terça-feira, fevereiro 21, 2023

Fotografia: olhar & escrever

Eis um título, no mínimo, inesperado para um livro sobre fotografia: Lágrimas de Crocodilo tem chancela da editora Pierrot le Fou (Porto, 2022) e propõe uma elaborada e interessantíssima antologia de textos sobre 'Fotografia e crítica em Portugal 1980-2000'. Como escreve Susana Lourenço Marques, responsável pela organização do volume, trata-se de "uma selecção de trinta e sete artigos sobre fotografia, publicados na imprensa portuguesa nas décadas de 1980 e 1990, que revelam precisamente a mudança na cena fotográfica nacional e o aparecimento de uma pluralidade de vozes que assumiram esse activo debate."
Através de tal selecção, Susana Lourenço Marques aponta aquilo que foi um "novo movimento da crítica" para o qual importava "validar a sua emergência no espaço público e questionar as estratégias de arquivo, colecção e exposição fotográficas que se desenrolaram um pouco por todo o país."
Encontramos, assim, textos de Susana Lourenço Marques, Margarida Medeiros, Ernesto Sousa, Joaquim Pinto Vieira, António Sena, Pedro Miguel Frade, Jorge Calado, João Pinharanda, Jorge Pires, Alexandre Pomar, Maria Leonor Nunes, Sérgio Andrade, Maria Antónia Fiadeiro, Manuel Miranda, Tereza Siza, António Cerveira Pinto, João Lopes [responsável por este post], Alexandre Melo e Bernardo Pinto de Almeida.

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O título não é estranho a um misto de nostalgia e desencanto. Também na apresentação, uma nota de Susana Lourenço Marques esclarece a memória que nele se transporta: "A par do significado da expressão popular, o título do livro faz referência à livraria de poesia e desenho, nunca concretizada, com pretensa atividade editorial, da responsabilidade do poeta Herberto Helder e do historiador de fotografia António Sena, que teria o nome amotinador de Lágrimas de Crocodilo."
Tudo isto transfigura-se e, de alguma maneira, enriquece-se com a consciência da fotografia como facto que atravessa, na qualidade de testemunho & personagem, a história das nossas imagens — ou a nossa história através das imagens. A recordação de um texto emblemático de Ernesto de Sousa, publicado em 1962, tem tanto de sugestivo como de pedagógico, porventura intrigante:

>>> Com o progresso do cinema, do jornalismo e da publicidade, a prova fotográfica isolada tende a deixar de constituir um fim em si própria, e a ser integrada num determinado conjunto: o livro, a reportagem, o cartaz, a fotomontagem, etc. Com frequência, a fotografia é hoje elemento decorativo insubstituível ou impressionante testemunho do nosso tempo.

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Através das suas multifacetadas reflexões — plenas de ideias, sugestões e contrastes que ecoam no nosso presente —, Lágrimas de Crocodilo acaba por ilustrar (paradoxal palavra neste contexto...) a peculiar condição de qualquer abordagem crítica. A saber: o cruzamento de uma vontade de compreensão e sistematização com as singularidades da história daquele que olha e escreve.
Num dos textos de Jorge Calado que o volume integra, dedicado a Robert Mapplethorpe (publicado em 1988), encontramos essa duplicidade, ou melhor, a multiplicidade de relações e implicações com que as fotografias nos convocam, desafiando o mundo e a sua representação — o seu ponto de partida é um retrato de Philip Glass e Robert Wilson, marcado pela memória tutelar de Roland Barthes:
ROBERT MAPPLETHORPE
1976
Philip Glass and Robert Wilson

>>> Devo a Robert Mapplethorpe o meu interesse pela fotografia. A aventura começou com o famoso retrato duplo de Philip Glass e Robert Wilson (1976) que Barthes reproduz e discute em La Chambre Claire. Para Barthes, o punctum está algures no homem de teatro — é o bonitão Bob Wilson que ele gostaria de conhecer. Mas o que me fere nesta fotografia é o ar esgrouviado do compositor Philip Glass, com a cabeça rochosa e vagamente equídea, coroada por uma cabeleira em desalinho. A postura arrumada de Wilson faz ressaltar as meias caídas e as botas cambadas que já viram melhores dias de Glass — só falta a gravata a sair do bolso do colete incongruente... Apesar de captadas em trânsito, as mãos de Robert Wilson exsudam calma e equilíbrio; pelo contrário, as de Philip Glass aprisionam-se uma à outra e denunciam um grande poder de gesticulação. Juntos, estão irremediavelmente separados, cada um em sua célula. Até as cadeiras em que se sentam de través se voltam mutuamente as costas. Não fora Robert Wilson o profeta dos silêncios e das desacelerações do tempo teatral, dir-se-ia que este retrato punha uma vez mais em equação a antinomia da música e das palavras.