terça-feira, setembro 29, 2020

Sharon Stone apresenta a Paris Fashion Week

Ah, a memória do Castor. Ou como é difícil pronunciar o francês... Eis o risco de convocar a inspiração de Simone de Beauvoir para apresentar a Paris Fashion Week. Ainda assim, digamos que Sharon Stone consegue resistir ao vício da transcendência que alimenta o vazio de muitos dos nossos rituais, protagonizando um pequeno número de sofisticação que, por sintomática distracção virtual, aceita servir-se em precária imagem de telemóvel. Sauve qui peut.

domingo, setembro 27, 2020

Melbourne, Austrália

19 de Agosto de 2020, uma mulher atravessa uma rua deserta no centro de negócios de Melbourne, Austrália — da austeridade do cenário às sensações cruzadas de solidão e sobrevivência, a imagem condensa muito do que andamos a fazer, nem sempre encontrando palavras para o dizer [Libération]. Não que uma imagem valha "mais" do que mil palavras (ou "menos", se for caso disso). Acontece que talvez nunca como agora tenhamos sentido de modo tão intenso essa dissociação discursiva de que somos feitos. A chuva conforta-nos na nunca vencida promessa de romanesco.

sexta-feira, setembro 25, 2020

A pandemia
e a cultura dos multiplex

[1981]

Que está a acontecer no mercado das salas de cinema? Será que esse mercado pode viver, e sobreviver, apenas através dos “blockbusters” americanos? Uma coisa é certa: a pandemia não explica tudo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (19 Setembro). 

Na vida das salas de cinema, a história dos multiplex começa a adquirir peso comercial e simbólico em paralelo com a consolidação do modelo de “blockbusters” de Hollywood, algures em meados da década de 80. Foi uma reconversão drástica, não apenas no consumo dos filmes, mas também no funcionamento do seu imaginário social. 
Martin Scorsese
Os valores culturais dominantes (incluindo no domínio arquitectónico) foram secundarizando as salas clássicas de cinema, algumas verdadeiras preciosidades (arquitectónicas, justamente), abandona-as a sortes muito diversas. Exemplo extremo, extremamente português: a trágica destruição do Cine-Teatro Monumental, na Praça do Saldanha, em Lisboa. Quando? Em 1984. 
Há sempre a tentação de explicar o triunfo da cultura dos multiplex através do domínio global da indústria americana. Não poucas vezes, tal visão serve também para demonizar tudo o que traga chancela “made in USA”. Em boa verdade, nada é tão simples. E não só porque um mínimo de disponibilidade mental permite reconhecer que o grande cinema americano (Martin Scorsese, Clint Eastwood, David Fincher, etc.) é quase sempre exterior ao modelo “blockbuster”. Também não há maneira de confundir a alegria criativa e a imaginação cinéfila de Os Salteadores da Arca Perdida (1981), de Steven Spielberg, “blockbuster” de excelência, com as rotinas preguiçosas da maior parte dos títulos gerados nos últimos anos pelos estúdios Marvel. 
Clint Eastwood
Com a pandemia, os multiplex enfrentam aquela que é, por certo, a maior crise da sua história. Mesmo um “blockbuster” como Tenet, de Christopher Nolan (filme admirável, não é isso que está em causa), não consegue satisfazer as expectativas de rentabilidade que, de acordo com análises de especialistas americanos, tinham sido delineadas pela própria indústria. 
Curiosamente, em alguns contextos, incluindo o português, as reposições de filmes clássicos, dos mais diversos períodos e origens, têm atraído um número considerável de compradores de bilhetes, proporcionalmente superior. Não generalizemos, claro. Trata-se de um circuito de dimensão reduzida, com um peso nas contas globais do mercado inevitavelmente menor do que a área dos multiplex. 
Ainda assim, vale a pena sublinhar um sintoma. Se as salas “especializadas” (que, em tempos, ostentaram o rótulo sugestivo, mas equívoco, de “arte e ensaio”) conseguem manter uma frequência interessante, isso decorre de um trunfo que, mesmo enfraquecido pela pandemia, não perdeu valor. A saber: a fidelidade do seu público. 
David Fincher
Ora, a cultura dos multiplex não soube criar um público. O seu triunfo financeiro decorreu da repetição extenuante de modelos de promoção de “acontecimentos” sustentados, não por uma qualquer ideia de cinema, antes por esse valor perverso que culturalmente também nos domina: o de que descobrir um determinado objecto (um filme, por exemplo) já não depende do objecto, apenas da possibilidade de sermos peões de um gigantesco exército de consumidores. 
No jogo da oferta e da procura, foi-se mesmo dispensando qualquer trabalho consistente sobre aquilo que se oferece. De tal modo que as matrizes dominantes do marketing, cada vez menos sensíveis a valores realmente cinematográficos, passaram a esgotar-se na produção de “eventos”, alheando-se da sua vocação primordial: a promoção específica de filmes concretos. 
São raros os exemplos de “multi-salas” que, ao longo das últimas décadas, tenham mostrado real empenho no sentido de diversificar a oferta. Triunfou uma ideologia determinista segundo a qual o mercado poderia viver da acumulação interminável de “blockbusters”, sendo tudo o resto comercialmente dispensável. 
Não sei (creio que ninguém sabe) quantificar a perda de espectadores que isso representou. Seja como for, não precisamos de organizar uma sondagem científica para reconhecer que o mercado dos “blockbusters” foi gerando uma nova franja de espectadores que se define pela decisão de não frequentar as salas que exibem… “blockbusters”. Creio que, por vezes, tais espectadores perdem filmes extraordinários, mas a crítica é um discurso minoritário.

