasn't too hard

It's the last one now, I can promise you that
I'm gonna find out the truth when I get back

Gone now are the old times
Forgotten, time to hold on the railing
The Rubik's Cube isn't solving for us
Old friends, long forgotten
The old ways at the bottom of
The ocean now has swallowed
The only thing that's left is us
So pardon the silence that you're hearing
It's turnin' into a deafening, painful, shameful roar

quarta-feira, abril 15, 2020

Cannes, paisagem

[FOTO: DN/EPA]
Cannes! Nostalgia cruel de muitas memórias: em frente ao Palácio dos Festivais, o espaço tradicionalmente hiper-controlado, habitado por milhares de pessoas — dos profissionais que sobem a escadaria com a passadeira vermelha até aos fotógrafos que registam as suas imagens, passando pelas longas filas de jornalistas a mostrarem os seus cartões para poderem aceder à sala Lumière e, last but not least, a multidão anónima de mirones mais ou menos ruidosos —, é agora uma paisagem quase deserta. Uma figura com máscara desempenha a indesejável função simbólica de nos fazer sentir a conjuntura drástica em que tudo isto acontece. Entretanto, numa declaração já esperada, o Festival reconheceu a impossibilidade de concretizar o evento em Junho/Julho, estando a desenvolver "numerosas consultas", dentro e fora de França, para "de uma maneira ou de outra, fazer existir os filmes de Cannes 2020".

A beleza da coragem [Dove]

Imagem da campanha 'Courage is Beautiful' [Dove]
— executada pela Ogilvy Canada, Toronto

terça-feira, abril 14, 2020

Andrew Cuomo, face ao COVID-19

Fotografado por George Etheredge, Andrew Cuomo está na capa da edição de Maio da Rolling Stone. Em entrevista conduzida por Mark Binelli, o governador de Nova Iorque fala, antes do mais, dos dramas do seu estado, estatisticamente um dos mais castigados pelo COVID-19 em todo o território dos EUA. A sua actividade, incluindo as regulares aparições televisivas, transformaram Cuomo numa referência marcante para os cidadãos americanos — como se escreve no título, ele é alguém que "assumiu o comando". O seu lema poderá ser o que se enuncia nestas suas palavras: "(...) manter as coisas simples. Dizer a verdade. Dar factos às pessoas. Explicar o que se está a fazer, porque se está a fazer."
Para lá das componentes específicas de cada contexto nacional e do insubstituível labor dos que estão no terreno, a entrevista da Rolling Stone é mais um testemunho, de evidente apelo universal, que vale a pena ter em conta.

segunda-feira, abril 13, 2020

50 anos depois do fim dos Beatles
— memórias e nostalgia

Foi a 10 de Abril de 1970 que o mundo ficou a saber que não haveria mais nenhum álbum editado pelos quatro de Liverpool: meio século depois, as memórias cruzam-se com a possibilidade de voltarmos a poder ver o filme sobre as gravações de Let it Be, o disco final — este texto foi publicado no Diário de Notícias (10 Abril).

