quinta-feira, setembro 10, 2020

Em memória
de José Vaz Pereira

Sydney Pollack e Dustin Hoffman em Tootsie (1982):
nos labirintos do masculino/feminino
A cinefilia envolve emoção e pensamento: nela têm lugar os muitos filmes que fizeram de nós os espectadores que somos, e também as pessoas com quem vamos partilhando a descoberta desses filmes e dos seus criadores — este texto foi publicado no Diário de Notícias (5 Setembro).

Publico esta imagem em memória de José Vaz Pereira, companheiro da crítica de cinema, falecido a 31 de Agosto, contava 89 anos. Nela podemos ver Sydney Pollack e Dustin Hoffman no filme Tootsie (1982), exemplo admirável da comédia dramática de Hollywood.
José Vaz Pereira era um cinéfilo com quem dava gosto conversar sobre as nuances dos filmes. Não para estabelecer meras listas de “gostos”, antes para viver o cinema como partilha de visões, valorizando sempre o seu conhecimento histórico, estabelecendo ziguezagues de narrativas e pensamentos entre passado e presente.
Há, por isso, uma particular motivação profissional para a minha evocação de Tootsie. Foi um dos primeiros filmes que me levou ao estrangeiro para entrevistar um dos seus criadores. Aconteceu em Madrid, no começo de 1983 (a estreia portuguesa ocorreu em Março desse ano) e, precisamente, na companhia de José Vaz Pereira: pudemos conversar com Pollack durante quase três quartos de hora, descobrindo o discurso pedagógico, a inteligência e o humor de um homem que ocupa um lugar central na geração de cineastas americanos (Robert Mulligan, John Frankenheimer, Sidney Lumet, etc.) que, depois do período clássico, iniciaram as carreiras na televisão.
No plano específico do trabalho jornalístico, esta é também uma memória plena de desencanto. As condições que tivemos para conversar serenamente com um dos nomes maiores de Hollywood — na altura, Pollack dirigira já, por exemplo, Os Cavalos Também se Abatem (1969), O Nosso Amor de Ontem (1973) e Os Três Dias do Condor (1975) — correspondem a um estado da indústria e do marketing que nada tem a ver com o que acontece nos dias de hoje. Agora, o “normal” é juntar cinco ou seis (ou mais) jornalistas para uma conversa com alguém que estará disponível durante 15 ou 20 minutos. No caso das entrevistas para televisão, são frequentemente concedidos quatro ou cinco minutos.
Entenda-se: não refiro estes valores como se pertencessem a um mundo que me é estranho — já fiz entrevistas em tais condições e devo reconhecer que, por vezes, com resultados interessantes (para mim, em todo o caso). O certo é que, em termos globais, o marketing passou a privilegiar a fragmentação e a brevidade dos diálogos, valorizando mais a possibilidade de “oferecer” um soundbyte de três segundos do que a concretização de uma genuína entrevista.
Em ligação com tal memória, incluo Tootsie numa lista muito pessoal (afinal, há sempre listas…) de títulos capazes de testemunhar e questionar as transformações de comportamentos públicos e privados. Vale a pena recordar que Hoffman interpreta Michael Dorsey, um actor de Nova Iorque cujo perfeccionismo o conduziu a um impasse. Embora reconhecido pelo seu talento, ganhou fama de complicar todos os projectos em que se envolve, a ponto de não conseguir trabalho. Desesperado, decide tentar uma audição para um papel… feminino: Michael transforma-se em Dorothy Michaels, sendo contratado para uma série televisiva. Pollack, também realizador do filme, interpreta o angustiado agente de Michael, temendo pelas repercussões mais ou menos escandalosas da sua “mudança” de personalidade.
Tootsie parece-me ter tudo aquilo que falta a alguns filmes recentes que, em nome das mais diversas militâncias (cuja legitimidade não está em causa), se debruçam também sobre as linhas de clivagem, materiais ou simbólicas, entre homens e mulheres. Há no filme de Pollack uma alegria e uma disponibilidade para conhecer os outros que resiste a reduzir as personagens, seja qual for a sua identidade sexual, a “ícones” de uma qualquer saga “libertadora”.
Quando a personagem de Julie (Jessica Lange) descobre a “mentira” de Dorothy, a sua aproximação afectiva de Michael começa com um tocante desabafo: “Sinto a falta de Dorothy.” Ao que Michael responde, identificando a sua própria presença através de um belíssimo paradoxo: “Ela está aqui”. E acrescentando uma daquelas breves linhas de diálogo que fazem os grandes argumentos [video]: “Eu fui um homem melhor para ti, enquanto mulher… melhor do que alguma vez fui com uma mulher, enquanto homem.”