terça-feira, fevereiro 28, 2017

Oliver Stone fora dos Oscars

Joseph Gordon-Levitt, SNOWDEN
É verdade: mesmo tendo assinado um filme tão complexo e perturbante como Snowden, Oliver Stone esteve fora da corrida para os prémio da Academia de Hollywood — este texto foi publicado no Diário de Notícias (26 Fevereiro), com o título 'No coração do Sonho Americano'.

Confesso que encaro sempre com grandes dúvidas as vagas de protestos contra os Oscars de Hollywood, nomeadamente a que, há dois anos, veio “denunciar” aquilo que seria a marginalização dos afro-americanos. Não se trata, entenda-se, de avaliar se os Oscars consagram os “meus” ou os “teus” filmes... Trata-se apenas de observar que tais protestos coexistem com a noção simplista segundo a qual Hollywood apenas fabrica produtos escapistas, artisticamente irrelevantes.
Semelhante visão tem um efeito principal: promove a ignorância sobre a complexidade, plena de contrastes e contradições, da história política de Hollywood. Exemplo próximo: a esmagadora maioria das abordagens do tratamento cinematográfico dos afro-americanos não soube, ou não quis, evocar a fundamental herança ideológica dos filmes que, há meio século ou mais, foram protagonizados por Sidney Poitier (o emblemático Adivinha Quem Vem Jantar?, de Stanley Kramer, é de 1967).
Oliver Stone [YAHOO! Tech]
Insolitamente, pouco ou nada se tem dito da ausência nos Oscars de um dos títulos que, de uma maneira ou de outra, ficará para a história do ano de 2016 em Hollywood (mesmo sendo uma produção com forte participação europeia). Não, não me estou a referir ao prodigioso Silêncio, de Martin Scorsese (uma nomeação, na categoria de melhor fotografia), mas sim ao muito pouco discutido Snowden, de Oliver Stone (entretanto, já disponível em DVD no mercado português).
Mesmo ficando pelas categorias de interpretação, valeria a pena questionar a ausência do notável trabalho de Joseph Gordon-Levitt, interpretando a personagem de Edward Snowden, o funcionário da National Security Agency que divulgou documentos sobre as práticas de vigilância do governo dos EUA.
Claro que Snowden será tudo o que se quiser, menos um filme talhado para gerar os chamados consensos alargados (tal como o próprio Edward Snowden, como é óbvio). Será mesmo o oposto de La La Land, a que até mesmo os menos entusiastas (entre os quais me incluo) não podem deixar de reconhecer a força simbólica de um verdadeiro fenómeno mediático.
Pergunto-me, por isso mesmo, se o “esquecimento” de Snowden não decorrerá da sua visceral ambivalência. Na verdade, à semelhança de outros grandes momentos da sua filmografia — recordemos Nixon, retrato íntimo de Richard Nixon lançado em 1995 —, Stone filma no coração do Sonho Americano, pressentindo que já não há heróis puros. Em tempos em que se confundem ideias com polegares (acima ou abaixo), a perturbação da ambivalência não poderia ser popular.

segunda-feira, fevereiro 27, 2017

Oscars em tempo real

Se não estivermos a receber envelopes trocados, este foi o vencedor do Oscar de melhor filme de 2016... Oficialmente, parece estar confirmado — os deuses da televisão em directo redescobriram o seu Olimpo, em tempo real.

domingo, fevereiro 26, 2017

OSCARS: "La La Land" e os outros

As previsões dos Oscars cruzam-se com uma reavaliação do poder simbólico e, afinal, político dos prémios da Academia de Hollywood — este texto foi publicado no Diário de Notícias (25 Fevereiro), com o título 'Será que La La Land vai bater o recorde de onze Óscares?'.

Quem vai ganhar os Oscars? A pergunta está longe de ser meramente cinéfila. Há quem a formule com uma calculadora na mão. De facto, as apostas nos prémios da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas não terão a mesma dimensão do futebol ou das corridas de cavalos, mas os números podem ser sugestivos.
Este ano, o contundente favoritismo de La La Land parece contrariar a possibilidade de grandes ganhos. Se consultarmos, por exemplo, o site britânico SkyBet (ligado à rede Sky de canais de televisão), ficamos a saber que o maior risco — e a maior vantagem — está do lado do filme de Denzel Washington, Vedações. Quem apostar 10 libras na possibilidade de, na madrugada de domingo para segunda-feira, esse ser o consagrado como melhor filme de 2016, receberá nada mais nada menos que 1510 libras. O mesmo valor investido em La La Land terá como retorno apenas 11,43 libras.
Goste-se mais ou goste-se menos, este ficará como o ano de La La Land. Depois de várias décadas a ouvirmos muitos frequentadores regulares das salas escuras a proclamar que os musicais, com toda aquela gente a cantar e dançar, seriam uma coisa falsa e absurda, eis que o argumentista/realizador Damien Chazelle conseguiu resolver a quadratura do círculo: La La Land é, de uma só vez, um paradoxo cultural, um fenómeno de moda e um sólido sucesso comercial — as suas receitas globais já chegaram aos 350 milhões de dólares, feito tanto mais espectacular quanto o orçamento foi de apenas 30 milhões, valor abaixo dos gastos numa produção de rotina de um grande estúdio (um eventual Oscar de melhor filme deverá acrescentar, no mínimo, mais 100 milhões a estes números).
Com as suas 14 nomeações, La La Land conseguiu, para já, igualar um recorde da Academia. Até agora, apenas dois filmes tinham obtido esse número de candidaturas às estatuetas douradas: Eva (1950), de Joseph L. Mankiewicz, e Titanic (1997), de James Cameron. O segundo, com 11 Oscars, é um dos recordistas de prémios — apenas Ben-Hur (1959), de William Wyler, e O Senhor dos Anéis: O Regresso do Rei (2003), de Peter Jackson, conseguiram a mesma proeza. Ganhando em todas as categorias (hipótese em que, convenhamos, ninguém acredita) La La Land acumulará 13 Oscars (já que tem duas nomeações na categoria de melhor canção).

Como falar de Trump?

