domingo, janeiro 31, 2016

João Botelho: arte & natureza

João Botelho "documenta" o trabalho de quatro artistas, reavaliando as relações entre as formas e as suas matérias inspiradoras — este texto foi publicado no Diário de Notícias (28 Janeiro), com o título 'Filmar a arte e a natureza'.

Quatro artistas: João Queiroz, Jorge Queiroz, Pedro Tropa e Francisco Tropa. O filme Quatro, de João Botelho [estreado em 2014, no Doclisboa] descobre-os, antes do mais, a partir de um austero didactismo: quatro capítulos numerados para propor uma deambulação pelos seus trabalhos (desenho, pintura, fotografia, escultura) e pelas condições materiais da respectiva produção — estamos, enfim, perante o rigor de um documentarismo seduzido pela pluralidade do labor das formas e com as formas.
Ao mesmo tempo, tudo isso vai encontrando ecos, rimas e hipóteses simbólicas nos elementos de uma natureza exuberante que, por assim dizer, cerca os artistas numa clausura paradoxalmente libertadora. Os resultados são magníficos: a partir de um modelo (“documentário-sobre-arte”) saturado de clichés televisivos, Botelho consegue fazer um filme de tocante beleza e metódica elegância que está longe de se reduzir a um “intervalo” criativo. Nada disso: Quatro tem a dimensão, o peso e a importância de um objecto que cristaliza temas e obsessões de todo o universo criativo do cineasta.

sábado, janeiro 30, 2016

A aventura de "The Revenant" (2/3)

Não apenas filmar a saga aventurosa do Oeste, mas praticar o cinema como uma aventura que desafia a própria natureza: eis o projecto de The Revenant — este texto foi publicado no Diário de Notícias (21 Janeiro), com o título 'O regresso do “western” ao realismo das paisagens naturais'.

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A adaptação do livro de Michael Punke sobre a odisseia de Glass (editado entre nós pela Marcador) podia ter sido resolvida através dos mais modernos recursos digitais. Tratava-se, afinal, de filmar as arriscadas cenas de acção com os actores em estúdio, integrando na imagem os cenários naturais através dos artifícios do “chroma” (o ecrã verde, também usado nos estúdios de televisão, que permite inserir as imagens de qualquer paisagem). Mas, desde o início, para Iñárritu, tal opção estava posta de parte: era preciso que os vales e montanhas, com neve (muita neve!...), fossem vistos e sentidos pelo espectador como um contexto visceralmente realista. Como se se tratasse de repetir a história: depois de ter posto à prova a capacidade de sobrevivência das personagens da primeira metade do século XIX, as paisagens naturais seriam, agora, um desafio para actores e técnicos.
Nas entrevistas que têm dado, tanto Iñárritu como elementos da sua equipa insistem em explicar as dificuldades resultantes das condições atmosféricas que foi preciso enfrentar, em particular as baixíssimas temperaturas. O desaparecimento prematuro da neve nas paisagens do Canadá (onde estava previsto decorrer o essencial da rodagem) obrigou mesmo, na fase final, a uma mudança para zonas montanhosas da Argentina. Consequência prática: o orçamento inicial de 60 milhões de dólares disparou para 135 milhões (perto de 125 milhões de euros).
Daí a importância extrema do contributo da direcção fotográfica de Emmanuel Lubezki. Colaborador habitual de Iñárritu (ganhou um Oscar com Birdman e volta a estar nomeado), Lubezki aposta, aqui, numa depuração visual também ela alheia aos efeitos digitais: trata-se de filmar com a luz natural disponível, conferindo a O Renascido uma verdade material a que apetece chamar documental, já que os elementos da ficção emergem num clima de “reportagem” — é no confronto com a resistência do próprio território que os actores cumprem o desafio de inventar as suas personagens.

sexta-feira, janeiro 29, 2016

Jacques Rivette (1928 - 2016)

Nome fulcral da Nova Vaga francesa, mestre absoluto do cinema moderno, Jacques Rivette faleceu a 29 de Janeiro — contava 87 anos.
Se há cineastas que desafiam, de uma só vez, os modelos convencionais do cinema e os modos do seu consumo, Rivette foi, por certo, nesse domínio, um dos mais puros e também mais radicais. Alguns espectadores portugueses recordar-se-ão, provavelmente, da passagem de Out 1: Noli Me Tangere (1971), no Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian (quando a respectiva programação estava a cargo de João Bénard da Costa): na sua duração integral — 749 minutos, isto é, 12h 29m —, o filme estava para além de qualquer duração ou métrica. Porquê? Porque, em boa verdade, inventariando os impasses e angústias herdados de Maio 68, nele se consumava uma ideia de cinema que, no limite, coincidia com uma ideia de vida.
Não admira, por isso, que Rivette tenha sido um criador permanentemente seduzido pelo teatro, ou melhor, pela teatralidade — incluindo a que marca o circo ambulante de Jane Birkin e Sergio Castellitto que descobrimos no seu filme final, 36 Vistas do Monte Saint-Loup (2009). Não se tratava de fugir à vida para saborear as delícias do artifício, mas de observar como a dicotomia tradicional entre o "vivido" e o "representado" condensa uma pobre ideia sobre a riqueza e complexidade dos destinos humanos.
O seu filme A Religiosa (1966), baseado em Diderot, protagonizou uma polémica histórica, sobre a liberdade de expressão na sociedade francesa. Em qualquer caso, Rivette foi persistindo como uma personagem discreta, por assim dizer, um guardião de um saber ancestral humildemente expresso em obras luminosas como L'Amour Fou (1969), revendo os bastidores do teatro como filtro mágico dos destinos humanos, A Bela Impertinente (1991), expondo o espaço de confronto, material e sensual, entre um pintor e o seu modelo, ou Sabe-se Lá (2001), reencontrando, com infinita elegância, o sabor primitivo da comédia burlesca.
Podemos, talvez, resumir o seu génio aplicando-lhe as palavras com que ele próprio condensou a arte de Howard Hawks (num texto intitulado, justamente, 'O génio de Howard Hawks', publicado no nº 23 dos Cahiers du Cinéma, de Maio de 1953): "É verdade que os extremos nos fascinam, como nos fascina tudo o que é arriscado e excessivo, e que reconhecemos grandeza na falta de moderação — daí resulta que nos sintamos intrigados pelo choque dos extremos, uma vez que nele se reúne a precisão intelectual das abstracções com o elemento mágico dos grandes impulsos terrenos, ligando, numa afirmação de vida, as tempestades às equações. A beleza de um filme de Hawks provém deste tipo de afirmação, convicta e serena, sem remorsos e com energia. É uma beleza que demonstra a existência pela respiração e o movimento pela caminhada. Que aquilo que é, é."

