segunda-feira, março 07, 2022

Quatro Beatles e dois polícias

Londres, 30 de janeiro de 1969:
protagonistas de um "concerto no telhado"

Rever os Beatles numa sala IMAX é qualquer coisa de arrebatador: são memórias transfiguradas e enriquecidas pela tecnologia — este texto, motivado pelas sessões especiais de The Beatles: Get Back - The Rooftop Concert, foi publicado no Diário de Notícias (13 fevereiro).

Como responder às convulsões do mercado cinematográfico, em especial como defender as salas face aos modos de consumo caseiro que todos praticamos? Eis uma interrogação comercial e cultural. Aliás, vale a pena evitar a boa consciência política que fala de “cultura” como se fosse uma abstração neutra gerada por um qualquer paraíso prometido. A saber: qualquer factor comercial envolve sempre componentes e escolhas culturais.
Alguns pequenos grandes acontecimentos permitem-nos perceber as limitações — e, nessa medida, também as potencialidades — do nosso pensamento comercial da cultura (e, por isso mesmo, do pensamento cultural do comércio). Falo de The Beatles: Get Back - The Rooftop Concert, filme de Peter Jackson programado em salas IMAX (Lisboa, Cascais, Matosinhos) apenas durante três dias [11, 12 e 13 fevereiro] — um espectáculo arrebatador, realmente diferente!
Como se prova, a imponência da imagem (e do som) do IMAX não tem que ser um exclusivo das aventuras de super-heróis que vão desbaratando as potencialidades do formato — filmar aos trambolhões, como se se estivesse a usar um telemóvel, é um disparate visual e narrativo que, para mais na grandeza de um ecrã IMAX, faz com que, não poucas vezes, o espectador só tenha para ver uns riscos a passar no ecrã acompanhados por uma banda sonora ensurdecedora.
Que fez, então, Peter Jackson? Pois bem, criou uma derivação tão breve quanto fascinante (dura 65 minutos) da sua mini-série The Beatles: Get Back (Disney+). O objectivo é revisitar um episódio lendário na história dos Beatles, precisamente esse “concerto no telhado” que o subtítulo refere — foi a 30 de janeiro de 1969, no topo do edifício da editora Apple, em Londres, incluindo várias canções do alinhamento de Let it Be (1970), derradeiro álbum de estúdio do quarteto de Liverpool.
As dimensões físicas do ecrã não são o único elemento definidor das potencialidades figurativas do IMAX. Em boa verdade, nem sequer se podem considerar uma novidade, já que os antigos ecrãs de 70 mm (quem se lembra do velho Monumental, no Saldanha, em Lisboa, tristemente deitado abaixo em 1984?) eram tão grandes ou maiores — sem esquecer que há técnicos que consideram que a definição das imagens de 70 mm continua a ser superior às das câmaras IMAX. Peter Jackson compreendeu que o formato lhe permitia revisitar o concerto dos Beatles num novo território visual — o ecrã IMAX, precisamente — que, por assim dizer, apela a novas variantes narrativas, nomeadamente, em alguns momentos, através da coexistência (na mesma imagem) de registos obtidos em simultâneo.
A esse propósito, importa recordar que os materiais utilizados por Peter Jackson, não apenas neste filme, mas em toda a mini-série, são as “sobras” (mais de 50 horas!) do filme Let it Be (1970), de Michael Lindsay-Hogg, sobre as sessões de gravação do álbum, na altura lançado entre nós com o subtítulo, não muito feliz, de Improviso. Inéditos, e muito curiosos, são os momentos do início do filme em que acompanhamos o realizador e os seus técnicos a colocarem as câmaras para registar o evento — são imagens tanto mais sugestivas quanto, como uma legenda recorda no final, o concerto ficaria para a história como a derradeira performance ao vivo dos Beatles.
Apesar do frio de Londres (6 graus!), a performance é exuberante, a ponto de o registo de três das canções interpretadas — I’ve Got a Feeling, One After 909 e Dig a Pony — ter sido considerado melhor que as respectivas gravações de estúdio, acabando por integrar o alinhamento do álbum. Alguns detalhes que agora emergem, por vezes “multiplicados” pela sábia montagem das várias imagens que preenchem o ecrã, são deliciosos: Lennon a queixar-se da dificuldade de tocar a sua guitarra, de tal modo o frio lhe paralisa os dedos; o olhar gélido e indecifrável de Yoko Ono; a toalha com que Ringo cobre um dos tambores da bateria, etc. De qualquer modo, os protagonistas mais inesperados são os dois simpáticos e surpresos polícias que, cordialmente, visitam as instalações da Apple, dando conta que receberam algumas dezenas de queixas por causa do barulho…
The Beatles: Get Back - The Rooftop Concert resulta, assim, uma tocante memória transfigurada pelos recursos de uma moderna tecnologia, além do mais corrigindo a ideia segundo a qual o filme de Michael Lindsay-Hogg não passava do registo fúnebre de uma despedida. Como ele disse em recente entrevista ao Variety (10 dezembro 2021): “Let it Be não era um filme sobre uma separação. Terminámo-lo muito antes de as coisas se complicarem. É um filme alegre, do tempo em que eles se sentiam felizes por estarem a tocar num telhado.”