OKJA (2017) |
Notícias do continente asiático revelam um espectacular crescimento do consumo caseiro de filmes: com ou sem covid-19, as plataformas de streaming desempenharão um papel fulcral no futuro do cinema — este texto foi publicado no Diário de Notícias (25 Abril).
Foi há apenas três anos. Na secção competitiva do Festival de Cannes de 2017, dois filmes surgiram como verdadeiros “aliens”: Okja, do sul-coreano Bong Joon-ho, uma parábola ecológica centrada num simpático “monstro” que uma jovem tenta proteger da avareza de uma multinacional, e The Meyerowitz Stories (New and Selected), do americano Noah Baumbach, retrato íntimo de uma família a ajustar contas com as suas memórias.
Qual a estranheza? Na altura, os filmes apresentavam-se unidos por um factor que, de uma maneira ou de outra, todos encarámos com um misto de perplexidade e curiosidade, alguns com inquietação: ambos exibiam chancela de produção da Netflix. Houve mesmo elementos da classe jornalística que acharam por bem formular uma dúvida deontológica: passado o festival, faria sentido estar a comentar filmes que seriam difundidos apenas online, numa das chamadas plataformas de streaming?
Convém recordar que se iniciava aí um episódio dramático da difusão cinematográfica que, três anos mais tarde, está longe de estar encerrado: apesar dos esforços negociais do certame, a Netflix fazia saber que não exibiria os referidos filmes no circuito tradicional das salas. Aliás, o próprio presidente do júri, Pedro Almodóvar, achou por bem declarar que encarava como um “enorme paradoxo” premiar um filme que não seria visto nas salas (nenhum constou do palmarés).
Na sequência de protestos dos exibidores franceses, o diferendo Cannes/Netflix agravou-se e, em boa verdade, continua por resolver (tendo a Netflix encontrado diferente receptividade em Veneza, a ponto de outra das suas produções, Roma, de Alfonso Cuarón, aí ter arrebatado o Leão de Ouro de 2018). Ironicamente, em 2019, Bong Joon-ho regressaria a Cannes, conquistando a Palma de Ouro com Parasitas (que não é uma produção Netflix), desse modo abrindo um novo capítulo artístico e comercial, não apenas para a produção sul-coreana, mas em boa verdade, nem que seja no plano simbólico, para todo o cinema asiático.
A história prossegue. No começo desta semana, a Media Partners Asia (empresa de análise dos mercados da Ásia-Pacífico) divulgou um relatório segundo o qual o confinamento motivado pelo covid-19 gerou um aumento exponencial do consumo caseiro de produtos audiovisuais. Assim, por exemplo, agregando dados provenientes da Indonésia, Malásia, Filipinas e Singapura, recolhidos entre 20 de janeiro e 11 de abril, sabemos que o tempo de consumo das plataformas de streaming aumentou 60 por cento.
Como é óbvio, todas as entidades envolvidas no streaming estão a ganhar com esta situação. A Netflix emerge como líder da maior parte dos mercados asiáticos: o tempo médio de consumo dos respectivos produtos aumentou 115 por cento; os conteúdos mais procurados são o cinema coreano, a animação de raiz japonesa (Anime) e, por fim, as produções dos EUA e da Europa.
Três anos passados sobre as atribulações de Okja e The Meyerowitz Stories em Cannes, talvez seja oportuno sublinhar dois factores emblemáticos de toda esta conjuntura: primeiro, a Netflix confirma-se como pedra de toque de uma situação que há muito superou o domínio fundamental, mas restrito, dos festivais de cinema; segundo, para lá da Netflix, o papel das plataformas de streaming, grandes ou pequenas (observe-se a evolução da oferta em Portugal, nomeadamente através da Filmin), vai-se tornando cada vez mais decisivo na percepção artística e na vida comercial dos filmes. Envolvendo tudo isso, deparamos com uma evidência global. A saber: a crescente importância dos mercados asiáticos na dinâmica industrial do cinema que se faz e difunde em todo o mundo.
Em 1967, na paisagem de uma Europa pontuada por muitas convulsões, o italiano Marco Bellocchio realizou um filme admirável sobre a contaminação das lutas políticas pelo maoísmo. Tinha o título sugestivo de La Cina È Vicina, à letra, “A China está próxima”. Agora, a proximidade é de outra natureza, mas não exclui a dimensão política e, em particular, a urgência de genuínas políticas culturais. Com ou sem covid-19, o futuro do cinema passa pelas plataformas de streaming — para o melhor e para o pior.