>>> Trailer de uma reposição americana de Out 1: Noli Me Tangere.


>>> Obituário de Jacques Rivette: Le Monde + The Guardian + The New York Times.

quinta-feira, janeiro 28, 2016

A moda segundo David Bowie

FOTO: Masayoshi Sukita, 1973
Se David Bowie é indissociável das convulsões da moda, não é porque as tivesse seguido — limitou-se a criá-las. É isso mesmo que podemos (re)ver através da homenagem prestada pelo site Fashionising, coligindo "15 momentos" da sua trajectória também como ícone da moda — aqui ficam dois desses momentos, ambos assinados por Masayoshi Sukita.
FOTO: Masayoshi Sukita, 1989

Trompete, contrabaixo & etc.

No catálogo da Clean Feed, Susana Santos Silva (trompete) e Torbjörn Zetterberg (contrabaixo) tinham já exposto a singularidade da sua colaboração no álbum Almost Tomorrow (2013): uma teia de rimas sonoras e clivagens estruturais que gerava um sereno conceito de cumplicidade [video Porta Jazz: em concerto]. Agora, em If Nothing Else, mantém-se a conjugação de esforços, com a sonoridade insólita e complementar do órgão de Hampus Lindwall [lembremos também a experiência paralela do quinteto de Susana Santos Silva]. O resultado tem algo de ascético, caminhando no sentido de um minimalismo que, adequadamente, desemboca no tema final do alinhamento, intitulado One Note Song — ou como a austeridade do som revela os enigmas de imensas paisagens.

Massive Attack e Tricky — o reencontro

Heligoland, o quinto e mais recente álbum de estúdio publicado pelos Massive Attack, está a completar seis anos — saíu a 8 de Fevereiro de 2010. As hipóteses de um novo registo têm surgido, de forma intermitente, desde 2013, mas sem ultrapassar o domínio da especulação. Mas aí está uma novidade: podemos supor que Robert Del Naja e Grant Marshall estão mesmo à beira de qualquer coisa mais consistente, quanto mais não seja porque reaparecem, agora, aliados ao seu companheiro Tricky (que abandonou o grupo para seguir uma carreira autónoma, em 1994, depois da edição de Protection, o álbum nº 2).
Assim, Tricky participa no tema Take It There, quarta e última faixa de um EP acabado de sair e intitulado Ritual Spirit — o respectivo teledisco, realizado por Hiro Murai e protagonizado pelo actor John Hawkes, é um breve e sofisticado exercício que cruza a solidão mais cruel com o apelo da dança.

A IMAGEM: Flora Borsi, 2015

FLORA BORSI
Animeyed
2015

Savages, opus 2

Grande revelação de 2013, o quarteto feminino de Londres Savages acaba de editar o seu segundo álbum, Adore Life — mais um exercício poético nas margens do punk do qual saíu, para já, o magnífico teledisco de Adore.

quarta-feira, janeiro 27, 2016

A aventura de "The Revenant" (1/3)

Alejandro González Iñárritu e Leonardo DiCpario
Não apenas filmar a saga aventurosa do Oeste, mas praticar o cinema como uma aventura que desafia a própria natureza: eis o projecto de The Revenant — este texto foi publicado no Diário de Notícias (21 Janeiro), com o título 'O regresso do “western” ao realismo das paisagens naturais'.

Será desta que Leonardo DiCaprio vai ganhar um Oscar? A pergunta, misto de especulação e esperança, circula por todas as zonas do mapa cinéfilo e, a acreditar nos analistas de Hollywood especializados em sopesar os prós e contras das estatuetas douradas, desembocará num desenlace feliz: a interpretação de Hugh Glass (c. 1780-1833), lendário explorador e caçador dos estados americanos por onde passa o rio Missouri (Montana, Dakota do Norte, etc.), valerá ao actor a consagração dos seus pares.
Ainda assim, mesmo na máxima admiração pelo trabalho e carreira de DiCaprio, convém não simplificar: o filme em que interpreta Glass — The Revenant: O Renascido — impõe-se como uma invulgar experiência cinematográfica que transcende, e muito, as singularidades de qualquer performance individual. Dir-se-ia que para o realizador Alejandro González Iñárritu um dos fundamentais princípios de trabalho continua a ser a construção de cada filme como uma experimentação dos limites, um desafio que envolve tanto a estrutura narrativa quanto a própria experiência física de rodagem.
O ano passado, com Birdman, Iñárritu conseguiu um reconhecimento invulgar: a alucinante viagem pelos bastidores da Broadway, combinando “em continuidade” realismo e onirismo, arrebatou quatro Oscars, três deles para Iñárritu, na qualidade de co-produtor (melhor filme), co-argumentista (argumento original) e realizador. Agora, O Renascido está na linha da frente para a cerimónia que terá lugar a 28 de Fevereiro, com nada mais nada menos que doze nomeações, incluindo de novo as de melhor filme e melhor realizador, além das de DiCaprio (actor) e Tom Hardy (actor secundário).

Sound + Vision Magazine
Especial David Bowie



Foi assim, no passado dia 19 no auditório da Fnac Chiado. Uma edição especial do Sound + Vision Magazine dedicada a David Bowie. A casa estava cheia. E para quem lá não esteve, fica aqui o registo gravado em vídeo do que ali aconteceu.

