quinta-feira, outubro 01, 2020

A luz segundo Michael Chapman

De Niro + Scorsese + Chapman

Nome grande da fotografia no cinema de Hollywood, Michael Chapman faleceu aos 84 anos de idade: do seu trabalho destacam-se os vários filmes em que colaborou com Martin Scorsese — este texto foi publicado no Diário de Notícias (26 Setembro). 

São momentos felizes do mais belo dos trabalhos: fazer cinema, inventar um mundo dentro do outro, ansiando a sua projecção num ecrã. Descontraído, Robert De Niro saboreia as atribulações da sua genial encarnação do pugilista Jake La Motta. Logo atrás, em pose atenta de maestro, Martin Scorsese vai gerindo os detalhes da cena, exibindo uma garbosa t-shirt da banda punk The Clash que, tendo em conta o desenho das letras, se refere ao álbum Give ‘Em Enough Rope, lançado em finais de 1978 — é um momento da rodagem de O Touro Enraivecido, algures em meados de 1979. 
Lembrei-me desta imagem quando, na passada segunda-feira, li o obituário de Michael Chapman — nascido em Nova Iorque, faleceu no dia 20, em Los Angeles, contava 84 anos [The Hollywood Reporter]. Chapman é a figura no centro da fotografia, responsável pelas imagens a preto e branco de O Touro Enraivecido e um dos mais talentosos directores de fotografia do cinema americano do último meio século. 
Nessa altura, Chapman já tinha um lugar garantido na história e na mitologia de Hollywood graças a Taxi Driver, o seu primeiro trabalho com Scorsese e De Niro. Se a noite de Taxi Driver existe como uma entidade dramática com vida própria, uma verdadeira personagem habitada por uma perturbante pulsão trágica, isso deve-se (também) à direcção fotográfica de Chapman, obviamente anterior aos fascinantes poderes, por vezes recheados de equívocos, dos actuais recursos digitais. Tirando partido da crescente sensibilidade das películas de 35mm, Chapman conseguia registar a noite novaiorquina sem as tradicionais “compensações” de fontes de luz artificiais, emprestando uma verdade muito física aos corpos em movimento, o metal dos automóveis, o negrume do alcatrão ou a vibração dos néons. 
O reconhecimento das qualidades de Chapman dependeu, em grande parte, do seu trabalho como operador de câmara em O Padrinho (1972), de Francis Ford Coppola, e Tubarão (1975), de Steven Spielberg (cujas imagens tinham assinatura, respectivamente, de Gordon Willis e Bill Butler). O certo é que nessa altura ele já se estreara como director de fotografia em The Last Detail/O Último Dever (1973), de Hal Ashby; com Jack Nicholson e Randy Quaid, nele se contava a odisseia insólita, quase dramática, quase cómica, de dois marinheiros com a missão de entregar um companheiro na prisão onde irá cumprir a pena a que foi condenado.
Valorizando sempre a utilização da luz disponível em qualquer cenário, exterior ou interior, Chapman voltou a colaborar com Scorsese logo após Taxi Driver, ainda antes de O Touro Enraivecido, em A Última Valsa (1978), neste caso uma proeza em espaço fechado: o filme regista o concerto de despedida de The Band, realizado a 25 de novembro de 1976, no lendário Winterland Ballroom, em São Francisco, apresentando uma lista espectacular de convidados, incluindo Bob Dylan, Eric Clapton, Joni Mitchell, Muddy Waters e Neil Young. 
O nome de Chapman está ainda ligado a alguns pequenos grandes filmes da década de 70, reveladores da paradoxal energia criativa de Hollywood num período crítico de transformação das suas estruturas industriais e comerciais. É o caso de A Invasão dos Violadores (1978) e Os Vagabundos de Nova Iorque (1979), ambos de Philip Kaufman, ou ainda o admirável Hardcore (1979), entre nós lançado como A Rapariga na Zona Quente, acompanhando a angustiada demanda de um pai (George C. Scott) cuja filha (Season Hubley) anda à deriva nos circuitos da pornografia na Califórnia — o argumento e a realização são de Paul Schrader, argumentista de Taxi Driver e O Touro Enraivecido (neste caso em colaboração com Mardik Martin). 
Chapman esteve uma vez mais ao lado de Scorsese para uma experiência muito particular: o teledisco de Bad, de Michael Jackson, tema do álbum homónimo, lançado em 1987. Na sua filmografia encontramos ainda, por exemplo, dois títulos de 1993 bem reveladores da sua versatilidade: O Fugitivo, como Harrison Ford, sob a direcção de Andrew Davis, adaptando a clássica série de televisão, e Sol Nascente, outra realização de Kaufman, com Sean Connery, tendo por base um romance de Michael Crichton. Em boa verdade, tudo o que ele fotografou envolve uma lição ancestral: respeitar a luz.