Angelina Jolie lidera uma bela revisitação de A Bela Adormecida: Maléfica, de Robert Stromberg, refaz o conto de Perrault para o séc. XXI — este texto foi publicado no Diário de Notícias (5 Junho), com o título 'Atribulações do Bem e do Mal'.
Que aconteceu entre a escrita da frase de abertura do conto de Charles Perrault, A Bela Adormecida (Era uma vez um Rei e uma Rainha...), e o filme Maléfica, dirigido por Robert Stromberg, com chancela dos estúdios Disney? Digamo-lo da maneira mais simples: aconteceram nada mais nada menos que 317 anos, uma vez que a edição original data de 1697. Será inútil tentar reencontrar uma qualquer “pureza” original, quanto mais não seja porque o cinema é também essa arte de nos dizer que não há narrativas imaculadas, muito menos definitivas, mas sim histórias que continuamente revisitamos e, melhor ou pior, reinventamos.
Sublinhemos a evidência mais cândida: Maléfica é um filme deste tempo que vivemos, envolvidos que estamos nas muitas vertigens que, porventura contra as nossas crenças mais fundas, nos levam a duvidar das fronteiras tradicionais entre a crueldade do Mal e a promessa redentora do Bem. Nada que o velho Hitchcock não soubesse, quando avisava que as boas histórias precisam de uma grande personagem “má”.
Maléfica conta, assim, com toda a maldade que Angelina Jolie sabe injectar na sua personagem, de forma tão determinada e ambígua que a consequência mais intensa acaba por ser também a mais perturbante: afinal, quando ela desenha uma fronteira intransponível com o reino vizinho, de que lado está a bondade? Ou ainda: cada um de nós, como espectador, pertence a que paisagem?
A imagem do filme construída pelo marketing esgota-se na presença magnética da sua estrela, mas importa reagir a essa formatação promocional: Maléfica é um espantoso exercício de reinvenção narrativa que reconhece que a conjugação das histórias clássicas com as novas conjunturas tecnológicas gera novos sentidos e diferentes significações — a começar pela noção simbólica de maternidade.