quarta-feira, setembro 23, 2020

O ténis segundo Jacques Tati

As Férias do Sr. Hulot (1953)

A partida de ténis de As Férias do Sr. Hulot (1953) define o génio e a acutilância crítica do cinema de Jacques Tati: através do seu humor subtil, ele é tão francês quanto universal — este texto foi publicado no Diário de Notícias (12 Setembro). 

Por vezes, apetece perverter a lógica dos tops de filmes. E inventar listas que não favoreçam especulações pueris sobre se “algo” mudou no mundo do cinema porque, depois de várias décadas com O Mundo a Seus Pés (1941), de Orson Welles, a liderar a lista dos “melhores de sempre”, o primeiro lugar passou a pertencer a Vertigo (1958), de Alfred Hitchcock (aconteceu em 2012 na sondagem internacional promovida, de dez em dez anos, pela revista britânica “Sight & Sound”). 
Eis um exemplo possível: fazer a lista dos filmes com as melhores partidas de ténis. Apostaria que As Férias do Sr. Hulot (1953), de Jacques Tati (1907-1982), arrebataria o primeiro lugar com grande avanço… Enfim, com todo o respeito pelos que se lembraram de imediato da imponderável bola a bater na rede filmada por Woody Allen em Match Point (2005), ou ainda, claro, do assombramento que perpassa por raquetes, bolas e isqueiros (!) em O Desconhecido do Norte Expresso (1951), de Alfred Hitchcock. 
Acontece que os filmes de Tati voltaram à actualidade, cumprindo um ciclo típico da actual vida comercial do cinema e do qual, neste caso, o mercado português não ficou alheado. Assim, os últimos anos foram de paciente recuperação da obra de Tati, processo que teve um importante momento simbólico em 2002, no Festival de Cannes, com a projecção da cópia restaurada de Playtime - Vida Moderna (1967). Os filmes foram repostos nas salas, tiveram edições em DVD e Blu-ray e agora a sua obra integral como realizador, duas curtas e seis longas-metragens, está disponível numa plataforma de streaming (Filmin). 
As Férias do Sr. Hulot é, justamente, o filme em que Tati estreia a sua personagem de Hulot. E o mínimo que se pode dizer é que a sua resistência ao tempo, superando conjunturas e modas, envolve uma lição universal. Porquê? Porque Tati consegue a proeza de inventar uma figura que concilia a inserção muito concreta num determinado tempo histórico e uma alegria figurativa que, à boa maneira do burlesco do cinema mudo, lhe confere a exuberância de uma fascinante abstracção. 
Hulot é o cidadão igual a todos os outros, supostamente banal e integrado, ao mesmo tempo livre e inclassificável. Em As Férias do Sr. Hulot, vêmo-lo como peão de um xadrez social (em cenário de férias, obviamente) que reflecte a diversidade da França em período de recuperação económica. Pressentimos que ele procura pertencer ao colectivo, não atraindo dramas ou sobressaltos; ao mesmo tempo há sempre um “excesso” que o distingue e, de alguma maneira, isola. 
A partida de ténis de As Férias do Sr. Hulot é, justamente, uma dessas cenas em que contemplamos a sua ambivalência. Hulot vive a aventura de um corpo que resiste a diluir-se na imagem global de felicidade que os outros protagonizam, querem, fingem ou imaginam protagonizar. Tudo se passa como se Hulot fosse um rebelde sem programa político: a sua pose é a de quem tenta pertencer ao colectivo; o seu corpo, bizarro e imprevisível existe numa solidão que nos toca e atrai. 
Tudo isto, importa lembrar, acontece através de um ciclo de narrativas em que Tati faz uma verdadeira antologia de usos e costumes franceses, expondo a fragilidade anímica de uma sociedade que vai deslizando da comicidade rural de Há Festa na Aldeia (1949), a primeira longa-metragem, para a codificação de todos os laços familiares e profissionais, visível no já referido Playtime e ainda em Trafic/Sim, Sr. Hulot (1971), por certo um dos filmes mais sarcásticos que já se fizeram sobre a sedução consumista do automóvel. Sem esquecer, claro, O Meu Tio (1958), precisamente uma crónica sobre a transição dos lugares de um viver tradicional e ingénuo para os novos arranjos urbanos, liofilizados e impessoais. 
Se é verdade que tudo isto nos remete para momentos muito concretos da história da França, não é menos verdade que a visão de Tati possui um singular eco universal. Através de um humor subtil e contagiante, ele filma as relações sociais como uma paisagem de mútuo desconhecimento. Aqui e agora, seria um retratista das ilusões ecuménicas das redes (ditas) sociais. E da primordial dificuldade de devolver a bola com a raqueta.