Há em tudo isto uma perversa ironia que, por certo, irá deliciar os futuros historiadores, não apenas de Hollywood, mas das dinâmicas sociais e políticas da própria América. De que falamos? Do factor Trump, como é óbvio.
[ TIME ]
A questão, entenda-se, não decorre apenas da tradicional especulação sobre o tom a adoptar pelo apresentador da cerimónia. Ou seja: de que modo Jimmy Kimmel (um estreante nestas funções) vai referir-se a Donald Trump? Sem esquecer, claro, que o Presidente tem sido tema recorrente do seu show na ABC (Jimmy Kimmel Live!). Por exemplo, no dia seguinte à já lendária conferência de imprensa de Trump (com 77 minutos de duração), Kimmel fez notar que o seu tom era o mesmo do pai que “encontrou um maço de cigarros escondido no nosso colchão...”
A questão é saborosamente desconcertante: será que numa América todos os dias mais dividida perante as acções e decisões do seu Presidente, os Oscars vão consagrar o ecumenismo musical e a felicidade abstracta de La La Land?
Não se trata, entenda-se também, de lançar qualquer dúvida sobre a honestidade do trabalho de Damien Chazelle, muito menos sobre a legitimidade da sua eventual vitória (aliás, ele procurava financiamento para o seu argumento desde 2010). Trata-se, isso sim, de notar que a própria Academia, tão marcada nos últimos dois anos pelos dramas decorrentes da (falta de) representação dos afro-americanos nas nomeações, pode estar à beira de secundarizar todos os filmes que, finalmente, parecem atenuar tais clivagens.

A questão das audiências

Convém, por isso, lembrar que entre os nomeados para o Oscar de melhor filme encontramos três títulos que remetem, justamente, para temas e problemas da história dos cidadãos negros no interior da história mais geral dos EUA.
Elementos Secretos, mesmo se genericamente reconhecido como o mais convencional, lida com uma conjuntura de profundas ressonâncias simbólicas: as personagens centrais são mulheres afro-americanas que, através da sua formação científica, e apesar de segregadas no dia a dia, deram um contributo decisivo na planificação das missões espaciais da NASA no começo da década de 1960.
Há ainda Moonlight, de Barry Jenkins, encenando em três tempos (e com três actores diferentes) a evolução dramática de um jovem, e Vedações, a partir de uma peça clássica de August Wilson, centrada numa família afro-americana de Pittsburgh, na década de 1950, com Denzel Washington na dupla qualidade de actor e realizador.
Apesar de todos estes dados, e das especulações que os têm acompanhado, é bem provável que, do ponto de vista da Academia, o essencial tenha muito pouco a ver com quem vai ganhar (ou perder). Na verdade, em anos recentes, um dos problemas centrais da cerimónia dos Oscars tem sido a sua quebra de audiências televisivas nos EUA.
É certo que, entre as diversas cerimónias de prémios da indústria do entertainment, a dos Oscars continua a ser a mais vista pelos espectadores. Em todo o caso, nos últimos oito anos, tem havido uma baixa regular. Em 2016, por exemplo, o espectáculo apresentado por Chris Rock foi acompanhado em média por 34,3 milhões de pessoas (contra 36,6 no ano anterior); apesar disso, registou uma ligeira subida no sector dos 18-34 anos, também ele vital na vida comercial das salas escuras. Resta saber se a consagração mais que esperada de La La Land poderá traduzir-se num triunfo para o mercado televisivo americano.

O mundo de Stefan Zweig

Filme de Maria Schrader evoca exílio de Stefan Zweig — esta nota foi publicada no Diário de Notícias (23 Fevereiro).

Conhecemos os anos finais de Stefan Zweig (1881-1942) através desse admirável livro de memórias que é O Mundo de Ontem (Assírio & Alvim, 2014): um labirinto de evocações escritas por um homem angustiado pelo avanço do nazismo na Europa, tentando encontrar noutras paragens, em particular no Brasil, uma hipótese de futuro.
O filme Stefan Zweig - Adeus, Europa, de Maria Schrader, centra-se nesses anos, assumindo um registo que, infelizmente, raras vezes supera as convenções dramáticas e o determinismo psicológico do telefilme biográfico. Em qualquer caso, apesar do decorativismo caricatural de algumas personagens secundárias (sobretudo as brasileiras, interpretadas por actores portugueses), as figuras centrais, Zweig e a ex-mulher, contam com magníficas interpretações — respectivamente, o austríaco Josef Hader e a alemã Barbara Sukowa.

sábado, fevereiro 25, 2017

"Ela" vence Césars

O filme Ela, de Paul Verhoeven, arrebatou dois dos principais Césars do cinema francês: melhor filme e melhor actriz, Isabelle Huppert. Tão Só o Fim do Mundo valeu a Xavier Dolan o prémio de realização e a Gaspard Ulliel o de melhor actor — palmarés integral do site do Canal+.

sexta-feira, fevereiro 24, 2017

"Twin Peaks" — o passado e o presente

Chegará a 21 de Maio, com chancela do canal Showtime. O mais curioso é que a promoção de Twin Peaks — "Está a acontecer outra vez", proclama a sugestiva frase promocional — se faz através de imagens da série original (1990-91). Como se o presente fosse sempre uma assombrada repetição de um passado fixado por alguma pulsão obsessiva. Em boa verdade, tal reversibilidade é uma das imagens de marca de toda a obra de David Lynch — eis um cartaz e um spot. 

quinta-feira, fevereiro 23, 2017

"Alien" — a última ceia

Com lançamento global agendado para 19 de Maio, Alien: Covenant prossegue a sua campanha. Depois do primeiro trailer, o filme de Ridley Scott, uma sequela de Prometheus (2012), surge agora através de uma cena classificada como 'A Última Ceia'. Trata-se de um prólogo, com os tripulantes da nave a celebrar, antes de serem colocados em sono criogénico — reconhecemos vários dos nomes do elenco, incluindo Michael Fassbender, Katherine Waterston e Billy Crudup; Callie Hernandez, que participa em La La Land, é a jovem que se engasga, evocando de imediato John Hurt em Alien (1979).

Com os pés

1. Esta foto do pé do jogador Herrera (ferido num lance do jogo F. C. Porto-Juventus, para a Liga dos Campeões) está hoje um pouco por todo o lado, nomeadamente em muitos sites informativos. A sua omnipresença é suficientemente perturbante para nos confrontar com algumas interrogações incómodas.

2. A primeira dessas interrogações tem a ver, precisamente, com o próprio incómodo que a imagem pode suscitar em algumas pessoas. O certo é que se trata de um interrogação equívoca, um pouco como os resultados "justos" e "injustos" do futebol — se não há tribunal mandatado para avaliar a "justiça" dos resultados, em nome de que lei persistem tais classificações?

3. Podemos também perguntar se o efeito subjectivo de uma imagem (individualizando a reacção de A, B, ou C) é suficiente para dar conta das suas significações? Se algumas pessoas ficam (legitimamente) perturbadas, será que isso basta para nos ajudar a compreender os mecanismos de circulação das imagens e, sobretudo, os valores dominantes nessa circulação?