Acertemos o calendário: os Beatles acabaram há 50 anos. E se há assunto em relação ao qual podemos e devemos aceitar as dores da nostalgia, esse assunto é os Beatles.
Afinal de contas, nos pátios de liceus e escolas secundárias, mas sobretudo através dos fundamentais gira-discos caseiros, o ano de 1970 foi vivido como uma longa e amarga viagem de decomposição do quarteto de Liverpool, repartida por episódios paradoxais, entre as ilusões da adivinhação e a contundência dos factos. Se necessitamos de uma espécie de ponto de fuga emocional para que a história faça algum sentido (se é que continuamos a acreditar que há um sentido para a história…), encontramo-lo no dia 10 de abril desse ano. Paul McCartney respondia a uma dúvida que pairava como um assombramento: “Consegue antecipar um tempo em que a dupla Lennon-McCartney volte a funcionar como uma aliança activa na composição de canções?” Desafiando os oráculos da música e da mitologia, McCartney respondeu em tom de cruel minimalismo: “Não”.
Meio século depois, sabemos também que nada mudou. Que é como quem diz: o património musical legado pela genial aliança de John Lennon, Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr persiste como um dos mais belos capítulos da história da música popular do século XX, mesmo se não podemos deixar de revisitar, em tom de resgate afectivo, as convulsões desse ano de 1970.
A resposta negativa de McCartney entrou para a história como o fim oficial dos Beatles (e, na prática, como tal funcionou), mas nem sequer foi dada numa intervenção pública em que se abordasse tal possibilidade. Em boa verdade, tratou-se daquilo que o marketing costuma chamar uma “auto-entrevista”: McCartney pediu a Peter Brown, da editora Apple, que lhe preparasse um questionário, não exactamente sobre o futuro dos Beatles, antes para divulgar o seu primeiro álbum a solo, intitulado McCartney. O seu lançamento estava marcado para uma semana mais tarde, 17 de abril — e assim aconteceu.
Na prática, a aventura discográfica de McCartney sem os outros Beatles estava longe de ser um acto isolado. Em finais de 1968, Lennon já lançara Unfinished Music No. 1: Two Virgins, o seu primeiro registo experimental com Yoko Ono, seguindo-se Unfinished Music No. 2: Life with the Lions e Wedding Album, ambos em 1969. Harrison também assinara dois álbuns a solo: Wonderwall Music (1968) e Electronic Sound (1969), enquanto Ringo, cerca de duas semanas antes do “anúncio” de McCartney, se estreara com Sentimental Journey. Isto sem esquecer que, em finais de 1970, Harrison e Lennon editariam ainda, respectivamente, All Things Must Pass e John Lennon/Plastic Ono Band, obras decisivas na sua afirmação independente.
Convenhamos que já andávamos todos inquietos com a energia criativa dos Beatles — sendo, neste caso, a inquietação um sinónimo de redobrado fascínio. O lendário “Álbum Branco”, lançado em finais de 1968, impôs-se como esplendorosa expressão de tal conjuntura artística e mitológica. Com um primeiro paradoxo que, também ele, ficou para a história: a designação “Álbum Branco” resultou tão só da austeridade da sua capa, de uniforme branco leitoso, mas o seu verdadeiro título era… The Beatles.
Como vivia, então, o quarteto? Em ambiente de muitos conflitos, explícitos ou latentes, contaminados por dois peculiares eventos: primeiro, a agitada e, em muitos aspectos, frustrante viagem à Índia para conhecerem um santuário de meditação transcendental; depois, o crescente envolvimento de Yoko Ono na vida e na obra de Lennon (casaram-se em 1969).
O “Álbum Branco” é um duplo LP nascido de tal ambiente. Nele encontramos uma incrível colecção de disparidades, da alegria pop de Ob-La-Di, Ob-La-Da ao intimismo de While My Guitar Gently Weeps, passando pelo experimentalismo de Revolution 1 e Revolution 9 [video]. Mais tarde, Lennon diria mesmo que “não há música dos Beatles” no álbum, já que cada canção foi surgindo como uma criação “individual”, segundo a fórmula: “John e a banda, Paul e a banda, George e a banda” (Ringo terá sido o mais ausente).