COVID-20
— um blog sobre o COVID-19

Para além das especificidades e, como é óbvio, da continuidade do SOUND+VISION, permito-me apresentar uma derivação pessoal, também em forma de blog — chama-se COVID-20.

sábado, setembro 19, 2020

Ruth Bader Ginsburg (1933 - 2020)

[Time]
Personalidade fundamental nos combates ideológicos e legais pela igualdade de géneros e pelos direitos das mulheres, juíza do Supremo Tribunal dos EUA desde 1993 (nomeada por Bill Clinton), Ruth Bader Ginsburg faleceu em sua casa, em Washington, no dia 18 de Setembro, vítima de cancro no pâncreas — contava 87 anos.

>>> "O Projecto Radical de Ruth Bader Ginsburg" — video do New York Times.

sexta-feira, setembro 18, 2020

Jimi Hendrix morreu há 50 anos

Jimi Hendrix morreu no dia 18 de Setembro de 1970, faz hoje 50 anos. Como acontece com alguns outros nomes lendários da história do rock, o seu legado mantém-se em permanente reconversão. Este ano, por exemplo, aguarda-se ainda o lançamento de Live in Maui, álbum que resultou do seu envolvimento na rodagem do filme Rainbow Bridge (1971), testemunho célebre (e muito pouco divulgado) da contra-cultura da década de 60.
Live in Maui deverá surgir no próximo dia 20 de Novembro, a par de um documentário sobre a experiência de Hendrix naquela ilha do Havai, intitulado Music, Money, Madness ... Jimi Hendrix in Maui. O concerto de Hendrix (dois sets de 50 minutos) ocorreu a 30 de Julho, cerca de um mês e meio antes do seu falecimento — eis Voodoo Child (Slight Return).


>>> Site oficial de Jimi Hendrix.

A IMAGEM: Jessica Chastain, 2019

 

JESSICA CHASTAIN
"Trying out some new makeup..."
01 Nov. 2019

quinta-feira, setembro 17, 2020

Suzanne Vega em Nova Iorque

Marlene on the Wall, Luka, Pornographer's Dream... O álbum An Evening of New York Songs and Stories podia ser uma espécie de mini-biografia artística de Suzanne Vega. Talvez. Na verdade, trata-se de um registo que nos devolve a intimidade de uma noite novaiorquina, et pour cause, registada no cenário esplendoroso do Café Carlyle, em 2019. Além dos temas do seu cancioneiro, Vega ensaia um belo desvio pelo clássico Walk on the Wild Side, de Lou Reed, agora recriado em teledisco.
 

Luís Filipe Vieira, António Costa & etc.