4. Porque é isso que está em causa. A saber: porque é que um pé ferido de um jogador de futebol se torna jornalisticamente importante? Será que se relança, assim, todo um imaginário do sofrimento que tem os seus ícones mais ancestrais nas representações pictóricas de Cristo na Cruz?

DIEGO VELÁZQUEZ
Cristo Crucificado [pormenor]
1632
5. A pergunta justifica-se porque, muito para além de qualquer consideração "emocional" sobre esta imagem — ou, em boa verdade, qualquer outra imagem —, ela nos conduz a outra questão, vital, quase sempre omitida ou denegada no pensamento jornalístico. Mais concretamente: porque é que as imagens que provêm do universo futebolístico são tratadas como coisas naturais e obrigatórias, gozando de um privilégio de visibilidade que não é concedido a imagens de muitos outros domínios?

6. Porque é que a imagem do pé ferido de Herrera é um acontecimento iconográfico em muitas zonas do jornalismo português? Uma primeira resposta não poderá deixar de recordar que o futebol se tornou uma linguagem compulsiva do nosso quotidiano. Veja-se e, sobretudo, ouça-se a avalanche de lugares-comuns proferidos por treinadores e jogadores, repetidos e repetitivos, todos os dias a contaminar o espaço mediático — como é possível que não se reconheça que tal avalanche, além de destruir metodicamente a elegância da língua portuguesa, favorece um ambiente de permanente conflito?

7. Evitemos, por isso, a saga justiceira dos que, ciclicamente, nos avisam da abundância de "sexo e violência" nas imagens. Não se trata de sugerir, de modo algum, que a imagem do pé de Herrera deveria ser interdita. Já bastam os disparates que circulam sempre que se vulgariza a palavra "censura" em discussões anedóticas de coisa nenhuma. Trata-se apenas de reconhecer algo impossível de negar: os valores correntes do jornalismo reconhecem-na como uma imagem pertinente.

Nos bastidores de uma nova peça
de Anna Meredith



Anno é uma nova obra de Anna Meredith que combina as Quatro Estações de Vivaldi com música que ela mesma compôs para o Scottish Ensemble juntando uma orquestra de cordas, cravo e eletrónicas, e que é apresentada com imagens criadas por Eleanor Meredith.

David Bowie vence prémios nos Brits Awards


Tal como sucedera há alguns dias atrás nos Grammys, o álbum Blackstar valeu a David Bowie distinções, agora nos Brits Awards. Bowie venceu em duas categorias numa premiação que nunca antes tinha atribuído troféus póstumos. Foi, de resto, quem mais prémios arracadou numa noite que dividiu as vitórias entre muitos artistas e bandas.

Está aqui a lista dos vencedores:

Artista a Solo Britânico - David Bowie
Artista a Solo Britânica - Emeli Sandé
Grupo Britânico - The 1975
Revelação Britânica - Rag’n’Bone Man
Sucesso Global - Adele
Melhor Single - Little Mix, Shout Out To My Ex
Melhor Álbum Britânico - David Bowie, Blackstar
Melhor Vídeo Britânico - One Direction, History
Artista a Solo Internacional (m) - Drake
Artista a Solo Internacional (f) - Beyoncé
Grupo Internacional - A Tribe Called Quest

Novos lançamentos:
Teen Daze, Themes For a Dying Earth


A diluição entre a noção de fronteiras tem caracterizado algumas das melhores surpresas discográficas dos últimos anos. E em Themes For a Dying Earth o canadiano Jamison Isaak mostra-nos como, a partir de um caldeirão primordial desenhado em regime “ambient” e sob piscares de olho aos terrenos da dream pop, pode nascer um disco que tanto aceita a canção como a deambulação instrumental como parte de um corpo comum que procura definir ao longo do alinhamento uma ideia. Em tempo usava-se mais o termo “concetual”...

 O título abre pistas e, de facto, entre os temas que fazem o alinhamento deste seu sexto álbum, o projeto Teen Daze assina uma série de olhares sobre um planeta que, mesmo não estando moribundo como à partida se sugere, na verdade vive momentos de algo assombradas nuvens ameaçadoras sob uma política ambiental que transcende as fronteiras dos estados. Porque é coisa da esfera global. Apesar do trabalho de arranjos que convoca as guitarras e um cuidado desenho das arquiteturas rítmicas (que não desejam nunca roubar protagonismos) é nos momentos em que aflora a alma “ambient” (essencialmente talhada a eletrónicas) que o álbum traduz o sentido de busca cénica que Jamison Isaak aqui procura desenhar.

Ao escutar o belíssimo Anew (no qual Jon Anderson, que produziu o disco, toca pedal steel ou Water in Heaven (na linha de algumas das criações mais paisagístcas da dupla Jon & Vangelis) sente-se que, depois de uma inflexão indie pop no anterior Morning World (2015), e de arrumadas as buscas mais “saltaricas” de outrora Jamison encontrou nas pistas de Glacier (2013) um caminho que aqui depura e leva mais adiante naquele que é o seu melhor disco até aqui.

quarta-feira, fevereiro 22, 2017

Leah Adler (1920 - 2017)

[FOTO: The Telegraph]
Pianista e pintora, foi a fama do seu filho, Steven Spielberg, que a tornou mundialmente conhecida: Leah Adler faleceu non dia 21 de Fevereiro, em Los Angeles — contava 97 anos.
Em acontecimentos públicos, Spielberg sempre exaltou a importância da mãe no seu crescimento e, muito em particular, no apoio à sua vontade precoce de fazer cinema — Leah Adler foi sendo conhecida do público enquanto acompanhante do filho em ante-estreias dos seus filmes ou em cerimónias de entrega de prémios. Era proprietária de um restaurante, 'The Milky Way', lugar de culto nos circuitos gastronómicos e cinéfilos de Los Angeles. A 21 de Março de 1994, ao receber o Oscar de melhor realização por A Lista de Schindler, Spielberg chamou-lhe o seu "amuleto da sorte" — video da cerimónia da Academia de Hollywood.


>>> Obituário em The Hollywood Reporter.

Amadeo por Paulo Rocha

O filme de Paulo Rocha sobre Amadeo de Souza-Cardoso voltou às salas (cinema Ideal) e está editado em DVD — este texto foi publicado no Diário de Notícias (19 Fevereiro), com o título 'Amadeo e o “seu” cinema'.

