sábado, outubro 31, 2020

A cultura do Halloween

Halloween.
Há sempre alguém disponível para reactivar o mais boçal anti-americanismo, conseguindo argumentar (?) que um qualquer filme de Clint Eastwood não passa, no fundo, de uma máquina de propaganda ideológica, insidiosa e maligna, porventura financiada pela CIA...
Entretanto, assistimos, ano após ano, à apropriação banalmente mercantil da palavra "Halloween", obliterando todas as suas raízes culturais visceralmente made in USA, e ninguém diz nada...
Como se a cultura do comércio fosse um detalhe sem importância na dinâmica das nossas vidas.

terça-feira, outubro 27, 2020

Miley Cyrus "vs" Pearl Jam

Sem ofensa — e se Miley Cyrus fosse, antes de tudo o mais, uma invulgar intérprete de "covers"? Seja qual for a resposta, importa escutar as suas recriações nas chamadas Backyard Sessions da MTV (com o canal da música, pelo menos por alguns momentos, a distanciar-se dos horrores da "reality TV" e do divertimento acéfalo). Eis uma esclarecedora ilustração do seu poder de transfiguração face às canções de outros: Just Breathe, tema do álbum Backspacer (2009), dos Pearl Jam, até agora "impossível" de imaginar de outro modo que não fosse na voz de Eddie Vedder.

sexta-feira, outubro 23, 2020

Mulheres, homens e porcos

Mathilde van Gheluwe
Libération, 22-10-2020


Alguma sensibilidade feminista (transversal entre mulheres e homens) gosta de sustentar o seu discurso através de uma equivalência simbólica entre porcos e homens. A mensagem é: os homens que assediam e agridem mulheres comportam-se como porcos.
Eis um exemplo inequívoco: para ilustrar um artigo sobre violências sexuais no mundo dos restaurantes, o jornal francês Libération publica um desenho em que, numa cozinha, uma mulher isolada é agressivamente contemplada por alguns homens/porcos. Curioso impensado: para denunciar o horror dos desmandos machistas, há um jornalismo "purificador" que dispensa qualquer reflexão sobre as formas de representação da Natureza.
Seria interessante promover um inocente exercício de especulação filosófica, perguntando ao mesmo discurso feminista como interpretaria uma qualquer situação social em que, em nome de um discurso igualmente "purificador", deparássemos com a possível representação de personagens femininas em figuras de porcas.
E, já agora, pensando em opiniões de outra área de militância, seria igualmente interessante escutar algum tipo de reflexão dos vegetarianos.
Enfim, seria, sobretudo, pertinente que cada um se dispusesse a pensar a responsabilidade inerente a qualquer linguagem.

domingo, outubro 18, 2020

Thurston Moore: um ensaio

62 anos. A idade faz parte do bilhete de identidade da música? Talvez não. O certo é que, alheio à teimosia do calendário, Thurston Moore continua a ser o mais brilhante herdeiro dos Sonic Youth... Ah, pois. O seu novíssimo álbum, By the Fire, tem tudo o que tal património celebra e transporta, serenamente servido em avalanches de reinvenção — electricidade, poesia, uma desencantada arte da contemplação.
Em Londres, Moore abriu as portas de um ensaio com os seus músicos à revista Rolling Stone. Resultado: três variações/digressões em torno de temas de By the Fire: Hashish, Siren e Locomotives. Na companhia de James Sedward (guitarra), Deb Googe (baixo) e Jem Doulton (bateria).

sexta-feira, outubro 16, 2020

Nova Iorque na Antena 3

Nova Iorque, Nova Iorque, imagens e sons, cinema e música, imaginário e imaginação, história e mitologia — tudo isso está no especial da Antena 3 assinado pelo Nuno: chama-se "Da noite para o dia", contando com participações de Isilda Sanches, Rui Miguel Abreu e do autor deste post. Em tom de complemento audiovisual (escutando, está explicado...), atrevo-me a acrescentar um objecto, novaiorquino, hélas!, que poderia ter como subtítulo: 'À procura da perfeição'.

Bebel Gilberto na NPR

Samba em cenário caseiro. Que é como quem diz: em mais uma edição dos novos 'Tiny Desk (Home) Concerts', impostos pela pandemia, Bebel Gilberto é a convidada da NPR. Deambulando por guitarra, teclados e percussão, com alguma vocalização, Chico Brown fornece o acompanhamento adequado para uma sessão minimalista com Cliché e Na Cara, temas do novo álbum Agora, concluindo com a evocação de Aganjú.
 

quinta-feira, outubro 15, 2020

Aventuras de Julião
no país das fotografias

Ao longo de mais de meio século, a trajectória criativa de Julião Sarmento passa pelas mais variadas formas de expressão, incluindo a fotografia. Novo exemplo: o livro Café Bissau, com imagens obtidas no período 1964-2017 — este texto foi publicado no Diário de Notícias (3 Outubro). 

