quinta-feira, fevereiro 23, 2017

Com os pés

1. Esta foto do pé do jogador Herrera (ferido num lance do jogo F. C. Porto-Juventus, para a Liga dos Campeões) está hoje um pouco por todo o lado, nomeadamente em muitos sites informativos. A sua omnipresença é suficientemente perturbante para nos confrontar com algumas interrogações incómodas.

2. A primeira dessas interrogações tem a ver, precisamente, com o próprio incómodo que a imagem pode suscitar em algumas pessoas. O certo é que se trata de um interrogação equívoca, um pouco como os resultados "justos" e "injustos" do futebol — se não há tribunal mandatado para avaliar a "justiça" dos resultados, em nome de que lei persistem tais classificações?

3. Podemos também perguntar se o efeito subjectivo de uma imagem (individualizando a reacção de A, B, ou C) é suficiente para dar conta das suas significações? Se algumas pessoas ficam (legitimamente) perturbadas, será que isso basta para nos ajudar a compreender os mecanismos de circulação das imagens e, sobretudo, os valores dominantes nessa circulação?

4. Porque é isso que está em causa. A saber: porque é que um pé ferido de um jogador de futebol se torna jornalisticamente importante? Será que se relança, assim, todo um imaginário do sofrimento que tem os seus ícones mais ancestrais nas representações pictóricas de Cristo na Cruz?

DIEGO VELÁZQUEZ
Cristo Crucificado [pormenor]
1632
5. A pergunta justifica-se porque, muito para além de qualquer consideração "emocional" sobre esta imagem — ou, em boa verdade, qualquer outra imagem —, ela nos conduz a outra questão, vital, quase sempre omitida ou denegada no pensamento jornalístico. Mais concretamente: porque é que as imagens que provêm do universo futebolístico são tratadas como coisas naturais e obrigatórias, gozando de um privilégio de visibilidade que não é concedido a imagens de muitos outros domínios?

6. Porque é que a imagem do pé ferido de Herrera é um acontecimento iconográfico em muitas zonas do jornalismo português? Uma primeira resposta não poderá deixar de recordar que o futebol se tornou uma linguagem compulsiva do nosso quotidiano. Veja-se e, sobretudo, ouça-se a avalanche de lugares-comuns proferidos por treinadores e jogadores, repetidos e repetitivos, todos os dias a contaminar o espaço mediático — como é possível que não se reconheça que tal avalanche, além de destruir metodicamente a elegância da língua portuguesa, favorece um ambiente de permanente conflito?

7. Evitemos, por isso, a saga justiceira dos que, ciclicamente, nos avisam da abundância de "sexo e violência" nas imagens. Não se trata de sugerir, de modo algum, que a imagem do pé de Herrera deveria ser interdita. Já bastam os disparates que circulam sempre que se vulgariza a palavra "censura" em discussões anedóticas de coisa nenhuma. Trata-se apenas de reconhecer algo impossível de negar: os valores correntes do jornalismo reconhecem-na como uma imagem pertinente.