sábado, outubro 19, 2019

Jolie + Fanning + Pfeiffer

Maléfica: Mestre do Mal relança o gosto da fábula que já distinguia o filme Maléfica, estreado em 2014. No centro dos acontecimentos está de novo a bruxa má, interpretada por uma Angelina Jolie em espectacular transfiguração visual — este texto foi publicado no Diário de Notícias (16 Outubro).

E aí está Maléfica: Mestre do Mal, mais uma sequela… De novo com Angelina Jolie. O hábito leva-nos a perguntar: mais uma sequela semelhante às de muitos super-heróis, vazia de ideias, com efeitos especiais repetidos e repetitivos, tudo embrulhado numa banda sonora apenas apostada em deixar-nos com dores de cabeça?…
Nada disso. Desta vez é mesmo a sério, de alguma maneira demonstrando que a produção com chancela Disney continua a possuir talento e energia para não se deixar enredar na monótona vulgaridade a que chegou a maior parte dos filmes dos estúdios Marvel (que integram o império Disney desde 2009). Maléfica: Mestre do Mal retoma o pressuposto central de Maléfica (2014), ou seja, reencenar o conto clássico de A Bela Adormecida, não apenas recriando o filme de animação da própria Disney lançado em 1959, mas também a narrativa de Charles Perrault publicada em 1697.
De que se trata, então? A prudência jornalística aconselha-nos a não revelar aquilo que foi concebido para ser descoberto pelo espectador… Seja como for, digamos que este segundo filme, dirigido pelo norueguês Joachim Rønning, retoma o legado simbólico do primeiro — afinal, a bruxa má transfigurava-se em figura maternal da pequena Aurora — para relançar uma história que, em última instância, lida com as ambiguidades da moral e a continuada demanda do Bem.
Importa dizer, por isso, que Maléfica: Mestre do Mal não receia recuperar e, mais do que isso, celebrar o misto de candura e perversidade que sempre foi matéria nuclear do território da fábula. A dinâmica dramática do novo filme impõe-se, assim, como um inesperado exercício sobre as configurações do feminino: Aurora é a “bela adormecida” que, cinco anos depois do filme anterior, está noiva do Príncipe Philip; Ingrith, mãe de Philip, a Rainha que encara o noivado de modo, no mínimo, hesitante; enfim, sempre dotada de poderes devastadores, Maléfica reaparece com a sua cabeça demoníaca e as asas ameaçadoras para reafirmar os mesmos poderes malignos… Ou talvez não.
Duas componentes paradoxais contribuem para tal dinâmica. Em primeiro lugar, uma sofisticada criação de cenários (mais ou menos) digitais, mostrando que é possível integrar os mais modernos recursos de produção sem que isso seja um fim em si mesmo — Maléfica: Mestre do Mal fundamenta-se numa invenção visual cuja exuberância possui qualquer coisa de saborosamente primitivo. Depois, Angelina Jolie, Elle Fanning e Michelle Pfeiffer (respectivamente como Maléfica, Aurora e Ingrith) definem um trio de inusitadas cumplicidades de composição capaz de nos fazer lembrar uma verdade estética que nenhuma forma de marketing pode rasurar: o elemento humano, neste caso as actrizes, continua a ser essencial, mesmo quando o cinema acontece através de mundos e efeitos de pura fantasia.
O exemplo de Angelina Jolie afigura-se modelar: a sua transfiguração através de uma complexa caracterização do rosto e do corpo não anula (parece mesmo intensificar) a subtileza do trabalho de representação. Ela é, afinal, uma actriz capaz de registos eminentemente trágicos (lembremos esse admirável filme de 2008 que é A Troca, realizado por Clint Eastwood), mas também deste festivo revivalismo do conto de fadas, monstros & etc.
Agora que as memórias de Judy Garland (por causa do filme Judy, com Renée Zellweger) têm levado a uma certa redescoberta do clássico O Feiticeiro de Oz, lançado em 1939, vale a pena sublinhar que Maléfica: Mestre do Mal surge como um objecto em ligação muito directa com o gosto de artifício desse cinema da idade de ouro de Hollywood. Não se trata de uma banal equivalência de valor — 1939 foi incomparavelmente mais rico e diversificado que 2019. Acontece que a transcendência gerada pelas imagens e sons de uma sala escura não se define pelo “vanguardismo” das suas bases tecnológicas. O que mais conta é o prazer de contar histórias, num permanente ziguezague entre o clássico e o moderno.