Cailee Spaeny em Guerra Civil: como fotografar o mundo à nossa volta? |
Fazendo o retrato de uma guerra fictícia numa América marcada por muitos sinais do nosso presente, o novo filme de Alex Garland desafia as regras correntes de percepção da política e do jornalismo: Civil War/Guerra Civil é um verdadeiro acontecimento — este texto foi publicado no Diário de Notícias (16 abril).
Alex Garland |
Escrito e dirigido pelo inglês Alex Garland — estreou-se na realização em 2014, com Ex Machina, uma parábola sobre as relações entre humanos e robots —, Guerra Civil sugere um futuro mais ou menos próximo marcado por um conflito armado capaz de abalar todas as estruturas políticas dos EUA: um dos cartazes do filme apresenta mesmo o facho da Estátua da Liberdade transformado em trincheira de combate. Tendo em conta os violentos confrontos que o filme encena, o papel do Presidente (fictício) em tais confrontos e, por fim, a destruição de lugares emblemáticos do poder político em Washington, as ressonâncias simbólicas de Guerra Civil são transparentes e actualíssimas.
Aliás, tais ressonâncias surgem na actualidade americana através de manifestações, no mínimo, curiosas. O próprio Garland tem sido “apanhado” em entrevistas elaboradas a partir de uma sugestão paternalista. A saber: Guerra Civil devia ser mais “explícito” na descrição e avaliação dos campos que coloca em confronto. A 10 de abril, no programa The Daily Show (Comedy Central), o apresentador Michael Kosta sugeria-lhe mesmo que ele tinha sido “propositadamente vago” na definição das forças que se opõem no conflito que o filme encena. A partir do mesmo tipo de sugestão, no dia 12, The Hollywood Reporter, publicava um artigo de Richard Newby apostado em consumar o ingénuo didactismo de “explicar” porque é que o filme “está a fazer com que o público se sinta tão desconfortável”.
Não parece possível negar duas questões muito básicas: primeiro, que através dos seus elementos ficcionais, Guerra Civil apresenta situações, lugares e ideias que evocam (conscientemente, sem dúvida) componentes da vida social e política da América do presente; segundo, que o filme não é um sermão moralista para uso em “talk shows”, resistindo a propor um qualquer esquema definitivo de “bons” e “maus” para caracterizar as suas personagens. Como se o génio criativo de Stanley Kubrick em 2001: Odisseia no Espaço (1968) devesse agora submeter-se à ignomínia de um qualquer tribunal televisivo… porque o ano de 2001 não foi bem assim…
Há outra maneira de dizer isto: estamos perante um filme verdadeiramente adulto. Com metódica inteligência, nele se aplica o mais ancestral valor das artes narrativas: contar uma história não é uma “duplicação” do que quer que seja, mas sim uma aventura (narrativa, justamente) através da qual o leitor, ouvinte ou espectador é confrontado com formas de observação e reconversão, registo e recriação de dados que, não estando adquiridos para sempre, motivam outras imagens e novos pensamentos. Assim o disse Garland em The Daily Show, quando, humildemente, lembrou aquilo que qualquer filme razoavelmente sério tende a provocar: “Dar origem a algum tipo de diálogo, a um processo de pensamento.”
Infelizmente, tudo isto acontece através do renovado recalcamento do infantilismo narrativo e moral, numa palavra, político de outros filmes que mobilizam elementos da mesma história “made in USA” e do seu universo simbólico. Como? Basta lembrar o modo como muitas aventuras de super-heróis desembocam em cenas de patético simplismo político, eivadas de um patriotismo pueril, reduzindo as dimensões políticas da nossa existência a esquemas rudimentares de descrição e avaliação.
Ora, acontece que “ninguém” fala disso. Os super-heróis parecem mesmo protegidos por uma legislação apócrifa e um ecumenismo mediático (de raiz televisiva) segundo a qual os respectivos filmes pertencem a um domínio de “divertimento” que está dispensado de qualquer questionamento ideológico ou político… Uma coisa é certa: quando alguém como Garland recusa tratar os espectadores como crianças irresponsáveis e arrisca fazer um filme realmente diferente, interrogando a suposta transparência do real, aí o protagonista de tal “afronta” é convocado para se “justificar” perante o tribunal mediático.
Não simplifiquemos ainda mais, não menosprezemos a multiplicidade do fenómeno: toda esta agitação faz com que, pelo menos, Guerra Civil não seja anulado no caldeirão das rotinas mais preguiçosas do mercado. Eis um filme tanto mais motivador quanto a sua proposta de parábola política sobre uma América a ser metodicamente destruída por quezílias internas — “Todos os impérios caem”, diz outro dos cartazes do filme — possui um apelo universal que começa no seu “tradicionalismo” cinéfilo.
Esta é, afinal, uma saga “on the road”, protagonizada pelo grupo da veterana fotógrafa Lee (Kirsten Dunst). Na expectativa de chegar a Washington e conseguir uma entrevista com um Presidente cada vez mais incapaz de gerir as convulsões armadas que dilaceram o país, a sua deslocação tem qualquer coisa de viagem até ao “coração das trevas”, numa tragédia suspensa que Apocalypse Now (1979) sistematizou de forma definitiva. Mais do que isso, a muito jovem Jessie (Cailee Spaeny), desejosa de percorrer os caminhos do fotojornalismo de guerra, encontra em Lee um modelo que a leva a questionar os seus próprios limites, num frente a frente de gerações que encontramos em diversas vias do “western” clássico, nomeadamente na filmografia de Howard Hawks, incluindo esse clássico dos clássicos que é Rio Bravo (1959).
Talvez que a própria identidade do grupo central de Guerra Civil — Lee e o seu colega Joel (Wagner Moura), na companhia de Jessie e Sammy (Stephen McKinley Henderson), veterano do New York Times — ajude a explicar o perverso “incómodo” gerado pelo filme. De facto, são jornalistas, apenas jornalistas a tentar trabalhar num contexto em que eles próprios reconhecem que não sabem quais as atitudes a tomar face à perturbante avalanche de acontecimentos que acompanham.
O realizador tem também chamado a atenção para a universalidade desse aspecto, sem que as suas palavras encontrem grande eco: Guerra Civil é também (talvez mesmo sobretudo) um filme sobre a prática do jornalismo e o seu papel num mundo como o nosso em que a densidade dos factos questiona as raízes de qualquer trabalho informativo. Jornalistas incensados como “heróis” que se sobrepõem às glórias e aos sofrimentos dos figurantes anónimos das suas reportagens? Nada disso: Guerra Civil procura o avesso dessa demagogia, observando e celebrando a complexidade do jornalismo, dos seus pressupostos e deduções, dos seus valores e gerações.
Eis um filme capaz de travar essa guerra narrativa, sem baixas nem reféns, utilizando como poucos as potencialidades do grande ecrã das salas IMAX, incluindo a sofisticação do respectivo equipamento sonoro. Com os seus ecos políticos e simbólicos, Guerra Civil é também uma celebração, realmente diferente, das potencialidades dos mais requintados recursos técnicos do cinema actual. Enfim, uma bela lição sobre o valor social do espectáculo e do “entertainment”.
>>> Civil War (entrevistas): CBS Sunday Morning.