quinta-feira, outubro 15, 2020

Aventuras de Julião
no país das fotografias

Ao longo de mais de meio século, a trajectória criativa de Julião Sarmento passa pelas mais variadas formas de expressão, incluindo a fotografia. Novo exemplo: o livro Café Bissau, com imagens obtidas no período 1964-2017 — este texto foi publicado no Diário de Notícias (3 Outubro). 

Artista plástico, diz a Wikipedia. Evitemos o pecado da soberba, menosprezando essa paisagem informativa, literalmente sem fronteiras, em que vamos fazendo e desfazendo os limites do nosso conhecimento. Ainda assim, a expressão “artista plástico” aplicada a alguém como Julião Sarmento arrasta uma ironia, voluntária ou não, que envolve, precisamente, a ambígua “plasticidade” daquilo que a sua obra fascinante — desenhos, pinturas, colagens, instalações, filmes, etc. — nos dá a ver há mais de meio século. 
Isto porque Julião é um daqueles artistas (raros, convenhamos) cujo universo está longe de se esgotar na noção clássica segundo a qual as formas do seu labor “plástico” nos abrem as portas de uma visão, a sua visão, do mundo à nossa volta. Sim, claro que sim, tudo isso lá está. Mas não basta: há nele a utopia discreta, avessa a qualquer teoria fechada, de quem não pretende “reproduzir” o mundo. Qual o programa de trabalho, então? Ocupar esse mesmo mundo através da criação de um mundo alternativo, devorador do primeiro. 
É brutalmente simples. O que, bem entendido, só pode atrair as resistências correntes, muito na moda, segundo a qual o artista é aquele que cria a sua arte para nos convocar para vivermos “num mundo melhor”. Nada disso: o mundo melhor é a própria arte. Veja-se o maravilho Café Bissau, novíssimo livro de fotografias (edições Pierre von Kleist, Lisboa, 2020). 
Que está representado nas fotografias de Julião Sarmento? Pois bem, nada que ele nos diga. Porventura porque nada nos quer dizer, a não ser que a liberdade da palavra nos pertence. Dito de outro modo: não há identificações de “lugares”, “personagens” ou “histórias”. Não há legendas. Apenas uma austera cronologia: “Todas as fotografias deste livro foram tiradas entre 1964 e 2017”. 
Se quisermos ser académicos (a ordem envolve sabores que vale sempre a pena experimentar), diremos que as fotografias nos remetem para variantes mais ou menos codificadas: “paisagens”, “nus”, “animais”, etc. O certo é que por cada classificação que possamos apor a cada uma das imagens, não podemos deixar de sentir a sua insuficiência. Porquê? Porque o ângulo aberto de uma paisagem pode conter uma sensualidade que talvez só tivéssemos associado ao fragmento de um corpo. Porque uma fachada de muitos incidentes gráficos (por exemplo, do Café Bissau que dá o título ao livro) se transfigura em monumento apócrifo. Ou ainda porque a pose ensonada de um tigre parece conter as chaves de um enigma que nós, incautos humanos, nem sequer sabemos formular. 
As fotografias de Julião são a expressão de um universo pessoal riquíssimo, sempre disponível para a pluralidade do olhar e do pensamento. Ao mesmo tempo, há nelas a serenidade de objectos que também nos pertencem (ou podem pertencer), já que através delas experimentamos a aventurosa singularidade do nosso próprio olhar — saber que o meu olhar não se esgota no olhar do fotógrafo, eis um belo princípio estético. Podemos, talvez, aplicá-lo recuperando o voto do mestre japonês Kenji Mizoguchi, lembrando a importância de “lavar os olhos” entre dois olhares, de uma imagem para outra. Humildemente, experimentemos.