terça-feira, dezembro 04, 2018

Sollers — nas margens, quer dizer, no centro

Homem sempre interessado pelos labirintos da beleza, o francês Philippe Sollers situa-se, por isso mesmo, nas margens de qualquer sistema que trabalhe para a formatação do real.
Coisa frequente, coisa monstruosa do nosso mundo contemporâneo: desde aqueles que alimentam as deprimentes polémicas futebolísticas até aos que naturalizaram os horrores da Reality TV, passando pelos arautos de todas as purificações sexuais, os formatos impuseram-se como a única ideia de redenção de um universo que não consegue pensar para além de 20 ou 30 palavras (eventualmente 140 caracteres, o que vem a dar no mesmo).
O seu génio é tanto mais repelido pelo exército dos "formatadores" (se a palavra não existe, precisamos de a inventar) quanto a marginalidade de Sollers o impele para o centro. Centre, justamente, aí está, obra maior na produção literária de 2018 em que a personagem de um escritor fascinado por Freud e Lacan, expõe, através de palavras precisas e desejos impregnados pela escrita, a sua relação amorosa com Nora, psicanalista.
Sabemos que Sollers é casado com Julia Kristeva, ensaíasta, romancista e, avant tout, psicanalista... Evitemos, porém, os jogos florais autobiográficos, outro formato em voga: cronista medíocre ou profissional do comentário político, sem esquecer as mais bizarras encarnações de bloggers e youtubers, são muitos os que se afadigam no domínio da desvergonha autobiográfica, pueril e anedótica, alimentada pela estupidez "social" em rede.
Para Sollers, o centro é, de uma só vez, o lugar a partir do qual o amor se define, pulverizando a geometria do mundo, e o domínio do impensável humano — porque a urgência de pensar as relações humanas pode levar-nos a coabitar com uma transcendência que pertence apenas ao labor da escrita ou, como diria um mestre querido de Sollers, ao prazer do texto.
Enfim, este é um livro de um humor radical, prolongando a série de romances fragmentários com que Sollers vai inventariando a obscenidade do mundo, pressentindo, apesar de tudo, uma alegria que insiste em assumir-se como centro do pensamento. Et pour cause.

>>> Na era do Espectáculo mundializado, a "pós-verdade" impõe-se. Aliás, tudo se tornou "pós". Pós-moderno, pós-sexual, pós-religioso, pós-político, pós-climático. Um "pós" e uma "pós" já não têm muito a dizer um ao outro, permanecem dobrados sobre os seus smartphones, em contacto constante com outros "pós". Os "pós-ovócitos" estão no mercado, do mesmo modo que os "pós-espermatozóides" tornados cada vez mais raros. O "pós-útero" está em marcha. Assim vai o "pós",  já ultrapassado, na ciber-guerra, pelo "hiper-pós". Já não há posteridade, já não há póstumo, nada a não ser posturas postiças sem futuro.

PHILIPPE SOLLERS
in Centre, pág. 98