Artista plástico, diz a Wikipedia. Evitemos o pecado da soberba, menosprezando essa paisagem informativa, literalmente sem fronteiras, em que vamos fazendo e desfazendo os limites do nosso conhecimento. Ainda assim, a expressão “artista plástico” aplicada a alguém como Julião Sarmento arrasta uma ironia, voluntária ou não, que envolve, precisamente, a ambígua “plasticidade” daquilo que a sua obra fascinante — desenhos, pinturas, colagens, instalações, filmes, etc. — nos dá a ver há mais de meio século. 
Isto porque Julião é um daqueles artistas (raros, convenhamos) cujo universo está longe de se esgotar na noção clássica segundo a qual as formas do seu labor “plástico” nos abrem as portas de uma visão, a sua visão, do mundo à nossa volta. Sim, claro que sim, tudo isso lá está. Mas não basta: há nele a utopia discreta, avessa a qualquer teoria fechada, de quem não pretende “reproduzir” o mundo. Qual o programa de trabalho, então? Ocupar esse mesmo mundo através da criação de um mundo alternativo, devorador do primeiro. 
É brutalmente simples. O que, bem entendido, só pode atrair as resistências correntes, muito na moda, segundo a qual o artista é aquele que cria a sua arte para nos convocar para vivermos “num mundo melhor”. Nada disso: o mundo melhor é a própria arte. Veja-se o maravilho Café Bissau, novíssimo livro de fotografias (edições Pierre von Kleist, Lisboa, 2020). 
Que está representado nas fotografias de Julião Sarmento? Pois bem, nada que ele nos diga. Porventura porque nada nos quer dizer, a não ser que a liberdade da palavra nos pertence. Dito de outro modo: não há identificações de “lugares”, “personagens” ou “histórias”. Não há legendas. Apenas uma austera cronologia: “Todas as fotografias deste livro foram tiradas entre 1964 e 2017”. 
Se quisermos ser académicos (a ordem envolve sabores que vale sempre a pena experimentar), diremos que as fotografias nos remetem para variantes mais ou menos codificadas: “paisagens”, “nus”, “animais”, etc. O certo é que por cada classificação que possamos apor a cada uma das imagens, não podemos deixar de sentir a sua insuficiência. Porquê? Porque o ângulo aberto de uma paisagem pode conter uma sensualidade que talvez só tivéssemos associado ao fragmento de um corpo. Porque uma fachada de muitos incidentes gráficos (por exemplo, do Café Bissau que dá o título ao livro) se transfigura em monumento apócrifo. Ou ainda porque a pose ensonada de um tigre parece conter as chaves de um enigma que nós, incautos humanos, nem sequer sabemos formular. 
As fotografias de Julião são a expressão de um universo pessoal riquíssimo, sempre disponível para a pluralidade do olhar e do pensamento. Ao mesmo tempo, há nelas a serenidade de objectos que também nos pertencem (ou podem pertencer), já que através delas experimentamos a aventurosa singularidade do nosso próprio olhar — saber que o meu olhar não se esgota no olhar do fotógrafo, eis um belo princípio estético. Podemos, talvez, aplicá-lo recuperando o voto do mestre japonês Kenji Mizoguchi, lembrando a importância de “lavar os olhos” entre dois olhares, de uma imagem para outra. Humildemente, experimentemos. 

segunda-feira, outubro 12, 2020

The Kills, "Little Bastards"

Lados B + raridades. Com um título programático: Little Bastards. Ou seja: The Kills estão de volta com uma colecção de coisas que ficaram pelo caminho. A edição chega a 11 de Dezembro, para já anunciada através de Raise Me (Demo) — preparem as fanfarras.


PS — a capa evoca a obra-prima dos Rolling Stones, Exile on Main St. (1972), até mesmo no local de inserção do nome da banda e do título, mas não parece que alguém se vá queixar.

domingo, outubro 11, 2020

Futebol & veleidades

PIET MONDRIAN
Composição II em Vermelho, Azul e Amarelo
1930

1. A sério, a sério: quando é que alguém faz um pequeno gesto de defesa da língua portuguesa e ensina os comentadores de futebol o significado da palavra "veleidade"?