ROY LICHTENSTEIN
Crying Girl
1963


"Vivemos tempos em que a justiça passou a ser feita no Facebook, nas redes sociais e nos media." A frase, concisa e lúcida, impecável na sua identificação do vírus "justiceiro" que circula no tecido social, está num comunicado de Luís Filipe Vieira [DN], dando conta da sua decisão de retirar os nomes de António Costa e Fernando Medina da comissão de honra da sua candidatura às próxima eleições do Benfica — como se prova, nunca devemos menosprezar o poder discursivo de ninguém.

quinta-feira, setembro 10, 2020

Em memória
de José Vaz Pereira

Sydney Pollack e Dustin Hoffman em Tootsie (1982):
nos labirintos do masculino/feminino
A cinefilia envolve emoção e pensamento: nela têm lugar os muitos filmes que fizeram de nós os espectadores que somos, e também as pessoas com quem vamos partilhando a descoberta desses filmes e dos seus criadores — este texto foi publicado no Diário de Notícias (5 Setembro).

Publico esta imagem em memória de José Vaz Pereira, companheiro da crítica de cinema, falecido a 31 de Agosto, contava 89 anos. Nela podemos ver Sydney Pollack e Dustin Hoffman no filme Tootsie (1982), exemplo admirável da comédia dramática de Hollywood.
José Vaz Pereira era um cinéfilo com quem dava gosto conversar sobre as nuances dos filmes. Não para estabelecer meras listas de “gostos”, antes para viver o cinema como partilha de visões, valorizando sempre o seu conhecimento histórico, estabelecendo ziguezagues de narrativas e pensamentos entre passado e presente.
Há, por isso, uma particular motivação profissional para a minha evocação de Tootsie. Foi um dos primeiros filmes que me levou ao estrangeiro para entrevistar um dos seus criadores. Aconteceu em Madrid, no começo de 1983 (a estreia portuguesa ocorreu em Março desse ano) e, precisamente, na companhia de José Vaz Pereira: pudemos conversar com Pollack durante quase três quartos de hora, descobrindo o discurso pedagógico, a inteligência e o humor de um homem que ocupa um lugar central na geração de cineastas americanos (Robert Mulligan, John Frankenheimer, Sidney Lumet, etc.) que, depois do período clássico, iniciaram as carreiras na televisão.
No plano específico do trabalho jornalístico, esta é também uma memória plena de desencanto. As condições que tivemos para conversar serenamente com um dos nomes maiores de Hollywood — na altura, Pollack dirigira já, por exemplo, Os Cavalos Também se Abatem (1969), O Nosso Amor de Ontem (1973) e Os Três Dias do Condor (1975) — correspondem a um estado da indústria e do marketing que nada tem a ver com o que acontece nos dias de hoje. Agora, o “normal” é juntar cinco ou seis (ou mais) jornalistas para uma conversa com alguém que estará disponível durante 15 ou 20 minutos. No caso das entrevistas para televisão, são frequentemente concedidos quatro ou cinco minutos.
Entenda-se: não refiro estes valores como se pertencessem a um mundo que me é estranho — já fiz entrevistas em tais condições e devo reconhecer que, por vezes, com resultados interessantes (para mim, em todo o caso). O certo é que, em termos globais, o marketing passou a privilegiar a fragmentação e a brevidade dos diálogos, valorizando mais a possibilidade de “oferecer” um soundbyte de três segundos do que a concretização de uma genuína entrevista.
Em ligação com tal memória, incluo Tootsie numa lista muito pessoal (afinal, há sempre listas…) de títulos capazes de testemunhar e questionar as transformações de comportamentos públicos e privados. Vale a pena recordar que Hoffman interpreta Michael Dorsey, um actor de Nova Iorque cujo perfeccionismo o conduziu a um impasse. Embora reconhecido pelo seu talento, ganhou fama de complicar todos os projectos em que se envolve, a ponto de não conseguir trabalho. Desesperado, decide tentar uma audição para um papel… feminino: Michael transforma-se em Dorothy Michaels, sendo contratado para uma série televisiva. Pollack, também realizador do filme, interpreta o angustiado agente de Michael, temendo pelas repercussões mais ou menos escandalosas da sua “mudança” de personalidade.
Tootsie parece-me ter tudo aquilo que falta a alguns filmes recentes que, em nome das mais diversas militâncias (cuja legitimidade não está em causa), se debruçam também sobre as linhas de clivagem, materiais ou simbólicas, entre homens e mulheres. Há no filme de Pollack uma alegria e uma disponibilidade para conhecer os outros que resiste a reduzir as personagens, seja qual for a sua identidade sexual, a “ícones” de uma qualquer saga “libertadora”.
Quando a personagem de Julie (Jessica Lange) descobre a “mentira” de Dorothy, a sua aproximação afectiva de Michael começa com um tocante desabafo: “Sinto a falta de Dorothy.” Ao que Michael responde, identificando a sua própria presença através de um belíssimo paradoxo: “Ela está aqui”. E acrescentando uma daquelas breves linhas de diálogo que fazem os grandes argumentos [video]: “Eu fui um homem melhor para ti, enquanto mulher… melhor do que alguma vez fui com uma mulher, enquanto homem.”

