quarta-feira, janeiro 27, 2016

O génio de "Anomalisa" (2/2)

Um grande filme de animação? Sem dúvida. Ou mais simplesmente: Anomalisa é um grande filme — este texto foi publicado no Diário de Notícias (20 Janeiro), com o título 'Os bonequinhos são gente viva'.

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Quando Marlon Brando revolucionou as formas de representar no cinema americano, a partir de Um Eléctrico Chamado Desejo (1951), de Elia Kazan, o suor da sua pele impôs-se como um sinal intenso e irredutível. Dir-se-ia que o corpo fazia valer a sua verdade mais básica, desafiando todas as formas tradicionais de representação perante uma câmara.
Escusado será dizer que, 65 anos mais tarde, um filme tão fascinante como Anomalisa pertence a outro universo cinematográfico. Além do mais, pormenor nada secundário, este é um filme de figurinhas animadas... Ainda assim, como não reconhecer que a estranheza de tudo isto se faz também de uma insólita proximidade física e, mais do que isso, de um verdadeiro envolvimento afectivo com as atribulações de Michael e Lisa?
A proeza a que assistimos será tudo o que se quiser, menos vulgar ou previsível. Conhecíamos Charlie Kaufman como narrador rebelde e inclassificável, apostado em desafiar as normas correntes da própria narrativa (ou as normas das narrativas correntes). Como argumentista, o seu currículo inclui proezas como a bizarra fantasia de Queres Ser John Malkovich? (Spike Jonze, 1999) ou o romantismo transcendental de O Despertar da Mente (Michel Gondry, 2004), este último consagrado com um Oscar de melhor argumento original. Agora, contando com a colaboração de Duke Johnson, um especialista de técnicas de animação, Kaufman confronta-nos com uma espécie de romantismo virado do avesso.
O efeito mais espantoso de Anomalisa envolve um paradoxo eminentemente realista. Por um lado, entramos no filme como quem descobre um parque de curiosidades em que aqueles bonecos de movimentos sincopados parecem provir de um planeta distante. Por outro lado, a pouco e pouco, as suas presenças (os seus corpos, justamente) adquirem uma contagiante verdade existencial — e reconhecemos que os bonequinhos são gente viva como nós.
Nada disto poderá ser desligado do facto de a origem de Anomalisa ser, não um conceito figurativo, mas um dispositivo teatral, quer dizer, uma forma específica de tratamento da palavra. Tudo começou por uma peça de Kaufman (assinada com o pseudónimo Francis Fregoli), encenada pelo compositor Carter Burwell como uma cerimónia de palco: os actores eram “apenas” leitores dos diálogos, num espaço sem outra encenação que não fosse a criação de uma determinada ambiência sonora. Dir-se-ia que a passagem a filme conservou essa sensação ambígua de que tudo acontece num mundo alternativo que repete, ponto por ponto, a vibração física da nossa experiência de vida.
David Thewlis dá voz a Michael, sendo Lisa interpretada por Jennifer Jason Leigh; além disso, como se diz no genérico, Tom Noonan interpreta “todos os outros”. Neste coro de vozes, tecido de muitas coincidências e algumas diferenças, tudo parece ameaçado por um sonho mau (descobriremos, aliás, que há qualquer coisa de inquietante nas linhas dos rostos...). Ao mesmo tempo, quanto mais nos embrenhamos no artifício da representação, mais sentimos a energia do realismo. Coincidência ou não, era essa a sublime lição de Marlon Brando.