BERNARDO BERTOLUCCI — rodagem de Os Sonhadores |
O cineasta de O Último Tango em Paris e O Último Imperador deixa uma obra imensa, plena de actualidade, marcada pelas clivagens entre gerações e classes sociais — este texto foi publicado no Diário de Notícias (27 Novembro).
É bem provável que, um pouco por todo o mundo, a maioria dos espectadores de cinema associe o nome de Bernardo Bertolucci apenas ao seu grande filme “oscarizado”, O Último Imperador (1987), retrato amargo e doce da decomposição de uma forma ancestral de poder político. Além do mais, a sua assinatura está no eternamente polémico O Último Tango em Paris (1972), por certo um dos mais belos testemunhos da ressaca das ilusões libertárias da década de 60.
Na verdade, tal visão é profundamente limitada e limitativa. Entenda-se: não são os espectadores que estão em causa, sobretudo nesta Europa que continua a não saber dar aos seus filmes a mesma visibilidade comercial de que desfrutam os produtos americanos (mesmo não esquecendo que é dos EUA que provêm muitos dos títulos mais interessantes da actualidade). Acontece que essa capacidade (ou a falta dela...) de transmitir um legado, seja ele afectivo ou político, social ou simbólico, está no centro da obra de Bertolucci.
Talvez possamos dizer que a sua filmografia se organiza a partir do arco temático que podemos traçar entre o emblemático e tão esquecido Antes da Revolução (1964) e esse monumental fresco histórico que é 1900 (1976). O primeiro, gerado nos tempos heróicos da Nova Vaga, claramente devedor do seu mestre Jean-Luc Godard, expõe a solidão primordial de uma juventude à procura de um lugar que seja realmente seu, num mundo em que todos os laços tradicionais entre pais e filhos se desagregaram. O segundo, dir-se-ia um panfleto posterior a todas as revoluções, assume até ás últimas consequências os enunciados (e também os profundos desencantos) de uma filiação marxista em que a luta de classes, mais do que um axioma banalmente ideológico, ocupa o cerne da tragédia cinematográfica — 1900 é, afinal, o filme através do qual Bertolucci se assume como herdeiro céptico, também ele solitário, da obra imensa de Luchino Visconti (que, num simbolismo à beira do sarcástico, viria a falecer cerca de dois meses antes da primeira apresentação pública de 1900, em Cannes).
Certamente não por acaso, depois da apoteose de O Último Imperador (não é qualquer um que arrebata nove Oscars em Hollywood, incluindo os de melhor filme, melhor realização e melhor argumento adaptado), a trajectória criativa de Bertolucci foi sendo cada vez mais marcada pela nostalgia — não acomodada, antes crítica e inventiva — de uma juventude para sempre perdida. Exemplos admiráveis dessa sua visão são Os Sonhadores (2003), por certo uma das mais sublimes evocações das ilusões e desilusões de Maio 68, e o comovente Eu e Tu (2012), filme mal amado desde a sua passagem em Cannes, expondo com crueldade e ternura a deriva de dois irmãos que, perante a ausência física e simbólica dos pais, descobrem os valores emergentes do seu austero abandono.
Precisamos, por isso, de ver e rever Bertolucci para lá dos lugares-comuns “eróticos” que se colaram a O Último Tango em Paris (em boa verdade, não há filme menos erótico). Na sua exposição das clivagens entre gerações e classes sociais, os filmes de Bertolucci ajudam-nos a lidar com os temas, sombras e fantasmas do eterno conflito entre o Velho e o Novo. Na certeza de que não precisamos de escolher um contra o outro — o que, bem entendido, nunca será fácil.