segunda-feira, janeiro 10, 2022

Peter Bogdanovich
— algumas memórias

Peter Bogdanovich (1939-2022)

Da arte de representar à intervenção crítica, Peter Bogdanovich deixa uma herança riquíssima: alguns dos grandes filmes americanos das décadas de 1970/80 têm a sua assinatura — este texto foi publicado no Diário de Notícias (7 janeiro).

Com a morte de Peter Bogdanovich, desaparece um dos gigantes da história moderna do cinema dos EUA. O realizador de filmes como A Última Sessão (1971), Lua de Papel (1973) ou Noites de Singapura (1979) faleceu de causas naturais na quinta-feira, dia 6, na sua casa de Los Angeles — contava 92 anos.
Quando chegou ao cinema, Bogdanovich trazia já na sua bagagem criativa dois factores determinantes: a experiência como actor e a prática da escrita. Assim, logo aos 16 anos, começou a estudar representação com Stella Adler; na década de 60, foi desenvolvendo uma actividade de crítico que, com o passar dos anos, lhe conferiu a dimensão de um verdadeiro investigador da Sétima Arte, publicando vários livros de referência, desde Nacos de Tempo (que teve uma edição portuguesa, actualmente esgotada) a This Is Orson Welles, monumental trabalho sobre um mestre que foi também um dos seus grandes amigos.
Ao realizar A Última Sessão, adaptando o romance The Last Picture Show, de Larry McMurtry, Bogdanovich conseguiu retratar a mágoa de uma geração — a dos rapazes que combateram na Guerra da Coreia —, ao mesmo tempo que enunciava uma das fundamentais linhas de força do seu universo: a relação criativa com a herança dos grandes mestres clássicos. Lembremos, por isso, que a “última sessão” a que o título se refere tem lugar na sala de cinema da cidadezinha do Texas em que tudo acontece: essa sala vai fechar e, pela última vez, projecta Rio Vermelho (1948), clássico do western realizado por Howard Hawks.
Num certo sentido, podemos mesmo dizer que a filmografia de Bogdanovich se define através de uma lógica de revisitação (e reinvenção) de alguns dos géneros da produção clássica de Hollywood. A começar pela comédia, com Que se Passa, Doutor? (1972), celebrando o delírio surreal do burlesco [trailer], ou Romance em Nova Iorque (1981), integrando uma peculiar dimensão romântica.
 

Dirigiu também, por exemplo, Daisy Miller (1974), notável adaptação de Henry James [trailer], Nickleodeon/Vendedores de Sonhos (1981), evocando os tempos heróicos do cinema mudo, Noites de Singapura (1979), policial em tom sarcástico, e Máscara (1985), drama centrado num jovem com o rosto deformado devido a uma doença óssea. Em 1990, de novo adaptando um livro de McMurtry, realizou Texasville, reencontrando as personagens (e os actores) de A Última Sessão.
Depois de Máscara, foi tendo cada vez mais dificuldade para montar os seus projectos, o que talvez tenha aumentado a sua disponibilidade para retomar o trabalho como actor, mesmo em pequenos papéis. O mais conhecido desses papéis será, muito provavelmente, o do psicoterapeuta da série Os Sopranos, personagem que encarnou 15 vezes em episódios realizados entre 2000 e 2007.
Em todo o caso, não deixou de continuar a filmar, merecendo especial destaque O Miar do Gato (2001), algures entre a comédia social e o drama intimista, revisitando o caso de uma morte suspeita ocorrida em 1924 no iate do magnate da imprensa William Randolph Hearst, personalidade que, curiosamente, inspirou o clássico O Mundo a Seus Pés (1941), de Orson Welles.
O nome de Welles ficaria, aliás, ligado a uma proeza dos anos finais de Bogdanovich. De facto, ele foi essencial na recuperação e tratamento dos materiais do filme O Outro Lado do Vento, rodado por Welles na década de 70 — com Bogdanovich num pequeno papel —, mas nunca por ele terminado. A pós-produção do filme foi, finalmente, concluída em 2018, 33 anos depois da morte de Welles: teve a sua estreia, e está disponível, na Netflix.