Flmagens de Os Fabelmans: o cinema produzido e vivido como uma celebração da vida |
O novo filme de Steven Spielberg, Os Fabelmans, é um bom pretexto para recordarmos que, no interior da “fábrica dos sonhos”, ele protagonizou muitas transformações da indústria ao longo do último meio século sem nunca por em causa a condição de autor que sabe exprimir-se na primeira pessoa — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 dezembro).
Steven Spielberg nasceu no dia 18 de dezembro de 1946. Neste tempo em que o glamour das estrelas foi substituído pela pompa digital dos super-heróis e a frequência das salas está ameaçada pelos gigantescos super-mercados audiovisuais que são as plataformas de streaming, ele continua a ser identificado pelos espectadores de todo o mundo como símbolo do próprio cinema. Não é, por isso, acidente, banalidade ou improviso que o seu novo filme, Os Fabelmans, seja uma comovente celebração do amor primitivo do cinema visto e habitado como intemporal país das maravilhas.
O resumo temático é sugestivo… Aí está o jovem Spielberg a filmar com câmaras Super 8. Spielberg a usar a sua casa, a sua família e os seus colegas de escola como elementos dos filmes de adolescência. Spielberg, ainda mal saído dessa adolescência, a inventar estratagemas para ser recebido num estúdio de Hollywood. Até mesmo Spielberg a descobrir, através das primeiras experiências de filmagem, as convulsões vividas pelo pai e pela mãe, prenunciando um divórcio inevitável…
Em boa verdade, conhecíamos quase todos esses episódios através de muitas entrevistas mais ou menos confessionais dadas ao longo de décadas. O certo é que nunca Spielberg os tinha tratado com a paixão auto-biográfica que encontramos neste filme — Fabelman é apenas outra maneira de escrever Spielberg.
Estamos a falar de alguém que assinou alguns dos títulos de maior sucesso de toda a história do cinema. A sua importância, como realizador e produtor, transcende o deve e haver do mapa financeiro de Hollywood. Em boa verdade, Spielberg é detentor desse talento raro capaz transfigurar as histórias mais particulares em genuínos fenómenos universais. A lista das suas proezas vai desde a exuberante invenção dos “blockbusters” em 1975, com Tubarão, até à tão inesperada quanto fascinante revisitação do musical em West Side Story, lançado há cerca de um ano.
Como podemos confirmar através de Os Fabelmans, as atribulações juvenis e a passagem à idade adulta pontuam toda a sua trajectória. Ao mesmo tempo, nunca Spielberg se encerrou, ou foi encerrado, no estatuto de “especialista” de uma determinada temática. Até mesmo o rótulo de “mago dos efeitos especiais” é francamente simplista para caracterizar a sua evolução, mesmo se não podemos deixar de o reconhecer como brilhante experimentador desses efeitos, desde os dinossauros de Parque Jurássico (1993) até ao mundo virtual de Ready Player One: Jogador 1 (2018), passando pela maravilhosa fábula futurista que é A.I. - Inteligência Artificial (2001) ou a experiência radical de As Aventuras de Tintin - O Segredo do Licorne (2011), infelizmente pouco estimada pelas plateias de todo o mundo.
Da variedade dos temas à proliferação das técnicas, Spielberg possui a dimensão e os múltiplos talentos de um artesão à maneira clássica. Que é como quem diz: alguém capaz de investir os géneros mais diversos, sem nunca alienar a sua marca pessoal — na sua filmografia encontramos ainda, por exemplo, o melodrama em estado puro no muito esquecido Sempre (1989) a par da subtil crónica do jornalismo e da política que é The Post (2017).
Muitas vezes menosprezada pela suposta predominância de títulos considerados artificiosos ou escapistas, a sua obra nunca deixou de enfrentar a necessidade de lidar com a grande história colectiva. A Lista de Schindler (1993) será o exemplo mais contundente, até porque, como o próprio Spielberg reconheceu, a memória do Holocausto envolveu uma reflexão muito pessoal sobre as suas raízes judaicas. Sem esquecer os filmes que foram encenando questões viscerais da história dos EUA, incluindo A Cor Púrpura (1985), Amistad (1997) ou o prodigioso Lincoln (2012), com Daniel Day-Lewis.
Através de tais títulos, Spielberg não deixou de ser um protagonista das muitas transformações da indústria de Hollywood no último meio século sem, contudo, alguma vez ficar preso a um modelo único, nem mesmo através das sequelas da saga de Indiana Jones (ainda que seja forçoso reconhecer que o seu quarto capítulo, Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal, lançado em 2008, é um dos momentos menos felizes da sua carreira).
A condição de realizador com muitos sucessos não exclui os momentos em que as bilheteiras não corresponderam à imaginação criativa dos próprios filmes. Exemplo maior: o delirante 1941 - Ano Louco em Hollywood, produção de 1979 que encena em tom burlesco um episódio fictício da Segunda Guerra Mundial (com os japoneses a invadirem a Califórnia…). Moral da história: um verdadeiro artesão deve dar provas também no domínio da comédia.