Em paralelo com a exposição dedicada a Amadeo de Souza-Cardoso (1887-1918), patente no Museu do Chiado (até dia 26), a Midas Filmes repôs o documentário que Paulo Rocha dedicou ao pintor modernista português, Máscara de Aço contra Abismo Azul (1988), também já disponível em DVD (em cópia restaurada pela Cinemateca Portuguesa). O acontecimento é tanto mais motivador quanto somos compelidos a questionar a própria classificação “documental” do projecto.
Uma frase emblemática de Paulo Rocha tem sido evocada: “Tentei filmar esse período da sua pintura com um estilo diferente, como se a câmara fosse um pincel na mão do próprio Amadeo, com as suas cores e as suas formas.” Assim é. Mesmo nas componentes mais tipicamente documentais — registando a exposição que, há 30 anos, na Fundação Gulbenkian, assinalou o centenário do nascimento do pintor —, o filme distingue-se por uma singularidade visual em que os visitantes (incluindo o então Presidente da República, Mário Soares) surgem como silhuetas fantasmáticas secundarizadas pela vibração de cores e formas dos objectos expostos.
Paulo Rocha [DN]
O título alude a duas personagens de banda desenhada criadas pelo próprio Amadeo, abrindo uma hipótese de artifício e transfiguração que o filme trabalha através da presença saborosamente teatralizada dos actores: Inês de Medeiros, Fernando Heitor, Miguel Guilherme, Vítor Norte, Henrique Viana e José Viana. Paulo Rocha descobre nas imagens de Amadeo, não apenas a visão de um criador que não se deixou fixar em qualquer movimento ou escola, mas também uma arte de contraponto e montagem que, em última instância, envolve um desejo de cinema.
Na trajectória de Paulo Rocha, a lógica de “biografia teatral” de Máscara de Aço contra Abismo Azul seria prolongada através dos retratos de dois cineastas: Oliveira, o Arquitecto (1993) e Shohei Imamura, le Libre Penseur (1995), ambos realizados para a série “Cinéastes de notre temps”. Há em todos eles um método de colagem, algures entre o didactismo informativo e a ironia estética, que surge consolidado no seu filme final, o autobiográfico Se Eu Fosse Ladrão... Roubava (2012).
A obra de Paulo Rocha envolve, assim, um contributo exemplar para a reavaliação da dicotomia documentário/ficção, tão marcante no período do Cinema Novo (e das “novas vagas” dos anos 60) a cuja dinâmica o seu nome está visceralmente ligado. Em particular a sua primeira longa-metragem, Os Verdes Anos (1963), continua a tocar-nos pelo modo como “documenta” o impossível romantismo da cidade de Lisboa.

terça-feira, fevereiro 21, 2017

'Satan Your Kingdom Must Come Down'
[canções]

ROBERT PLANT
Satan Your Kingdom Must Come Down
Band of Joy (2010)





Gerald Hirschfeld (1921 - 2017)

[ Hollywood.com ]
Foi um talento tão brilhante quanto discreto da direcção fotográfica: o americano Gerald Hirschfeld faleceu no dia 13 de Fevereiro, em Ashland, Oregon — contava 95 anos.
Com uma carreira iniciada na televisão, em finais da década de 40, alguns dos seus trabalhos mais importantes surgem associados a um certo romantismo desencantado dos anos 60/70 e, em particular, à obra de Frank Perry (1930-1995) — especialmente significativos são Last Summer/O Verão Passado (1969), Diary of a Mad Housewife/O Diário Íntimo de Uma Mulher (1970) e T. R. Baskin/Encontro com uma Mulher Só (1971). Entre os seus títulos mais importantes, incluem-se ainda Fail Safe/Missão Suicida (1964), de Sidney Lumet, Young Frankenstein/Frankenstein Junior (1971), de Mel Brooks, Neighbors/Mas Que Vizinhos (1981), de John G. Avildsen, e The Car/O Carro (1977), de Elliott Silverstein. Em 2007, foi homenageado com um prémio honorário da American Society of Cinematographers — nunca obteve qualquer nomeação para os Oscars.

>>> Dois trailers de filmes fotografados por Gerald Hirschfeld: Young Frankenstein e The Car.




>>> Obituário no site Deadline.

segunda-feira, fevereiro 20, 2017

Na Lua com Lana Del Rey

Dois dias depois da revelação de Love, Lana Del Rey divulgou o respectivo teledisco: uma viagem romântica, surreal e lunar, com realização de Rich Lee — a canção fará parte de um quinto álbum de estúdio, com data ainda por divulgar.

Matt Damon & Zhang Yimou (2/2)

A Grande Muralha é o filme de uma nova encruzilhada do cinema: Hollywood e a China aliam-se para o mercado global — este texto foi publicado no Diário de Notícias (16 Fevereiro), com o título 'A herança de Méliès'.

[ 1 ]

Em 1967, num tempo marcado pelas tensões ideológicas que explodiriam no turbilhão de Maio 68, o italiano Marco Bellocchio realizou um célebre filme em que os conflitos geracionais se cruzavam com as clivagens políticas. Atento à contaminação de tais conflitos por palavras de ordem provenientes da linguagem maoísta, o filme tinha um sugestivo título: La Cina È Vicina (A China Está Próxima). Meio século mais tarde, o misto de inquietação e sedução que tais palavras arrastavam transfigurou-se num espectacular drama económico.
O filme A Grande Muralha aí está, como expressão muito directa das suas componentes: trata-se de encontrar modos de convivência entre Hollywood e a sofisticada máquina de produção da China (que sempre existiu muito para além dos clichés dos filmes de “kung fu” provenientes de Hong Kong).
Retomando a lógica criativa dos seus filmes visualmente mais exuberantes — com inevitável destaque para o assombroso O Segredo dos Punhais Voadores (2004) —, Zhang Yimou assina um objecto de desconcertante fascínio. Não se trata, de facto, de reproduzir a lógica de muitas aventuras de super-heróis em que a confusão narrativa serve apenas de pretexto para experimentar as últimas novidades do departamento de efeitos especiais. Ao narrar a saga de Matt Damon nos cenários da Grande Muralha, Zhang Yimou procura uma espécie de simplicidade primordial, em muitos aspectos próxima da linguagem do cinema mudo (mesmo se estamos perante um notável trabalho de montagem sonora). Dir-se-ia que ele se assume como herdeiro directo do primitivismo de Georges Méliès (1861-1938) e dos poderes encantatórios da imagem cinematográfica. É uma opção tão arriscada quanto sedutora, impossível de reduzir à linguagem tecnocrática de qualquer acordo de produção.

domingo, fevereiro 19, 2017

Lana Del Rey — nova canção

O último álbum de Lana Del Rey, Honeymoon, surgiu em Setembro de 2015. O próximo... sabemos que envolverá outra atitude: "Fiz os meus primeiros quatro álbuns para mim, este é para os meus fãs." Nada contra — para já, a primeira canção divulgada, Love, promete a mais austera fidelidade ao mais clássico romantismo.