Novas edições:
Peter Astor, Spilt Milk

Militou pelos The Loft e Weather Profets, nomes que ajudam a contar a história pop/rock indie britânica dos oitentas e que podemos associais a primeiros passos da Creation Records. Mais tarde formaria os Wisdom of Harry e o coletivo instrumental Ellis Island. Foi contudo na alvorada dos anos 90, quando pela primeira vez se apresentou a solo, com Submarine (1990), que nos deu o seu disco de referência, uma brilhante coleção de canções que cruzam um registo storyteller de escritor de canções com uma música não minimalista, mas ciente daquela máxima que defende que o pouco pode ser muito. Ali havia sinais de personalidade na forma de usar as palavras e uma vontade evidente em seguir o trilho mais clássico de uma música que tinha no diálogo entre as guitarras e a voz a medula da sua identidade.

Ao sublime disco de 1990 (que é uma pérola esquecida dos noventas e merece ser redescoberto) juntou capítulos de continuidade em Zoo (1991), Paradise (1992, editado como Peter Astor & Holy Road) e God and Other Stories (1993), que fecha um ciclo de produção regular e intensa, mais aclamado por quem o escutou do que feito sucesso (e convenhamos que os climas ora lançados ao festim indie dançável da alvorada dos noventas, o shoegaze, o acid jazz e o emergir do trip hop, que estavam na mira das atenções, não eram destinos pelos quais esta música passasse).

Seguiu-se um hiato feito a bordo de outras bandas, regressando aos discos em nome próprio em Hal’s Eggs (2004), mas com um “R” a menos no nome – passa a assinar como Pete Astor –  Songbox (2011), sendo o novo Spilt Milk o mais recente episódio deste trilho agora mais tranquilo no ritmo de lançamentos mas, ao mesmo tempo, representando aquele que mais parece querer retomar as linhas pelas quais Peter Astor fazia as suas canções na alvorada dos noventas.

O músico, que desde há alguns anos tem um percurso académico em musicologia na Universidade de Westminster e que tem partilhado a escrita de música com a de artigos sobre música (assinou inclusivamente em 2014 um volume para a série 33 1/3 sobre o clássico Blank Generation de Richard Hell & the Voidoids, uma peça pioneira do punk nova iorquino), apresenta em Spilt Milk um disco que na verdade só entorna o leite no título.

Este é um disco de canções simples, de arranjos minimalistas focados nos mais clássicos diálogos que o músico tem travado com as guitarras (acústica e elétrica). Gravado em casa, com a ajuda de uma equipa mínima, e letras feitas de coisas do dia a dia, o álbum pode não traduzir aquele sonho de Alan McGee (o fundador da Creation) que via em Peter Astor o “novo Dylan”. Mas recorda-nos um grande autor e intérprete e tem aqui o seu melhor disco em 25 anos.

O génio de "Anomalisa" (2/2)

Um grande filme de animação? Sem dúvida. Ou mais simplesmente: Anomalisa é um grande filme — este texto foi publicado no Diário de Notícias (20 Janeiro), com o título 'Os bonequinhos são gente viva'.

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Quando Marlon Brando revolucionou as formas de representar no cinema americano, a partir de Um Eléctrico Chamado Desejo (1951), de Elia Kazan, o suor da sua pele impôs-se como um sinal intenso e irredutível. Dir-se-ia que o corpo fazia valer a sua verdade mais básica, desafiando todas as formas tradicionais de representação perante uma câmara.
Escusado será dizer que, 65 anos mais tarde, um filme tão fascinante como Anomalisa pertence a outro universo cinematográfico. Além do mais, pormenor nada secundário, este é um filme de figurinhas animadas... Ainda assim, como não reconhecer que a estranheza de tudo isto se faz também de uma insólita proximidade física e, mais do que isso, de um verdadeiro envolvimento afectivo com as atribulações de Michael e Lisa?
A proeza a que assistimos será tudo o que se quiser, menos vulgar ou previsível. Conhecíamos Charlie Kaufman como narrador rebelde e inclassificável, apostado em desafiar as normas correntes da própria narrativa (ou as normas das narrativas correntes). Como argumentista, o seu currículo inclui proezas como a bizarra fantasia de Queres Ser John Malkovich? (Spike Jonze, 1999) ou o romantismo transcendental de O Despertar da Mente (Michel Gondry, 2004), este último consagrado com um Oscar de melhor argumento original. Agora, contando com a colaboração de Duke Johnson, um especialista de técnicas de animação, Kaufman confronta-nos com uma espécie de romantismo virado do avesso.
O efeito mais espantoso de Anomalisa envolve um paradoxo eminentemente realista. Por um lado, entramos no filme como quem descobre um parque de curiosidades em que aqueles bonecos de movimentos sincopados parecem provir de um planeta distante. Por outro lado, a pouco e pouco, as suas presenças (os seus corpos, justamente) adquirem uma contagiante verdade existencial — e reconhecemos que os bonequinhos são gente viva como nós.
Nada disto poderá ser desligado do facto de a origem de Anomalisa ser, não um conceito figurativo, mas um dispositivo teatral, quer dizer, uma forma específica de tratamento da palavra. Tudo começou por uma peça de Kaufman (assinada com o pseudónimo Francis Fregoli), encenada pelo compositor Carter Burwell como uma cerimónia de palco: os actores eram “apenas” leitores dos diálogos, num espaço sem outra encenação que não fosse a criação de uma determinada ambiência sonora. Dir-se-ia que a passagem a filme conservou essa sensação ambígua de que tudo acontece num mundo alternativo que repete, ponto por ponto, a vibração física da nossa experiência de vida.
David Thewlis dá voz a Michael, sendo Lisa interpretada por Jennifer Jason Leigh; além disso, como se diz no genérico, Tom Noonan interpreta “todos os outros”. Neste coro de vozes, tecido de muitas coincidências e algumas diferenças, tudo parece ameaçado por um sonho mau (descobriremos, aliás, que há qualquer coisa de inquietante nas linhas dos rostos...). Ao mesmo tempo, quanto mais nos embrenhamos no artifício da representação, mais sentimos a energia do realismo. Coincidência ou não, era essa a sublime lição de Marlon Brando.

segunda-feira, janeiro 25, 2016

The Chemical Brothers + Beck

Com a voz inconfundível de Beck, a canção Wide Open pertence a Born in the Echoes, oitavo álbum de The Chemical Brothers, lançado em 2015. Surge, agora, figurada (a palavra é deliciosamente equívoca...) num fabuloso teledisco, assinado por Dom & Nic — ou como o corpo já não é o que era.