2. Sem qualquer fulanização da questão (não se trata de apontar o dedo seja a quem for, mas de uma questão rigorosamente profissional), seria pertinente perceberem que "veleidade" não quer dizer "hipótese" — considerar que " defesa não dá veleidades aos atacantes" é um perfeito absurdo.

3. Daí que eu tenha a veleidade de dar um pequeno contributo para resolver a questão — eis a minha sugestão.

quarta-feira, outubro 07, 2020

Trump sem máscara

Tampa Bay Times

Porque é que o homem retira a máscara?
Porque nos quer dizer que dispensa a respectiva protecção?
Ou porque entende que há uma verdade no seu rosto que não pode ser mascarada?
Seja como for, o gesto de Donald Trump, numa das varandas da Casa Branca, faz história. Literalmente. Na sua apoteótica irresponsabilidade, define duas componentes do infantilismo político-mediático que triunfa no nosso tempo: primeiro, o meu poder transcende a vulnerabilidade do meu corpo; segundo, existo, em permanente ressurreição, como pura imagem.

segunda-feira, outubro 05, 2020

Miley Cyrus recria clássico dos Blondie

Mesmo com pandemia, o Festival IHeart Radio, promovido pelo serviço de streaming homónimo, celebrou o seu 10º aniversário com a energia que a tradição impõe. Para a história, fica a participação de Miley Cyrus, recriando Heart of Glass, clássico dos Blondie.

sábado, outubro 03, 2020

Será que Trump e Biden
inventaram o debate televisivo?

CNN

Metade do planeta está indignado com o nível (ou a falta de nível) do debate entre Donald Trump e Joe Biden. O que pode suscitar uma pergunta meramente pedagógica: será que nunca repararam que tal nível — combinando provocação, insulto, obscenidade e um rol de misérias comunicacionais — é a matriz corrente de que se fazem muitos debates televisivos?
Dir-se-ia que os indignados acreditam que Trump e Biden inventaram o debate televisivo — o que, enfim, na sua candura, talvez reflicta a nossa mais aguda pandemia mediática, a saber, o culto festivo da distracção.

sexta-feira, outubro 02, 2020

A IMAGEM: Tom Brenner, 2020

TOM BRENNER
1 de Outubro de 2020

Canção de James Bond em teledisco

Lançada em Fevereiro, portanto antes da pandemia, a canção-tema do novo James Bond, por Billie Eilish, ficou à espera... da estreia do filme. Reagendado para Novembro (dia 19 em Portugal), 007: Sem Tempo para Morrer ressurge agora na montra da actualidade — Eilish a preto e branco e uma ágil montagem com imagens do filme.

* PS — Entretanto, a maldição renova-se e a estreia do filme foi de novo adiada, agora para Abril de 2021 [The Hollywood Reporter].

Trump + COVID-19


A. Um pouco por todo o mundo — entenda-se: no universo da Net, interligado através da alucinação de não existirem fronteiras —, multiplicam-se as vozes que, entre a boçalidade e a pura estupidez, celebram o facto de Donald Trump ter contraído o vírus COVID-19.

B. As celebrações podem ser interpretadas, antes do mais, como expressão de uma pulsão de vingança que se confunde com o infantilismo mais irresponsável. Mas o fenómeno é ainda mais inquietante, já que reflecte um menosprezo total pelo mais simples dos factos políticos: qualquer perturbação na existência de qualquer Presidente dos EUA envolve, automaticamente, todo o planeta.

C. Ignoram tais vozes que estamos "perante o momento mais perigoso jamais enfrentado pelo governo dos EUA" [CNN]; na verdade, "ninguém sabe o que vai acontecer agora" [Time]. Nas suas festividades obscenas, ilustram um pobre "pensamento" colectivo, ou melhor, de um colectivo gerado pela promiscuidade virtual e a futilidade mediática que nos dominam. A saber: bastaria lidar com Trump como anedota política para elaborar um ponto de vista político. Como se contrair o COVID-19 o impedisse de ganhar eleições. Como se, entre a frieza de alguns e a inconsciência de quase todos, o COVID-19 não estivesse a ser vivido, desde o primeiro momento, como a maior convulsão política do nosso século XXI.

quinta-feira, outubro 01, 2020

A luz segundo Michael Chapman

De Niro + Scorsese + Chapman

Nome grande da fotografia no cinema de Hollywood, Michael Chapman faleceu aos 84 anos de idade: do seu trabalho destacam-se os vários filmes em que colaborou com Martin Scorsese — este texto foi publicado no Diário de Notícias (26 Setembro). 