Look at you kids with your vintage music
Comin' through satellites while cruisin'
You're part of the past, but now you're the future
Signals crossing can get confusing


A IMAGEM: Chan Lowe, 2017

CHAN LOWE
U.S. News
18-02-2017

Curta portuguesa ganha Urso de Ouro

Uma curta-metragem portuguesa — Cidade Pequena, de Diogo Costa Amarante — foi distinguida com o Urso de Ouro da respectiva categoria na 67ª edição do Festival de Berlim. Outra curta portuguesa — Os Humores Artificiais, de Gabriel Abrantes — ganhou o direito a concorrer aos Prémios do Cinema Europeu referentes a 2017.
Na categoria de longas, o vencedor do certame foi On Body and Soul, de Ildikó Enyedi (Hungria) — no site oficial do certame, encontramos a lista completa de prémios.

sábado, fevereiro 18, 2017

A música de Terrence Malick

O novo filme de Terrence Malick, Song to Song, vai ser revelado a 10 de Março, no festival South by Southwest, na cidade de Austin, Texas. E não é por acaso: com um elenco que inclui Michael Fassbender, Ryan Gosling, Rooney Mara e Natalie Portman, anuncia-se como uma teia romanesca tendo por pano de fundo, justamente, a cena musical de Austin — ainda sem data portuguesa, já temos cartaz e trailer.

sexta-feira, fevereiro 17, 2017

Matt Damon & Zhang Yimou (1/2)

A Grande Muralha é o filme de uma nova encruzilhada do cinema: Hollywood e a China aliam-se para o mercado global — este texto foi publicado no Diário de Notícias (16 Fevereiro), com o título 'Matt Damon foi à China para defender Hollywood'.

Será que faz sentido definir um filme como A Grande Muralha como um dos mais ambiciosos trunfos da produção chinesa para conquistar os mercados internacionais? Como podemos, então, interpretar o facto de a sua estrela ser... Matt Damon? Além do mais, se este é um fresco histórico sobre os tempos atribulados do Imperador Renzong, na primeira metade do século XI, como explicar que os inimigos sejam milhares de monstros verdes que mais parecem saídos de um sequela de Alien?
Provavelmente, as respostas a tais interrogações podem organizar-se em torno de duas afirmações tão transparentes quanto complexas. Primeiro que tudo: A Grande Muralha é um dos mais gigantescos projectos já concretizados em contexto chinês — o seu orçamento de 150 milhões de dólares é o maior de sempre para uma rodagem na China —, embora resulte de um acordo de produção entre o China Film Group (a maior entidade estatal no domínio cinematográfico) e a Legendary Entertainment, companhia sediada em Burbank, centro vital da produção de Hollywood. Depois, esta não é uma história da Grande Muralha — uma das maiores construções da humanidade, com mais de 8000 mil quilómetros de comprimento durante a dinastia Ming (séculos XIV/XVII) —, mas sim uma abordagem lendária, assumidamente artificiosa, das suas memórias.
Em boa verdade, o que está em jogo é menos a expansão da produção chinesa no resto do mundo e mais, muito mais, a consolidação e intensificação da presença de Hollywood no mercado chinês. Interpretando um aventureiro que procura essa preciosa e mítica pólvora que poderá vender noutras paragens, Matt Damon (acompanhado por Pedro Pascal, actor chileno popularizado pela série A Guerra dos Tronos) é, afinal, o enviado simbólico de uma produção americana que não pode prescindir dos rendimentos gerados pelo país que está à beira de se tornar o maior mercado cinematográfico do mundo. Qual? A China, precisamente, esse país onde, ao longo de 2015, surgiram, em média, 22 salas... por dia!
Que seja um veterano como Zhang Yimou (nascido na cidade de Xi’an, em 1950) a assinar a realização de tão ambicioso projecto, eis o que está longe de ser um pormenor secundário. De facto, desde a sua revelação como um dos principais autores da chamada “Quinta Geração” (com o filme Milho Vermelho, 1987), ele tem sido um dos que mais e melhor tem feito a ponte com conceitos de espectáculo de raiz ocidental — o que, aliás, lhe tem valido ser alvo dos mais diversos ataques e preconceitos.
Será que o filme conseguirá reforçar os laços industriais e comerciais entre os dois países? É cedo para tirar conclusões... Uma coisa é certa: a exuberância visual (e sonora!) de A Grande Muralha ilustra as singularidades da globalização em que vivemos — este é um filme cuja pátria é o espectáculo e os prazeres da sua mitologia.

A IMAGEM: Ben Toms, 2016

BEN TOMS
Fei Fei Sun
Vogue / China (Dez. 2016)

Trump, política e stress

"Não há nada para ver aqui", garante Donald Trump na capa da revista Time (data: 27 Fev./6 Março; ilustração: Tim O'Brien), fazendo pose numa Casa Branca assolada por um tempestade interior. Não é uma simples caricatura. Ou melhor, não é uma caricatura simples — é mesmo uma reflexão, ao mesmo tempo pedagógica e angustiada, sobre o "caos" que tem marcado as primeiras semanas da presidência Trump.
De tal modo que Nancy Gibbs, editora principal da Time, considera mesmo que aquilo que está a acontecer envolve um stress que vai produzindo desgaste na resistência anímica dos cidadãos e na consistência prática das instituições — veja-se e ouça-se a sua breve, mas eloquente, entrevista no programa Morning Joe (MSNBC).

quarta-feira, fevereiro 15, 2017

World Press Photo — as imagens e o mal

FOTO: Burhan Ozbilici
Ankara, Turquia (19 Dez. 2016)
O fotógrafo turco Burhan Ozbilici venceu o prémio de fotografia do ano, atribuído pelo World Press Photo, com a imagem do polícia Mevlüt Mert Altintaş pouco depois de matar Andrei Karlov, embaixador da Rússia na Turquia, protestando contra o envolvimento russo na guerra civil na Síria — este texto foi publicado no Diário de Notícias (14 Fevereiro), com o título 'O mal está feito'.