Memória de Ettore Scola

Com a morte de Ettore Scola, no dia 19 de Janeiro (contava 84 anos), desapareceu um dos símbolos do "cinema social" italiano — este texto foi publicado no Diário de Notícias (21 Janeiro), com o título 'Dias inesquecíveis'.

Em 1962, ainda antes de se estrear na realização, Ettore Scola surgiu associado (como argumentista) a um filme fulcral do cinema italiano da época: A Ultrapassagem, de Dino Risi, com Vittorio Gassman e Jean-Louis Trintignant. Na sua aparente ligeireza, a crónica da viagem de dois homens à procura de qualquer coisa de aventuroso envolvia uma desencantada visão do “liberalismo” da sociedade de consumo e da sua metódica destruição das relações humanas.
Simbolicamente, há outra maneira de dizer isto: as ilusões redentoras do neo-realismo tinham-se dissipado na poeira do tempo; os heróis trágicos davam lugar à banalidade de cidadãos alheios a qualquer ousadia heróica — será preciso recordar que Feios, Porcos e Maus (1976) se tornou um dos mais fortes emblemas da trajectória criativa de Scola?
Tal como Michelangelo Antonioni ou Federico Fellini, foi um cineasta atento às temáticas “sociais”. Em vez da perturbação filosófica do primeiro ou do utopismo obsessivo do segundo, cultivou um realismo crítico que, em determinado momento, talvez reflectindo a formatação televisiva de muitas produções italianas, terá deixado de o satisfazer. Daí o gosto metafórico de O Baile (1983), condensando várias décadas da Itália num recinto de dança, ou a mágoa nostálgica de Esplendor (1989), centrado no desmantelamento de uma velha sala de cinema. Uma das mais depuradas expressões dessa teia de sentimentos está em Um Dia Inesquecível (1977), melodrama intimista construído a partir do diálogo de duas personagens marginais, tendo por pano de fundo uma visita de Hitler à Itália de Mussolini; além do mais, tendo sido Scola um atento director de actores, raras vezes vimos Sophia Loren e Marcello Mastroianni num registo tão despojado e tocante como o que conseguem nesse filme.

>>> Obituário no New York Times.

A IMAGEM: Charlotte Wales (2016)

CHARLOTTE WALES
Odette Pavlova
The Line, Janeiro 2016

domingo, janeiro 24, 2016

O Presidente de António Costa

FOTO: PS
>>> Marcelo, candidato do PS [1 + 2]
>>> Como o PS dá a vitória a Marcelo

1. António Costa conseguiu ver o "seu" candidato eleito para a Presidência da República Portuguesa.

2. Se é verdade que, mal ou bem, o Partido Socialista continua a ser o pêndulo do espaço político-eleitoral, a eleição de Marcelo Rebelo de Sousa para o cargo de Presidente da República vem criar condições menos crispadas para o trabalho político do primeiro-ministro. Isto porque a eleição de qualquer candidato "emanado" do PS (leia-se: Sampaio da Nóvoa ou Maria de Belém) iria ampliar a frente interna de combate, inevitavelmente agravando as contradições internas do partido. Além do mais, a presença em Belém de uma personalidade historicamente distante do PS permitirá a António Costa encontrar novas forças argumentativas para manter o equilíbrio instável com a sua "esquerda", isto é, o Bloco de Esquerda e o Partido Comunista.

3. Ao mesmo tempo, o desnível de votos nas candidaturas de BE e PCP — com uma clamorosa derrota dos comunistas — reabre a questão ideológica da definição da "esquerda", uma vez mais criando condições para repensar as facilidades mediáticas da dicotomia "direita/esquerda". Em qualquer caso, é duvidoso que algum dos actores desta cena tenha a coragem elementar de apontar o mais óbvio, a saber, a crescente fragilidade de tal dicotomia para pensar o nosso aqui e agora — talvez Marcelo.

Ensinar a pensar [citação]

FOTO: CNRS
>>> Vivemos um tempo mundializado em que todos os humanos vivem em comum perigos e problemas vitais. Mas como os espíritos se fecham na sua identidade particular, esquecem a sua identidade humana. A crise do mundo impede de ver o mundo. É preciso integrar a identidade humana, terrestre, na nossa educação. É preciso integrar nela a compreensão do outro, já que a incompreensão causa inúmeros sofrimentos. É preciso armar os espíritos jovens para enfrentar as incertezas da vida. É preciso ensinar a pensar de forma complexa, porque as visões redutoras e unilaterais conduzem aos piores erros.

EDGAR MORIN
14 Janeiro 2016

Os melhores discos de 2015 [JL]

Aqui, ainda mais do que nos filmes, vejo-me compelido a solicitar a indulgência do leitor: "aquele" disco que outros classificam de incontornável (e não tenho nenhuma razão para duvidar), provavelmente não o ouvi... Em todo o caso, confesso algum cansaço pelo experimentalismo chic que circula um pouco por todo o lado, inevitavelmente favorecido pelos modos virtuais, virtualmente acelerados, de escuta da música.
Por isso também, devo reconhecer, com algum embaraço, mas sem sentimento de culpa, a minha fidelidade aos "velhos" que não páram de nos surpreender (até saíu o 100º álbum oficial de Frank Zappa!). Dito isto, deixo-vos a volatilidade da habitual lista, acompanhada por alguma música com imagens ou, se quiserem jogar com as palavras, alguma música imaginada — Even when the world turns its back on me / That could be a war, but I'm not Joan of Arc...

