quarta-feira, fevereiro 22, 2023

Spielberg + Libération - cinefilia

Libération [22 fev. 2023]

* A cinefilia não é um reino unanimista, antes um território de muitas e salutares diferenças que, em todo o caso, se reconhecem no respeito básico pela pluralidade da história do cinema. Uma das suas regras clássicas proclama que, em nome dos seus próprios valores, se pode defender o que quer que seja... mas não se pode dizer não importa o quê.

* Na sua edição de 22 de fevereiro, o jornal Libération aborda Os Fabelmans, de Steven Spielberg, celebrando aquilo que chama o "ineditismo" do seu "nível de intimidade". O mínimo que se pode dizer face a esta afirmação é que há algumas realidades que a tornam, no mínimo, discutível. Os seus nomes são: Encontros Imediatos do Terceiro Grau, E.T., o Extraterrestre, Império do Sol, Sempre, A Lista de Schindler, A.I. - Inteligência Artificial...

* Eis um esclarecedor exemplo das diferenças interiores à cinefilia. Resta saber se isso confere qualquer tipo de pertinência ao texto da capa do jornal, em que encontramos esta apresentação do "Homem Cinema" que o Libération agora consagra:

>>> Os Fabelmans, filme autobiográfico poderoso e emocionante que mistura história do cinema e tragédia íntima, impõe o realizador, noutros tempos menosprezado pelos cinéfilos, como último guardião do templo de Hollywood.

* Há uma dúvida que este entusiasmo suscita: a facilidade com que se escreve "noutros tempos menosprezado pelos cinéfilos" mascara mais de meio século de muitas diferenças de leitura da obra de Spielberg — lembremos que Duel/Um Assassino pelas Costas tem data de 1971 —, rasurando as posições dos que, ao longo das décadas, manifestaram admiração pelo seu trabalho, inclusive nos tempos heróicos em que era chic acusá-los de "defender o imperialismo americano".

* E há também uma pergunta triste que emerge: estará o Libération a esquecer-se da sua própria história e, mais concretamente, das avaliações de muitos filmes de Spielberg, no mínimo reticentes, publicadas nas suas páginas?

* Registemos, em qualquer caso, o salutar entusiasmo do Libération: afinal, há mais formas de pensar para lá do anti-americanismo primário que se manifesta (um pouco por todo o lado) face à riqueza e complexidade dessa entidade a que se dá o nome de Hollywood. Ficamos mesmo a saber que Hollywood é (ou tem) um "templo" e, mais do que isso, que o seu "guardião" merece todos os elogios — eis uma visão a partir da qual podemos concordar e repensar as atribulações da cinefilia.