A fotografia do assassino do embaixador Andrey Karlov perturba-nos pela sua primordial quietude (já nos esquecemos que nem todas as imagens são “em movimento”), contrariando a preguiça de pensamento gerada pela monótona repetição de imagens do nosso dia a dia televisivo.
A televisão inventou mesmo uma expressão — “em tempo real” — que tem contribuído para a nossa indiferença pelas imagens. Deleitamo-nos nesse infantilismo cognitivo: se o tempo daquilo que nos é mostrado “coincide” com o tempo daquilo que está a ser vivido, então a imagem torna-se descartável. Celebramos a coincidência “temporal” e tratamos a representação que nos chega como natural e inimputável. Por alguma razão, o tique mais frequente dos repórteres televisivos consiste em virarem-se para trás e apontar: acreditam que o seu dedo indicador identifica uma verdade insofismável, sem rugas nem ambiguidades — “Se eu estou a apontar para lá, só pode ser verdade”.
A fotografia de Burhan Ozbilici pertence a outra linguagem. A sua “mensagem” é desarmante, já que o fotógrafo apenas pode acrescentar: “Eu estava lá”. Ou como diria Roland Barthes: “Isto aconteceu”. O tempo não é real, precisamente porque já aconteceu. Dessa distância, entre um real que já é passado e a sua dramática inscrição no nosso presente, nasce a mais arriscada forma de conhecer o mundo através das imagens: o realismo.
Muitas formas de informação televisiva tentam mascarar os nosso medos, alimentando a ilusão pueril de que qualquer imagem tende para um destino gratificante, separando, como que por magia, a “justiça” e a “injustiça” daquilo que nos é dado ver. Face a fotografias como a de Ozbilici, só podemos confirmar que o mal existe — nestes tempos difíceis, a tragédia visual ensina-nos a amar a humanidade que nos resta.

"X Offender" [canções]

BLONDIE
X Offender
Blondie (1976)


Foi você que disse Blondie?...

... exactamente! Debbie Harry y sus muchachos vão lançar, em Maio, Pollinator, 11º álbum de estúdio dos Blondie (três anos depois de Ghosts of Download). A acreditar no primeiro single, Fun, dir-se-ia que as memórias gloriosas dos anos 70/80 estão mais vivas do que nunca...

John Adams, 70 anos

JOHN ADAMS
[FOTO: Chris Bannion]
Figura fundamental do minimalismo americano, John Adams é um daqueles compositores que nos ajuda a compreender a passagem dos clássicos para os modernos e, desse modo, a singular e, por assim dizer, paradoxal presença dos primeiros nos segundos.
Entre os trabalhos mais célebres da sua imensa obra (piano, orquestra, música coral, etc.) inclui-se a ópera Nixon in China (1987), sobre a visita de Richard Nixon à China, em 1972, e On the Transmigration of Souls (2002), lembrando os que morreram nos atentados de 11 de Setembro de 2001 (Pulitzer de Música em 2003). Recorde-se que, em 2009, várias das suas composições foram escolhidas por Luca Guadagnino para integrar a banda sonora do seu filme Eu Sou o Amor.
Adams nasceu em Worcester, Massachusetts, no dia 15 de Fevereiro de 1947 — faz hoje 70 anos. Em jeito de parabéns, escutemos a sua peça Short Ride in a Fast Machine, de 1986, numa interpretação da San Francisco Symphony, sob a direcção de Michael Tilson Thomas.

terça-feira, fevereiro 14, 2017

Donald Trump está na televisão

Jack O'Connell e George Clooney
MONEY MONSTER
Como falar de Donald Trump sem pensar na sua dimensão televisiva? Eis uma pergunta que os membros da classe política não enfrentam — esta crónica foi publicada no Diário de Notícias (12 Fevereiro).

Pergunto-me se o leitor terá visto Money Monster, filme realizado por Jodie Foster, com George Clooney, Julia Roberts e Jack O’Connell nos papéis principais (estreado em Maio de 2016 e, entretanto, já disponível em DVD). De facto, apesar dos nomes envolvidos, passou mais ou menos despercebido. Nem mesmo a sua abordagem do populismo televisivo suscitou especial atenção.
Recordo a sua linha básica: Clooney interpreta o apresentador de um programa (“Money Monster”) que, em tom de espectáculo ligeiro, analisa os mercados financeiros, sugerindo aos espectadores os bons investimentos... Até que um dia, um jovem cuja vida ficou destruída por um desses investimentos entra no estúdio, em directo, com uma arma na mão...
Terá prevalecido um juízo de valor negativo sobre a realização de Foster, tida como ligeira e até irresponsável. Estou longe de concordar com tal ponto de vista — penso mesmo que, além de uma extraordinária actriz, ela é também uma cineasta de fina inteligência —, mas não é essa a questão. Acontece que as nossas sociedades raras vezes mostram alguma disponibilidade para pensar o papel (social, justamente) dos dispositivos televisivos.
Veja-se, ou melhor, escute-se o silêncio ensurdecedor com que se tem passado ao lado da dimensão televisiva do “fenómeno Trump”. Nem mesmo o facto de Donald Trump ter consolidado a sua imagem pública através de um “reality show” (14 temporadas de The Apprentice, na NBC) parece motivar os analistas no sentido de, pelo menos, nomear o poder da “caixa que mudou o mundo”.
Claro que qualquer sugestão nesse sentido tende a ser automaticamente atacada por um outro discurso (igualmente populista) segundo o qual os “intelectuais” tendem a demonizar a televisão. Essa é, aliás, uma maneira cínica de recalcar os contrastes que estão em jogo: por um lado, é no espaço televisivo que encontramos alguns dos fenómenos mais fascinantes do audiovisual contemporâneo; por outro lado, importa saber se isso nos dispensa de pensar a degradação humana e humanista que ocupa horas e horas dos nossos ecrãs (exemplo quotidiano: a visão obscena da sexualidade promovida pelo Big Brother e seus derivados).
O problema é suficientemente complexo para evitarmos cair na ingenuidade de supor que Trump “sem televisão” seria um detalhe insignificante. O problema começa no facto de a dimensão televisiva de uma figura pública poder ser uma componente essencial de poder. Estranhamente, os membros da classe política (direitas e esquerdas) têm medo de lidar com tudo isto.

Beyoncé, a Rainha Mãe

Adele ganhou o Grammy de álbum do ano com o seu 25. E, num gesto pouco comum, fez saber que, segundo ela, era Beyoncé "que devia ter ganho" (com o prodigioso Lemonade). Saudemos a sua lucidez e celebremos a performance de Beyoncé, em pose de Rainha Mãe [eis o seu discurso, ao receber o prémio de melhor "álbum urbano"].


>>> Nomeados e vencedores — Grammys.

segunda-feira, fevereiro 13, 2017

Jackie & Jacqueline

Prodigioso filme: muito para além do cliché "político" ou da convenção "psicológica", Pablo Larraín filma Jacqueline Kennedy nos labirintos da história — este texto foi publicado no Diário de Notícias (9 Fevereiro), com o título 'Natalie Portman brilhante como Jacqueline Kennedy'.