FADO PORTUGUÊS, Amália Rodrigues
 DANCE ME THIS, Frank Zappa
 REBEL HEART, Madonna
 CREATION, Keith Jarrett
 SAVE YOUR BREATH, Kris Davis Infrasound
 HONEYMOON, Lana Del Rey
 ALGIERS, Algiers
 APOCALYPSE, GIRL, Jenny Hval
 DODGE AND BURN, The Dead Weather
 ABYSS, Chelsea Wolfe

 >>> Lana Del Rey (Music To Watch Boys To) + Algiers (Black Eunuch) + The Dead Weather (I Feel Love (Every Million Miles)).





A IMAGEM: Steven Klein, 2005

STEVEN KLEIN
Brad Pitt e Angelina Jolie
W / Julho 2005

sábado, janeiro 23, 2016

Memórias de Pierre Boulez (3/3)

[ 1 ]  [ 2 ]

Fundador e director do Institut de Recherche et Coordination Acoustique/Musique (IRCAM), organismo ligado às estruturas do Centro Pompidou, Pierre Boulez foi, como compositor e maestro, uma personalidade sempre aberta aos riscos de todos os experimentalismos. O Ensemble Intercontemporain, actualmente dirigido pelo maestro Matthias Pintscher, está indissociavelmente ligado à história do IRCAM, por vezes interpretando obras do próprio Boulez. Eis um exemplo: Répons, composição para orquestra de câmara, seis solistas e electrónicas, estreada em 1981 (mas apenas consolidada em 1984), num registo na Filamornia de Paris, a 11 de Junho de 2015.

sexta-feira, janeiro 22, 2016

O génio de "Anomalisa" (1/2)

Um grande filme de animação? Sem dúvida. Ou mais simplesmente: Anomalisa é um grande filme — este texto foi publicado no Diário de Notícias (20 Janeiro), com o título 'Um filme de animação sem fadas nem monstros'.

É relativamente simples resumir o ponto de partida de um filme como Anomalisa. Tudo acontece em torno de Michael Stone, especialista em “auto-ajuda” que está em Cincinatti para uma conferência sobre o seu novo livro; cansado com as suas próprias rotinas, marca encontro com Bella, uma antiga namorada, mas a conversa corre muito mal — até que Stone depara com Lisa, uma figura de aparência frágil que está em Cincinatti para assistir à sua apresentação...
Charlie Kaufman
História das ilusões e desilusões da idade adulta? Fábula sobre as enigmáticas diferenças entre o movimento amoroso e a pulsão sexual? Crónica sobre um mundo sustentado por uma teia de “comunicações”, “partilhas” e “ajudas”, mas em que, de facto, as pessoas se sentem cada vez mais sós? Um pouco de tudo isso, sem dúvida. Apetece até lembrar que conhecemos muitos filmes construídos a partir do mesmo misto de esperança e angústia. Resta saber se alguma vez vimos tais temas e situações tratados em... cinema de animação.
É verdade: realizado por Charlie Kaufman e Duke Johnson, Anomalisa foi fabricado com bonequinhos e outros objectos manipulados imagem a imagem (“stop motion”). No entanto, ao contrário da tradição do género, não aborda mundos mais ou menos alternativos e fantasistas, com fadas e monstros, propondo antes uma história dos nossos dias, com temas e personagens adultas. A sua presença na lista de nomeados para o Oscar de melhor longa-metragem de animação não pode deixar de envolver uma desconcertante ironia: por um lado, foi feito com o mesmo tipo de técnica de A Ovelha Choné, produzido pelos estúdios britânicos Aardman; por outro lado, a sua discreta carreira comercial nas salas dos EUA coloca-o num campeonato muito diferente do favorito Divertida-Mente, o mais recente sucesso da Pixar com distribuição dos estúdios Disney.
Ainda assim, na história recente da animação cinematográfica, Anomalisa não pode ser considerado um objecto isolado. Além do mais, convém não esquecer que a técnica que utiliza é conhecida desde os tempos heróicos do cinema mudo. Uma das primeiras grandes aventuras do sonoro, King Kong (1933), de Merian C. Cooper e Ernest B. Shoedsack, utilizava os seus recursos, mais tarde especialmente importantes nas aventuras concebidas pelo mestre dos efeitos visuais Ray Harryhausen (1920-2013), em títulos como A 7ª Viagem de Sinbad (1958), Os Argonautas (1963) ou O Vale dos Monstros (1969). Figura nuclear neste processo tem sido Tim Burton, como realizador e produtor, através de experiências em que o macabro não exclui o poético, como O Estranho Mundo de Jack (1993), A Noiva Cadáver (2005) ou Frankenweenie (2012).
De facto, a história moderna da animação não pode ser condensada na ideia segundo a qual se passou “apenas” do desenho tradicional para as técnicas digitais, geridas por computadores cada vez mais sofisticados. Claro que tal passagem é fundamental. Basta lembrar o impacto de A Pequena Sereia (1989), dos estúdios Disney, relançando a animação tradicional, e depois a revolução iniciada com Toy Story (1995), da Pixar, primeira longa-metragem totalmente fabricada por computador.
O certo é que temos assistido a uma coexistência de opções técnicas e criativas em que, curiosamente, os valores da animação tradicional não desapareceram. Por exemplo, o mestre japonês Hayao Miyazaki, embora pontualmente integrando algum tratamento computorizado, é um dos que se manteve fiel ao classicismo da aguarela em títulos tão célebres como A Princesa Mononoke (1997) ou A Viagem de Chihiro (2001). E há ainda o caso de Robert Zemeckis que, na fábula natalícia Polar Express (2004) e no épico Beowulf (2007), explorou o chamado “motion capture”, em que os desenhos animados são concebidos a partir do registo prévio da interpretação dos actores.
Este método terá tido a sua concretização mais ambiciosa, porventura também sofisticada, em As Aventuras de Tintin (2011), uma produção de Steven Spielberg e Peter Jackson, com realização do primeiro, mas os fracos resultados de bilheteira acabaram por comprometer o projecto inicial de uma trilogia.
Uma coisa é certa: mais do que um mero veículo para histórias infantis, mais ou menos ligadas à tradição das fábulas, a animação afirma-se hoje, tanto no plano industrial como artístico, como um domínio de produção capaz de tocar os públicos mais variados. No caso de Anomalisa, a dupla de realizadores quis, desde o princípio, garantir que as singularidades do projecto não seriam anuladas por qualquer formatação imposta por um estúdio de Hollywood. Assim, o financiamento do filme foi iniciado através do Kickstarter, plataforma online para angariação de fundos (“crowdfunding”); depois, o projecto foi consolidado pelo produtor Dino Stamatopoulos que, em última instância, conseguiu que um grande estúdio (Paramount) se interessasse pela sua distribuição. Anomalisa já ganhou o Grande Prémio do Júri de Veneza e, na noite de 28 de Fevereiro, vai ser o objecto mais insólito entre os nomeados para os Oscars.