Angel Olsen, opus 5

Gravado numa igreja... O quinto álbum da americana Angel Olsen é mesmo um exercício em direcção ao sagrado. Entenda-se: Whole New Mess encena-se em cenários da mais depurada intimidade, cada vez mais sofisticada (e simples?) na sua arquitectura musical. Eis o teledisco de All Mirrors e uma gravação de Waving, Smiling — não é rock'n'roll, mas a densidade das ambiências aconselha a que subamos o nível do som.



quarta-feira, setembro 09, 2020

Vicente Jorge Silva (1945 - 2020)

FOTO: Reinaldo Rodrigues/Global Imagens [DN]
Com a morte de Vicente Jorge Silva — no dia 8 de Setembro, vítima de cancro, contava 75 anos — desaparece uma personalidade nuclear na história de meio século de jornalismo em Portugal. O seu trajecto profissional define-se a partir de uma crença, metódica e obstinada, num princípio ancestral: o respeito pela inteligência do leitor.
Permito-me, por isso, lembrar aqui a clareza de um princípio deontológico que, no começo dos anos 80, encontrei no jornal Expresso, quando Vicente Jorge Silva e Augusto M. Seabra coordenavam, definiam e impulsionavam os conteúdos da sua "Revista". Não se trata de um valor exclusivo de uma época ou de um órgão de informação, mas creio que vale a pena citá-lo.
Que princípio deontológico, então? Não apenas a afirmação do sector cultural como elemento basilar de qualquer estrutura jornalística, mas a abragência temática e ideológica do conceito de cultura, observada e vivida como dinâmica infinita dos valores humanos. Ou ainda, em termos especificamente jornalísticos, para lá do mero registo de "estreias" e "lançamentos": a importância decisiva de saber encarar todos os domínios abordados — a começar pela política — a partir de uma visão cultural.
Sem querer resumir ou santificar as muitas e apaixonadas intervenções de Vicente Jorge Silva nos mais variados domínios, creio que podemos dizer que o essencial da sua herança decorre do facto de ele ter sido um jornalista realmente político. Não pelo seu pontual protagonismo na "cena política", antes por não abdicar de observar e pensar as actividades humanas — a começar pela política — como gestos eminentemente culturais.

domingo, setembro 06, 2020

Tricky, opus 14

O mestre do trip-hop [NPR] reaparece com aquele que será, por certo, o seu álbum mais trágico e também mais depurado: Tricky compôs Fall to Pieces depois do suicídio da sua filha, Mina Mazy, em 2019, contava 24 anos. O resultado é um 14º álbum de estúdio (o anterior, Ununiform, surgira há três anos) tem tanto de metódico trabalho de luto como de sofisticado minimalismo musical, segundo essa lógica muito pessoal em que melodia e ritmo se fundem e confundem, contaminam e reinventam. Contribuição fundamental é a voz da cantora polaca Marta Zlakowska, emprestando à dor a dimensão de um cântico redentor — aqui fica o exemplo de Fall Please.