Curioso paradoxo: o filme Jackie, sobre Jacqueline Kennedy, figura mítica do imaginário político e social “made in USA”, foi realizado por um cineasta chileno, Pablo Larraín. Tal não o impede de ser um caso raro de subtileza psicológica e inteligência crítica, muito para além das convenções correntes do modelo biográfico.
A proeza é tanto mais fascinante quanto não se trata de fazer um retrato “descritivo” daquela que foi a Primeira Dama dos EUA, precisamente até ao assassinato do marido, John Fitzgerald Kennedy, a 22 de Novembro de 1963, na cidade de Dallas. Tudo se concentra nos dias seguintes à tragédia, num turbilhão de acontecimentos em que Jackie é compelida a lidar com questões que vão desde as exigências de funcionamento da Casa Branca até aos preparativos do funeral do marido, passando pelo acompanhamento dos filhos, Caroline (que fez seis anos a 27 de Novembro de 1963) e John Jr. (três anos completados a 25 de Novembro, dia do funeral do pai).
JFK
Dois vectores narrativos são essenciais na odisseia para a qual Larraín nos convoca: uma entrevista com um jornalista que ela própria convoca para dar conta da sua visão da herança do marido e a evocação do modo como a imagem pública de Jackie foi gerada, em grande parte, através de uma apurada utilização, pioneira na época, dos meios televisivos. Ambos colocam em jogo um dos temas nucleares do filme. A saber: a tensão entre a imagem pública de uma mulher que conquistara os corações da maior parte dos americanos (numa sedução que sempre se prolongou além-fronteiras) e os bastidores da vida privada e da cena política no cenário, também ele mítico, da Casa Branca.
Particularmente impressionante é o modo como o filme recupera a célebre emissão de televisão (CBS, 14 de Fevereiro de 1962) em que a Primeira Dama deu a conhecer aos americanos as transformações que, sob a sua supervisão, tinham sido operadas na Casa Branca. Desde logo, por razões técnicas: através de um delicado trabalho de manipulação técnica, a intérprete de Jackie, Natalie Portman (por certo naquela que é a mais brilhante composição da sua carreira, nomeada para um Oscar), surge “inserida” nas imagens originais, numa espécie de realismo digital que, afinal, nos coloca em contacto com as matérias originais da própria história televisiva. Depois, porque através de tais matérias compreendemos que, nesse arranque da década de 60, muito mais do que porta-voz do marido, Jackie foi uma das protagonistas de toda uma complexa reconversão mediática e simbólica das mulheres no espaço público.

Puzzle de memórias

LIFE [6 Dez. 1963]
Não se julgue, porém, que o filme aposta numa banal estética de “reconstituição”. O prodigioso ziguezague da sua montagem é, aliás, revelador: não se trata de “colar” de modo mais ou menos cronológico os factos vividos naqueles dias trágicos, mas sim de construir um puzzle de memórias objectivas e vivências subjectivas que, em última análise, desafiam as certezas da história comum.
Nessa perspectiva, o diálogo com o jornalista, interpretado por Billy Crudup, é fundamental. Embora o filme não o explicite, trata-se de uma personagem inspirada em Theodore H. White, jornalista que, de facto, entrevistou Jacqueline Kennedy para a revista Life (o seu trabalho, intitulado “Pelo Presidente Kennedy – Um Epílogo”, seria publicado na edição de 6 de Dezembro de 1963).
O frente a frente tem qualquer coisa de insolitamente teatral: por um lado, ambos sabem que a existência de Jackie como heroína frágil de um mundo de felicidade absoluta (“Camelot”) é uma ficção que contaminou todos os recantos da realidade; por outro lado, o assombramento da morte do Presidente confere ao seu diálogo a perturbante e comovente dimensão de um subtil trabalho de luto.
A nitidez fria da morte — entenda-se: a necessidade de lidar com os seus efeitos humanos e simbólicos — circula por todos os gestos, palavras e silêncios de Jackie. É um sentimento que, em boa verdade, já tínhamos experimentado em relação aos trabalhos anteriores de Larraín, em particular a sua trilogia — Tony Manero (2008), Post Mortem (2010) e Não (2012) — sobre a ditadura de Augusto Pinochet.
Daí a importância, discreta mas fundamental, da personagem do padre que escuta as confissões magoadas de Jackie, em particular sobre as dificuldades inerentes ao facto de se ter “tornado uma Kennedy”. Tomando como referência o jesuíta Richard McSorley, companheiro espiritual da família Kennedy, tal personagem acolhe a angústia de uma mulher que, no carácter de excepção do seu destino, procura um sentido para o absurdo que a existência lhe oferece. Ao fazer-lhe ver que, provavelmente, estamos condenados a não encontrar esse sentido, o padre emerge, paradoxalmente, como a voz de uma radical serenidade. Que o seu intérprete seja o recentemente falecido John Hurt, eis um dado que nos ajuda a reconhecer que não há diferenças entre o cinema e a vida.

Al Jarreau (1940 - 2017)

Personalidade emblemática da música popular americana, vencedor de sete Grammys, Al Jarreau faleceu no dia 12 de Fevereiro, em Los Angeles, poucos dias depois de ter anunciado a sua retirada — contava 76 anos.
Figura incontornável do jazz vocal, as componentes jazzísticas serão, apesar de tudo, insuficientes para dar conta da versatilidade do seu estilo e, em particular, do peso das marcas do R&B e da pop em muitas das suas performances. Iniciou a carreira em meados da década de 60, tendo ganho um primeiro Grammy pelo álbum Look to the Rainbow (1978). Breakin' Away (1981), que inclui o tema We're in This Love Together, foi um dos seus maiores sucessos; Jarreau (1983) e L Is for Lover (1986) são outros registos marcantes da sua trajectória.
A canção-tema da séria televisiva Moonlighting (1985-89) constitui, por certo, a sua referência mais universal. Quase até final, manteve uma enorme actividade nos palcos; num dos seus derradeiro álbuns, My Old Friend: Celebrating George Duke, prestou homenagem ao pianista George Duke.

>>> Teledisco de We're in This Love Together e genérico da série Moonlighting.




>>> Obituário no New York Times.
>>> Site oficial de Al Jarreau.

domingo, fevereiro 12, 2017

Cinema português:
uma carta ao governo

SAÍDA DO PESSOAL OPERÁRIO DA FÁBRICA CONFIANÇA (1896)
de Aurélio Paz dos Reis
Foi divulgada hoje à noite uma carta aberta ao governo, assinada por dezenas de profissionais e várias entidades ligadas ao cinema português (com o apoio de profissionais e entidades estrangeiras) — em causa as regras que definem a formação dos júris do Instituto de Cinema e Audiovisual de Portugal. Eis o respectivo texto.