A criação segundo Keith Jarrett

FOTO: Rose Anne Colavito / ECM
Há quem considere que o mal estar que, por vezes, acompanha as performances públicas de Keith Jarrett (n. 1945), levando-o a protestar contra os espectadores que não conseguem respeitar o silêncio exigido, ou mesmo a abandonar o palco, justificaria que o pianista tomasse aquela que foi a opção final de Glenn Gould. A saber: desistir dos concertos e investir todas as suas energias no trabalho de gravação no recato do estúdio.
Podemos admitir que tal hipótese já foi considerada pelo próprio. Mas obviamente não assumida. O seu álbum Creation, lançado pela ECM a 8 de Maio de 2015 (data do 70º aniversário de Jarrett), é a demonstração eloquente de um desejo de improvisação que, em última instância, procura a vulnerabilidade inerente à exposição em palco e ao seu singular impulso criativo (é disso que o título fala).
Antologiando nove partes de seis concertos de 2014, realizados em quatro cidades (Tóquio, Toronto, Paris e Roma), Creation é uma colecção de momentos de indizível confessionalismo, de alguma maneira procurando um lugar entre a herança de compositores que já gravou (Bach, sem dúvida, talvez Shostakovich) e a deriva jazzística [em baixo, alguns extractos colocados online pela Universal Music France].
Dir-se-ia que Jarrett não desiste da verdade muito física do toque das teclas, desse modo arriscando viver a sua radical solidão numa partilha relutante com os incautos espectadores — enquanto nos doar discos como este, todos os seus pecados lhe serão perdoados.

quinta-feira, janeiro 21, 2016

O prazer segundo Ophüls

Uma pérola da filmografia de Max Ophüls reapareceu no mercado — este texto foi publicado no Diário de Notícias (7 Janeiro), com o título 'Clássico de Ophüls lançado em DVD'.

Crise do DVD? É o que proclamam muitos especialistas... Em todo o caso, convém dizer que o mercado português chegou a um insólito paradoxo: por um lado, há um claro desinvestimento na promoção da maioria dos seus produtos; por outro lado, a sua notável diversidade merece que o cinéfilo mais exigente continue a prestar-lhe a devida atenção.
Max Ophüls
Aí está mais uma prova eloquente. É certo que estamos a falar de um DVD (ed. Films4You) que não contém menus de navegação nem contempla a possibilidade de retirar as legendas (aspectos que, a meu ver, contribuem para “desvalorizar” a edição junto do consumidor). Seja como for, a possibilidade de vermos ou revermos O Prazer (1952), de Max Ophüls, é sempre um especial acontecimento.
Trata-se do antepenúltimo título de Ophüls, realizado em França depois do seu período em Hollywood; os dois títulos finais continuam a ser, aliás, os mais conhecidos da sua filmografia: Madame De... (1953) e Lola Montès (1955). Adaptando três histórias de Guy de Maupassant, narradas pelo autor (numa interpretação de Jean Servais), O Prazer integra alguns dos nomes grandes do cinema francês da época (Danielle Darrieux, Pierre Brasseur, Jean Gabin, etc.) para nos confrontar com uma visão tão desencantada quanto pragmática dos impulsos amorosos, celebrando a difícil arte de aceitação dos desejos do outro. Tudo isto, convém sublinhá-lo, numa edição de magnífica qualidade técnica, preservando, em particular, as nuances da admirável fotografia a preto e branco.

quarta-feira, janeiro 20, 2016

Melodrama clássico?


* BROOKLYN, de John Crowley [nota no DN]

Adaptado do romance de Colm Tóibín sobre uma jovem irlandesa que, na década de 1950, tenta concretizar nos EUA o sonho de uma vida “alternativa”, Brooklyn é um filme que produz uma estranha sensação de coisa “antiga”. Não pela época abordada, entenda-se, antes pela ilusão de querer refazer as componentes do grande melodrama clássico de Hollywood sem nunca conseguir sair do esforço decorativo de um rotineiro telefilme de “reconstituição” de uma época. Será preciso recordar que a herança dos mestres (Minnelli, Cukor, etc.) começa nas personagens, não na aplicação mecânica dos recursos de produção?...
Não vem daí grande mal ao mundo, mas prevalece a sensação de que a subtileza com que Saoirse Ronan compõe a personagem central merecia outro enquadramento, mais arriscado e inventivo, capaz de contrariar este academismo tão simpático quanto desprovido de energia. Em qualquer caso, podemos acreditar nas previsões que garantem que, no mínimo, receberá uma nomeação para o Oscar de melhor actriz [o filme acabaria por ter três nomeações: melhor filme, melhor actriz e melhor argumento adaptado, para Nick Hornby].