São momentos felizes do mais belo dos trabalhos: fazer cinema, inventar um mundo dentro do outro, ansiando a sua projecção num ecrã. Descontraído, Robert De Niro saboreia as atribulações da sua genial encarnação do pugilista Jake La Motta. Logo atrás, em pose atenta de maestro, Martin Scorsese vai gerindo os detalhes da cena, exibindo uma garbosa t-shirt da banda punk The Clash que, tendo em conta o desenho das letras, se refere ao álbum Give ‘Em Enough Rope, lançado em finais de 1978 — é um momento da rodagem de O Touro Enraivecido, algures em meados de 1979. 
Lembrei-me desta imagem quando, na passada segunda-feira, li o obituário de Michael Chapman — nascido em Nova Iorque, faleceu no dia 20, em Los Angeles, contava 84 anos [The Hollywood Reporter]. Chapman é a figura no centro da fotografia, responsável pelas imagens a preto e branco de O Touro Enraivecido e um dos mais talentosos directores de fotografia do cinema americano do último meio século. 
Nessa altura, Chapman já tinha um lugar garantido na história e na mitologia de Hollywood graças a Taxi Driver, o seu primeiro trabalho com Scorsese e De Niro. Se a noite de Taxi Driver existe como uma entidade dramática com vida própria, uma verdadeira personagem habitada por uma perturbante pulsão trágica, isso deve-se (também) à direcção fotográfica de Chapman, obviamente anterior aos fascinantes poderes, por vezes recheados de equívocos, dos actuais recursos digitais. Tirando partido da crescente sensibilidade das películas de 35mm, Chapman conseguia registar a noite novaiorquina sem as tradicionais “compensações” de fontes de luz artificiais, emprestando uma verdade muito física aos corpos em movimento, o metal dos automóveis, o negrume do alcatrão ou a vibração dos néons. 
O reconhecimento das qualidades de Chapman dependeu, em grande parte, do seu trabalho como operador de câmara em O Padrinho (1972), de Francis Ford Coppola, e Tubarão (1975), de Steven Spielberg (cujas imagens tinham assinatura, respectivamente, de Gordon Willis e Bill Butler). O certo é que nessa altura ele já se estreara como director de fotografia em The Last Detail/O Último Dever (1973), de Hal Ashby; com Jack Nicholson e Randy Quaid, nele se contava a odisseia insólita, quase dramática, quase cómica, de dois marinheiros com a missão de entregar um companheiro na prisão onde irá cumprir a pena a que foi condenado.
Valorizando sempre a utilização da luz disponível em qualquer cenário, exterior ou interior, Chapman voltou a colaborar com Scorsese logo após Taxi Driver, ainda antes de O Touro Enraivecido, em A Última Valsa (1978), neste caso uma proeza em espaço fechado: o filme regista o concerto de despedida de The Band, realizado a 25 de novembro de 1976, no lendário Winterland Ballroom, em São Francisco, apresentando uma lista espectacular de convidados, incluindo Bob Dylan, Eric Clapton, Joni Mitchell, Muddy Waters e Neil Young. 
O nome de Chapman está ainda ligado a alguns pequenos grandes filmes da década de 70, reveladores da paradoxal energia criativa de Hollywood num período crítico de transformação das suas estruturas industriais e comerciais. É o caso de A Invasão dos Violadores (1978) e Os Vagabundos de Nova Iorque (1979), ambos de Philip Kaufman, ou ainda o admirável Hardcore (1979), entre nós lançado como A Rapariga na Zona Quente, acompanhando a angustiada demanda de um pai (George C. Scott) cuja filha (Season Hubley) anda à deriva nos circuitos da pornografia na Califórnia — o argumento e a realização são de Paul Schrader, argumentista de Taxi Driver e O Touro Enraivecido (neste caso em colaboração com Mardik Martin). 
Chapman esteve uma vez mais ao lado de Scorsese para uma experiência muito particular: o teledisco de Bad, de Michael Jackson, tema do álbum homónimo, lançado em 1987. Na sua filmografia encontramos ainda, por exemplo, dois títulos de 1993 bem reveladores da sua versatilidade: O Fugitivo, como Harrison Ford, sob a direcção de Andrew Davis, adaptando a clássica série de televisão, e Sol Nascente, outra realização de Kaufman, com Sean Connery, tendo por base um romance de Michael Crichton. Em boa verdade, tudo o que ele fotografou envolve uma lição ancestral: respeitar a luz.