Este estado de coisas reflectiu-se, inevitavelmente, nos dois álbuns finais dos Beatles: Abbey Road e Let it Be. De tal modo que a sua chegada às lojas não correspondeu à agenda de gravação da maior parte das suas canções: o primeiro surgira a 26 de setembro de 1969; Let it Be, quase todo registado antes de Abbey Road, passou por um atribulado período de misturas e remisturas, com intervenção do produtor americano Phil Spector (suscitando o veemente desagrado de McCartney), e foi posto à venda a 8 de maio de 1970 — um mês antes, McCartney tinha-nos feito saber que aquela banda já não existia…
Let it Be esteve para se chamar Get Back, a canção editada como primeiro single do álbum [video], posto à venda a 11 de abril de 1969 — chegou mesmo a existir um projecto de capa como Get Back, mas com o envolvimento de Spector prevaleceu a designação Let it Be. O derradeiro single dos Beatles, lançado a 11 de maio, seria The Long and Winding Road, título que adquiriu a inesperada força de um encerramento simbólico (à letra: “A estrada longa e sinuosa”).
O certo é que o capítulo final da discografia dos Beatles nascera pontuado por uma ideia de renovação e relançamento, isto é, pela possibilidade de a banda regressar aos concertos ao vivo. A sua derradeira actuação pública ocorrera nos EUA, a 29 de agosto de 1966, no estádio de Candlestick Park, em São Francisco. McCartney, em particular, mostrava-se seriamente empenhado em tal possibilidade — rezam as crónicas que os outros três, sobretudo Harrison, estavam longe de partilhar o seu entusiasmo.
Ironicamente, Let it Be ficaria associado ao mais peculiar concerto de toda a história dos Beatles, uma performance francamente atípica, cuja sedução a passagem do tempo apenas reforçou. Acabou por ser uma maneira de resolver as desencontradas opiniões sobre um possível local para o reaparecimento do grupo ao vivo: aconteceu a 30 de janeiro de 1969, no telhado dos estúdios Apple, em Londres, com o quarteto a ser acompanhado nas teclas por Billy Preston, que já participara nas gravações em estúdio.
Foi um agitado princípio de tarde, marcado pela atmosfera invernosa e , a certa altura, o aparecimento de elementos da central de polícia de West Wend, alertada pela multidão que começava a formar-se em frente ao nº 3 da Savile Row. Os Beatles interpretaram nove temas, incluindo cinco versões de Get Back; as “takes” de I’ve Got a Feeling, One After 909 e Dig a Pony foram mesmo escolhidas para integrar o alinhamento final do álbum [video: Don't Let me Down].


Para a história, o concerto no telhado da Apple ficou registado em filme pelo americano Michael Lyndsay-Hogg, ele que era já um especialista de performances musicais, tendo gravado vários pequenos filmes (a noção de “teledisco” só surgiria no começo da década de 80, com a MTV) para canções dos Beatles e Rolling Stones. Lyndsay-Hogg tinha por missão acompanhar com as suas câmaras as gravações do álbum — o que aconteceu, desde logo, nas sessões nos estúdios (cinematográficos) de Twickenham —, visando a elaboração de uma longa-metragem destinada às salas escuras. Do seu trabalho nasceu o filme Let it Be, lançado no Reino Unido a 20 de maio de 1970 (entre nós exibido com um título bizarro: Improviso).
Se Let it Be, o álbum, veio a adquirir o peso simbólico de um involuntário testamento, Let it Be, o filme, possui o ambivalente fascínio de um genuíno documento sobre o trabalho musical: por um lado, nele descobrimos as canções em estado nascente, incluindo uma tocante “take” de Let it Be (não usada no álbum), interpretada por um admirável Paul McCartney, ao piano, em pose de transparente tristeza; por outro lado, pelos olhares e gestos, mesmo nos momentos de maior harmonia musical, circulam sinais dispersos das clivagens interiores que o futuro próximo iria confirmar.
Let it Be é um dos títulos mais esquecidos da filmografia dos Beatles (há muito desaparecido dos circuitos de difusão), eles que inventaram o seu próprio modelo de musical cinematográfico, graças à direcção do magnífico Richard Lester nas longas-metragens A Hard Day’s Night (1964) e Help! (1965). A boa notícia é que Let it Be deverá reaparecer em paralelo com um outro filme dirigido por Peter Jackson. O novo projecto, intitulado The Beatles: Get Back, será construído a partir das gravações do álbum, ou seja, nada mais nada menos que 55 horas de material filmado por Lyndsay-Hogg e mais de 140 horas de audio.
O projecto envolve a reposição de Let it Be, em cópia restaurada, logo a após a estreia de The Beatles: Get Back, prevista para 4 de setembro. Será que a situação de pandemia, que tem afectado todos os domínios da actividade cinematográfica, vai permitir cumprir tal calendário? Ninguém sabe… De uma maneira ou de outra, são intensas e indeléveis as memórias dessa época em que ficámos a saber que já não poderíamos comprar um novo disco dos Beatles. Resta-nos esperar, pacientemente. Ou, como se canta em Let it Be, “sussurrar palavras de sabedoria”.

>>> Let it Be (remasterização de 2009).


>>> Paul McCartney com James Corden (Junho 2018).


>>> Os Beatles na Enciclopédia Britânica.