quarta-feira, abril 22, 2020

Allen Daviau (1942 - 2020)

As imagens de filmes como E.T., o Extraterrestre, A Cor Púrpura e Império do Sol são da sua responsabilidade: morreu Allen Daviau, um génio da fotografia no cinema — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 Abril), com o título 'Elogio de Allen Daviau'.

A conjuntura drástica que estamos a viver tem vindo a reforçar a nossa condição, não apenas de consumidores, mas também de produtores de imagens. Não é um efeito da pandemia, longe disso. Há vários anos que os nossos telemóveis, e respectivos programas “sociais”, nos transformaram em fotógrafos ou cineastas, mais ou menos conscientes, mais ou menos talentosos, apostados em romper as fronteiras tradicionais dos mundos privados. De facto, a tradição iconográfica já não é o que era: não nos basta partilhar o nosso assado no forno com o vizinho do lado; precisamos de, algures, online, colocar uma imagem de tão prometedora iguaria, dando conta das nossas proezas culinárias ao planeta inteiro.
Não vem daí grande mal ao mundo, dirão os mais liberais. E têm razão. Em todo o caso, seja qual for o sabor virtual dos nossos cozinhados, não creio que isso seja razão para deixarmos de pensar o modo como a nossa relação com as imagens tem vindo a mudar para parâmetros de (des)entendimento que encaramos, muitas vezes, com equívoca ligeireza.
Observe-se a proliferação de imagens geradas nas mais diversas paisagens virtuais da Net (Instagram, Skype, Zoom, etc.), agora correntes no nosso quotidiano. Que têm em comum? Apesar da sofisticação técnica de muitos dos aparelhos que usamos, uma imensa percentagem dessas imagens é, mesmo de um ponto de vista amador, de qualidade francamente deficiente. Muitas imagens dos que, através desses instrumentos, jornalistas ou não, passaram a ser personagens obrigatórias de todos os noticiários televisivos são reveladoras de tais limitações.
Se o leitor me seguiu até aqui, atrevo-me a solicitar-lhe um mínimo de paciência (até porque, como é óbvio, nem sequer me estou a colocar fora de todo esse universo). Não se trata, de modo algum, de desvalorizar a importância informativa e pedagógica de muitas dessas imagens. Trata-se, isso sim, de observar os sintomas de uma crescente banalização da cultura das imagens, induzida, não pelos seus utilizadores, mas pela generalização pueril das suas máquinas e “gadgets”.
Devo também confessar o meu pecado cinéfilo. Se voltei a pensar em tudo isto, não foi exactamente por causa dos dramas prementes e incontornáveis do nosso aqui e agora. Acontece que uma notícia do final da tarde de quinta-feira, genericamente tratada com evidente distanciamento (e talvez não pudesse ser de outro modo), nos fez saber que morreu um génio das imagens do cinema: Allen Daviau, o americano que assinou a direcção de fotografia de três filmes de Steven Spielberg — E.T., O Extraterrestre (1982), A Cor Púrpura (1985) e Império do Sol (1987) —, faleceu aos 77 anos de idade, devido a complicações provocadas pelo coronavírus. Todos esses títulos lhe valeram nomeações para o Oscar de melhor fotografia — tal como Avalon (1990) e Bugsy (1991), ambos de Barry Levinson —, distinção que nunca ganhou. Em 2007, a associação americana dos profissionais de fotografia no cinema (American Society of Cinematographers) homenageou-o com um prémio de carreira.
A sua visão possuía uma qualidade rara ou, pelo menos, frequentemente desvalorizada neste nosso presente de multiplicação de cenários digitais. A saber: mesmo quando o seu trabalho envolvia a metódica utilização de muitas fontes de luz artificial (e escusado será lembrar que, também nesse aspecto, E.T. é um prodigioso exercício cinematográfico), Daviau procurava, não exactamente o naturalismo esquemático que os nossos telemóveis agora nos concedem, antes uma celebração visual de uma noção primitiva e exuberante de natureza.
Creio que um bom exemplo desse trabalho está em Congo (1995), de Frank Marshall, adaptação (menor, a meu ver) do romance homónimo de Michael Crichton. A sua abordagem da luz, cores e volumes da selva africana convoca-nos para uma beleza perdida, porventura inquietante, em que pressentimos a hipótese de alguma transcendência. Em causa, através das imagens, está a nossa relação com o sagrado. Não apenas como possibilidade, mas como desejo.