A IMAGEM: Chen Man, 2016

 CHEN MAN
Sasha Pivovarova / Vogue (China)
Fevereiro 2016

terça-feira, janeiro 19, 2016

FNAC — especial David Bowie [hoje]

FOTO: Jimmy King, 2015
Voltamos hoje à FNAC (Chiado, 18h30) para um magazine especial, integralmente dedicado a David Bowie — música, imagens e memórias de um gigante do século XX (... e XXI).

segunda-feira, janeiro 18, 2016

O Sporting segundo Marisa Matias

A. Como se diz na gíria da Net, as "redes sociais" agitaram-se (leia-se: produziram mais uma enxurrada de insultos) a pretexto de uma observação de Marisa Matias sobre o Sporting Clube de Portugal [video], feita durante uma entrevista ao Observador.

B. O episódio, de tão tristemente caricato, diz muito, não sobre o universo da política, mas sobre a percepção desse universo por muitos cidadãos. Não temos, hélas!, uma classe política exemplar, capaz de sustentar um verdadeiro espaço de confronto e pensamento. Além do mais, na carência desse espaço, o Bloco de Esquerda parece-me ser uma derivação pueril sobre o desgastado imaginário de "esquerda", apenas invulgarmente hábil na ocupação do espaço mediático, em particular televisivo. Seja como for, as abundantes formas de difamação de Marisa Matias por causa da sua observação "futebolística" são reveladoras dos valores (ou da falta deles) que dominam o território "aberto" da Net, numa lógica de contínua consagração da irresponsabilidade, temperada de frivolidade. É mesmo impressionante verificar que, por certo assumindo o seu inquestionável direito de expressão, haja tantos cidadãos que descobriram nas palavras de Marisa Matias uma razão fundamental para reavaliarem o sentido (pró ou contra) do seu voto.

C. Roland Barthes escreveu, uma vez, que por vezes é preciso defender a "excepção dos místicos". Não estaremos a discutir coisas tão inebriantes — digamos apenas, mais simplesmente, que importa defender o direito de Marisa Matias a não ser difamada apenas porque, por breves segundos, ousou testar os poderes da ironia.


> NOTA — Entretanto, Marisa Matias achou por bem vir "explicar-se", lembrando a importância do "sentido de humor" e evocando até as preferências sportinguistas do seu pai. No seu triste bom senso, a explicação aceita, implicitamente, a lógica discursiva dos que a insultaram, evitando enfrentar a degradação cultural promovida por significativos sectores "sociais" em rede  — é, a meu ver, um gesto de absoluto simplismo político. 

Franco Citti (1935 - 2016)

ACCATTONE (1961)
>>> Obituário de Franco Citti publicado no site do Diário de Notícias:

Figura emblemática do cinema de Pier Paolo Pasolini, o actor italiano Franco Citti faleceu em Roma, no dia 14 de Janeiro — contava 80 anos.
Irmão do realizador Sergio Citti, só começou no cinema aos 26 anos, quando surgiu como protagonista de Accattone (1961), primeira longa-metragem de Pasolini. A rudeza da sua presença, alheia a qualquer modelo profissional de representação, correspondia exemplarmente ao desejo do realizador de retratar as classes populares a partir de um novo realismo, contundente nos sinais, embora disponível para as nuances da fábula social.
Seria, aliás, no universo pasoliniano que Citti viria a ter as suas interpretações mais importantes. Surgiu, assim, em Mamma Roma (1962), no papel central de Rei Édipo (1967), Pocilga (1969) e ainda na trilogia formada por Decameron (1971), Os Contos de Canterbury (1972) e As Mil e uma Noites (1974). Pelo caminho foi participando em filmes tão diversos como os “westerns spaghetti” Os Assassinos também Choram (1967), de Carlo Lizzani, e Acaba com Eles e Volta Só (1968), de Enzo G. Castellari, ou ainda O Padrinho (1972), de Francis Ford Coppola, interpretando uma das personagens que surge apenas na sequência da Sicília; Coppola voltaria a chamá-lo, para retomar a mesma personagem em O Padrinho – Parte III (1990).
Citti manteve-se em actividade até finais da década de 90, acabando por se afastar do cinema devido a problemas de saúde. Entre os cineastas com quem trabalhou incluem-se ainda Elio Petri (Todo Modo, 1976), Bernardo Bertolucci (La Luna, 1979) e Pupi Avati (Festival, 1996). Embora nunca tenha ganho nenhum prémio internacional, a sua interpretação em Accattone valeu-lhe em 1963, nos prémios britânicos de cinema (BAFTA), uma nomeação para melhor actor estrangeiro (categoria que, entretanto, deixou de existir).

>>> Obituário em The Guardian.
>>> Franco Citti na Criterion Collection.

Bowie, ser e não ser

ASHES TO ASHES (1980): celebrando a figura clássica do “palhaço rico”
num dos telediscos de Scary Monsters (and Super Creeps),
resultantes da colaboração com David Mallett
Que imagens podemos evocar para lembrar David Bowie? Vale a pena não tentar abranger tudo, ficando apenas pela singularidade de duas ou três — este texto foi publicado no Diário de Notícias (12 Janeiro), com o título 'Quando a morte é o último dos duplos'.

Diz o lugar-comum que, hoje em dia, não há artista que não cuide da sua imagem. É bem verdade. Mas há uma diferença entre os (muitos) que têm uma visão meramente instrumental do universo iconográfico, incluindo os políticos, e os (poucos) que trabalham esse universo como algo que mantém uma relação orgânica e insubstituível com as matérias musicais propriamente ditas. Será preciso relembrar que David Bowie pertence a estes últimos?
Se outros exemplos não houvesse, a interpretação no filme de Nagisa Oshima, Feliz Natal, Mr. Lawrence (1983), bastaria para ilustrar a sua energia como figura e personagem, numa palavra, actor: em confronto com Ryuichi Sakamoto, Bowie conseguia compor alguém (um soldado britânico num campo de prisioneiros dos japoneses, em plena Segunda Guerra Mundial) que desafiava os padrões convencionais de heroísmo, tanto quanto as imagens estereotipadas da sexualidade.
Com a excepção de Madonna, talvez não haja ninguém como Bowie a ter construído uma história paralela aos seus álbuns através dos respectivos telediscos. E não só pela quantidade (mais de meia centena). Acontece que ele começa a encenar as suas canções muito antes do próprio conceito de “teledisco” se consolidar através do impacto da MTV — lembremos, por exemplo, os emblemáticos The Jean Genie e Space Oddity, dirigidos por Mick Rock em 1972. Aliás, Bowie consegue mesmo transformar um modelo corrente como a performance em estúdio televisivo (é o caso do registo de Heroes, em 1977) num pequeno e sofisticado exercício de encenação.