Walk slow in rain
Big coat gold chain

Was it rain
Was it grey
Do you kneel
When you pray
And now the sun is going down
And I'm tired from the crowd
And I'm falling from the ground
And now the sun is going down
Until Jesus come

Fall please
For you
Fall please
Want to

Fall please
For you
Fall please
Want to

Was it rain
Was it grey
Do you kneel
When you pray
Was it night
Was it day
Was it pain
In our way
And now the sun is going down
And I'm tired from the crowd
And I'm falling from the ground
Until Jesus come

Fall please
For you
Fall please
Want to


Burt Bacharach & Daniel Tashian

Eis uma especialíssima reunião: Burt Bacharach e Daniel Tashian — o primeiro uma lenda da canção made in USA, autor de muitos temas que já pertencem à colecção de standards da cultura popular (exemplo: Raindrops Keep Fallin' on My Head, 1969); o segundo um criador multifacetado, do canto à composição e produção (foi ele o produtor de Golden Hour, de Kacey Musgraves, um dos grandes álbuns de 2018). Pouco antes da situação de pandemia gravaram um EP, intitulado Blue Umbrella; agora, surgem na NPR para apresentar três canções desse registo... a milhares de quilómetros de distância. Ou seja: uma das mais belas edições dos 'Tiny Desk (Home) Concerts' produzidos e apresentados por Bob Boilen.

quinta-feira, setembro 03, 2020

18 minutos com Christopher Nolan

Eis uma derivação filosófica a propósito de Tenet, de Christopher Nolan. Disponível no YouTube, em Eyes On Cinema, trata-se um fascinante registo de 18 minutos em que Nolan comenta a estrutura do seu admirável Memento (2000). Embora sem informação cronológica, deduz-se que será uma gravação não muito posterior ao lançamento daquela que foi a segunda longa-metragem de Nolan — uma verdadeira lição narrativa capaz de nos ajudar, não apenas a lidar com os ziguezagues da montagem de Memento, mas também com os cruzamentos de subjectividade e objectividade, memória e imaginação. 

quarta-feira, setembro 02, 2020

Charles Ives por Gustavo Dudamel

Leonard Bernstein classificou-o como um verdadeiro primitivo da música dos EUA. Assim é Charles Ives (1874-1954): compositor capaz de cruzar a grande herança germânica com as referências populares do seu país, Ives deixou uma obra, não exactamente reduzida, mas que, de tão singular, continua a existir num processo de permanente redescoberta.
Assim acontece através da excelência da Filarmónica de Los Angeles, sob a direcção de Gustavo Dudamel. Com chancela da Deutsche Grammophon, as suas quatro sinfonias surgem numa admirável edição, além do mais envolvendo, agora, uma singular dimensão saudosista: Charles Ives: Complete Symphonies foi gravado no Walt Disney Concert Hall, Los Angeles, em Fevereiro de 2020, poucas semanas antes das limitações impostas pela pandemia — deslumbrante, para ouvir e voltar a ouvir, percorrendo a herança de um genuíno natural.

>>> Três andamentos de Charles Ives:
— Sinfonia Nº 1 - II. Adagio molto. Sostenuto.
— Sinfonia Nº 2 - II. Allegro.
— Sinfonia Nº 3, "The Camp Meeting" - I. Old Folks Gatherin' - Andante maestoso.





terça-feira, setembro 01, 2020

José Vaz Pereira (1931 - 2020)

Pequeno selo, grande memória: retiro esta imagem da página de entrada do site da Cinemateca Portuguesa, um fotograma de Meus Amigos (1974), de António da Cunha Telles, com José Vaz Pereira em função de actor, cometendo o delicioso pecado de abandonar as suas tarefas críticas, cedendo à sedução da câmara de filmar. Assim era JVP: sereno a lidar com os contrastes da vida cinéfila, pose de intelectual citadino, suave e sem preconceitos, voz arrastada, mas firme, de grande secundário da idade de ouro de Hollywood.
Para lá das memórias pessoais, para lá da partilha de filmes e ideias, a notícia do seu falecimento, aos 89 anos de idade, arrasta uma nostalgia especificamente jornalística: a de um tempo em que a actualidade — e, por isso mesmo, o trabalho — da crítica de cinema não estava afectada pela velocidade de um mercado global que a todos nós (críticos e jornalistas em geral) impôs outros ritmos, nem sempre os mais interessantes para pensar os objectos em análise. Ou simplesmente: nem sempre os mais interessantes para pensar.
A herança da escrita de JVP pertence, por isso, ao património dos que, melhor ou pior, querem lidar com os filmes sem os encerrar em dicotomias pueris de "gosto". Que é como quem diz: tentando compreender o que vemos e ouvimos quando um filme nos leva a ver e ouvir. E também a escrever.