Em Portugal, um colectivo de realizadores, produtores, actores, técnicos e distribuidores, festivais de cinema e associações profissionais escreveu uma carta aberta ao governo português e recebeu apoio da comunidade internacional do sector:

CARTA DE PROTESTO E SOLIDARIEDADE [ * ]

Há várias décadas que Portugal é tido como um caso à parte no contexto da produção cinematográfica mundial. Tratando-se de um país pequeno, sem mercado interno para sustentar uma indústria, é raro o ano em que surja nas salas de cinema mais do que uma dúzia de longas-metragens nacionais. Mas, apesar disso, é elevadíssima a percentagem desses filmes com presença em festivais internacionais. A partir da década de 80, e de um modo sistemático, o cinema português tem sido objeto de mostras e homenagens; tal como têm sido organizadas retrospetivas de vários cineastas portugueses – uns em atividade (alguns deles assinam este texto), outros infelizmente já desaparecidos (João César Monteiro, Paulo Rocha, Fernando Lopes, António Reis, José Álvaro Morais, António Campos ou, claro, Manoel de Oliveira). O “milagre” desta desproporcional visibilidade internacional no contexto de tão escassa produção - atravessando décadas distintas e diferentes gerações de autores - deve-se certamente ao mérito dos realizadores, dos técnicos, dos atores e dos produtores de cinema em Portugal. Mas o mérito também residiu numa política cultural que fomentou a produção de um cinema marcado por uma forte singularidade das suas propostas, bem como estabeleceu as bases para lhe garantir liberdade criativa. Assim se consolidou a imagem do cinema feito em Portugal.

A política cultural que permitiu este cinema e que abriu as portas à diversidade, assentou em Leis do Cinema e num Instituto Público, o ICA, que as aplicou, organizando de forma continuada concursos públicos para o apoio financeiro à produção de filmes, com regras de participação transparentes e critérios de avaliação compatíveis com uma política promovida pelo Ministério da Cultura e com júris escolhidos pelo Instituto cujo perfil é definido por lei como “personalidades com reconhecido mérito cultural e idoneidade”. Assim, foram chamados à função de júri cineastas e técnicos de cinema, bem como críticos, artistas plásticos, escritores, arquitetos, músicos, programadores culturais ou professores universitários para aprovarem os projetos de filmes.

A partir de 2013, um decreto-lei regulamentador da Lei do Cinema e uma nova direção do Instituto de Cinema e Audiovisual de Portugal (ICA), mostrando-se alérgicos à responsabilidade e desconhecedores do papel regulador que o ICA deve ter no processo, transferiram a tarefa da escolha dos júris para um comité onde estão representados todos os interessados no resultado dos concursos de apoio: associações profissionais, representantes das televisões, representantes dos operadores de audiovisual, entre outros. Passou, então, a ser este comité corporativo a indicar ao ICA os nomes dos júris que avaliam os projetos de filmes, num claro conluio de interesses em muitos dos casos entre nomeados e quem nomeia.

O resultado não se fez esperar: os requisitos exigidos no regulamento sobre o perfil dos júris, “personalidades de reconhecido mérito cultural”, deixaram manifestamente de fazer sentido tendo em conta os atuais jurados. Nos últimos anos contam-se entre os decisores dos projetos de cinema, administradores de bancos com ligação ao cinema ou diretores de marketing de operadoras de telecomunicações...

O atual governo, refém da pressão exercida por operadores da televisão por cabo, prepara-se agora para homologar um novo decreto-lei que perpetua e agrava este procedimento. Um conjunto muito representativo de realizadores e produtores portugueses manifestou-se contra este sistema promíscuo e viciado, assegurando à tutela que se recusam terminantemente a fazer parte do processo de nomeações: não querem ter influência na nomeação de júris nem aceitam que outros interessados nos resultados dos concursos possam participar do processo. Acreditam que a transparência só pode ser assegurada se a nomeação de júris regressar à exclusiva competência do ICA. De uma vez por todas, querem uma direção do ICA capaz de assumir as suas responsabilidades, estando consciente do seu duplo papel de executor da política cultural para o cinema e de regulador desta atividade.

Os subscritores desta carta de protesto querem recordar ao Estado que o Cinema Português não é uma questão exclusivamente nacional. Por isso, prestam a sua solidariedade com os realizadores e produtores portugueses que se têm oposto a este processo e manifestam o seu repúdio, caso o decreto-lei seja homologado.
_____

[ * ] Na lista de assinaturas do documento começa por surgir uma dúzia de entidades que inclui empresas produtoras e difusoras do cinema português, festivais e sindicatos. Seguem-se os nomes de mais de uma centena de profissionais (realizadores, produtores, actores, argumentistas, técnicos, etc.), directa ou indirectamente ligados à existência material do cinema português, e ainda uma lista de mais de 400 signatários internacionais (realizadores, produtores, programadores, etc.). Para conhecimento de todas as assinaturas, consulte-se o documento no site do DocLisboa.

Leslie Jones no papel de... Donald Trump

Leslie Jones
Nos EUA, face às múltiplas e angustiantes peripécias da presidência de Donald Trump, o programa Saturday Night Live (NBC) tem sido uma das frentes mais contundentes, e também mais divertidas. Alec Baldwin, com as suas imitações do Presidente, emerge como a figura central desse processo criativo que, em qualquer caso, tem experimentado algumas "perversas" formas de representação — veja-se o exemplo do sketch em que o porta-voz da Casa Branca para a imprensa, Sean Spicer, surgiu interpretado por uma mulher, Melissa McCarthy.
Agora, o SNL propôs um insólito "desvio", apresentando uma actriz de pele negra, Leslie Jones, num magnífico sketch em que a protagonista dá largas à sua ambição artística de representar a personagem de... Donald Trump. Imitando o cliché (típico dos concursos televisivos de "talentos") do retrato do actor que comenta aquele que seria o seu "papel de sonho" — há mesmo um diálogo intempestivo com Lorne Michaels, o lendário produtor de SNL —, são três minutos deliciosos em que a televisão mostra como a desmontagem das linguagens e suas convenções (televisivas ou não) pode ser uma via de invulgar eficácia crítica e simbólica.
Para contextualizar o sketch de Jones no programa em que foi emitido (11 Fev.), vale a pena ler o artigo de Joanna Robinson, na Vanity Fair — aqui fica o respectivo registo.

Leslie Jones e Lorne Michaels
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