Tal como Madonna, justamente, ele é alguém que se apresenta como uma presença de militante ambivalência, expondo-se e ocultando-se através dos duplos que interpreta. De forma transparente, compreendemos agora que os dois telediscos finais — Blackstar e, sobretudo, Lazarus, ambos dirigidos por Johan Renck (autor do incontornável Nothing Really Matters, para Madonna) — integram o mais cruel dos duplos. A saber: a própria morte.
Nenhuma pulsão fúnebre, em todo o caso: o que Bowie coloca em cena é o seu próprio gosto de transfiguração, por vezes sugerindo de forma explícita a alegria circense de tal labor. Recorde-se, a esse propósito, a figura exuberante (“palhaço rico”) de Ashes to Ashes (1980), reencontrada como boneco de madeira mais de três décadas depois em Love Is Lost (2013).
Não se trata de um mero gosto decorativo, típico da tristeza mediática dos “famosos” — será preciso lembrar que nessa desencantada canção que é Fame (1975) há mesmo um verso que diz, literalmente, “a fama coloca-te onde as coisas são vazias”? Trata-se, isso sim, de habitar o universo das imagens como uma dimensão vital do viver contemporâneo, integrando as suas regras e, ao mesmo tempo, desafiando os seus efeitos mais automáticos e redutores. No limite, Bowie dá a ver (isto é, cria imagens para) o paradoxo do artista: ser e não ser, promover uma partilha de matérias enraizadas na mais profunda solidão. É um dom a que podemos chamar inteligência. Ou apenas música.
LOVE IS LOST (2013): o artista confrontando-se com uma imagem
vinda do seu próprio passado, não por mera nostalgia,
antes para afirmar a criatividade do presente
LAZARUS (2016): ao representar o pressentimento
da sua própria morte, David Bowie deixa-nos um legado de imagens
com tanto de transparente como de contundente

domingo, janeiro 17, 2016

Memórias de Pierre Boulez (2/3)

[ 1 ]

A criatividade multifacetada de Pierre Boulez manifestou-se através da direcção dos mais diversos ensembles. Com a Gustav Mahler Jugendorchester, por exemplo, editou em 2002 um álbum com o poema sinfónico Pelleas und Melisande, de Arnold Schoenberg, que incluía também o prelúdio de Tristão e Isolda, de Richard Wagner — eis um registo desse prelúdio, com Boulez a dirigir aquela orquestra, em 2003, no Festival de Lucerna.

Bruce Springsteen canta David Bowie

Na noite de 16 de Janeiro, em Pittsburgh, Pensilvânia, Bruce Springsteen homenageou "o nosso bom amigo David Bowie" — ouviu-se, assim, Rebel, Rebel no primeiro concerto de 'The River Tour'.

Como o PS dá a vitória a Marcelo

'Nova Viagem. Com Costa e Marcelo'
— crónica de Raul Vaz [Económico]
1. A notícia é esta: 'Sampaio da Nóvoa tem "máquina partidária a funcionar por trás"'. Que máquina partidária? A do Partido Socialista. Quem o diz: Manuel Alegre, militante do PS (apoiante de Maria de Belém) — e não há razões para duvidarmos do rigor das suas palavras.

2. O facto envolve um louvável realismo. Não haveria maneira mais transparente de dizer que o PS está entregue a um dos seus desportos preferidos: o suicídio eleitoral, neste caso entregando a vitória ao candidato Marcelo Rebelo de Sousa (e pelo caminho, com metódica ligeireza, reforçando o mito "alternativo" do BE).

3. Daí também a confirmação de uma perversa realidade: muito para além da postura institucional do PS (qual é ela?...), a vitória de Marcelo é o factor mais interessante para o jogo político de António Costa, mascarando de forma eficaz a confusão simbólica a que chegou a dicotomia "direita/esquerda". Não admira que, no tão formatado espaço televisivo, alagado pela vulgaridade do pitoresco, ninguém suscite o desejo da mais pertinente dúvida política. A saber: até onde pode chegar a percentagem de eleitores tradicionais do PS que vão votar em Marcelo?

The Who no Hyde Park

O cinquentenário da banda The Who desembocou, em meados de 2015, num espectacular concerto no Hyde Park, em Londres. O respectivo registo já está disponível em CD e DVD — eis a banda de Pete Townshend e Roger Daltrey revisitando o clássico Baba O'Riley.


>>> Site oficial de The Who.

Fernando Ávila (1955 - 2016)

FOTO: Facebook
Realizador da televisão portuguesa, Fernando Ávila faleceu no dia 16 de Janeiro, vítima de cancro — contava 61 anos.
Ligado à RTP desde 1987, dirigiu ao longo da sua carreira os mais variados programas, desde musicais a séries de humor, passando por concursos e dramas. Entre os respectivos títulos incluem-se diversas colaborações com Herman José, com destaque para Crime na Pensão Estrelinha (1990) — genérico final aqui em baixo; dirigiu ainda, por exemplo, Passa por Mim no Rossio (1992), Residencial Tejo (1999-2002), Fábrica de Anedotas (2002), Conta-me como Foi (2007-2008) e Estado de Graça (2011). Actualmente, era responsável pela realização da série de humor Donos Disto Tudo.