Joseph Gordon-Levitt, SNOWDEN |
É verdade: mesmo tendo assinado um filme tão complexo e perturbante como Snowden, Oliver Stone esteve fora da corrida para os prémio da Academia de Hollywood — este texto foi publicado no Diário de Notícias (26 Fevereiro), com o título 'No coração do Sonho Americano'.
Confesso que encaro sempre com grandes dúvidas as vagas de protestos contra os Oscars de Hollywood, nomeadamente a que, há dois anos, veio “denunciar” aquilo que seria a marginalização dos afro-americanos. Não se trata, entenda-se, de avaliar se os Oscars consagram os “meus” ou os “teus” filmes... Trata-se apenas de observar que tais protestos coexistem com a noção simplista segundo a qual Hollywood apenas fabrica produtos escapistas, artisticamente irrelevantes.
Semelhante visão tem um efeito principal: promove a ignorância sobre a complexidade, plena de contrastes e contradições, da história política de Hollywood. Exemplo próximo: a esmagadora maioria das abordagens do tratamento cinematográfico dos afro-americanos não soube, ou não quis, evocar a fundamental herança ideológica dos filmes que, há meio século ou mais, foram protagonizados por Sidney Poitier (o emblemático Adivinha Quem Vem Jantar?, de Stanley Kramer, é de 1967).
Oliver Stone [YAHOO! Tech] |
Insolitamente, pouco ou nada se tem dito da ausência nos Oscars de um dos títulos que, de uma maneira ou de outra, ficará para a história do ano de 2016 em Hollywood (mesmo sendo uma produção com forte participação europeia). Não, não me estou a referir ao prodigioso Silêncio, de Martin Scorsese (uma nomeação, na categoria de melhor fotografia), mas sim ao muito pouco discutido Snowden, de Oliver Stone (entretanto, já disponível em DVD no mercado português).
Mesmo ficando pelas categorias de interpretação, valeria a pena questionar a ausência do notável trabalho de Joseph Gordon-Levitt, interpretando a personagem de Edward Snowden, o funcionário da National Security Agency que divulgou documentos sobre as práticas de vigilância do governo dos EUA.
Claro que Snowden será tudo o que se quiser, menos um filme talhado para gerar os chamados consensos alargados (tal como o próprio Edward Snowden, como é óbvio). Será mesmo o oposto de La La Land, a que até mesmo os menos entusiastas (entre os quais me incluo) não podem deixar de reconhecer a força simbólica de um verdadeiro fenómeno mediático.
Pergunto-me, por isso mesmo, se o “esquecimento” de Snowden não decorrerá da sua visceral ambivalência. Na verdade, à semelhança de outros grandes momentos da sua filmografia — recordemos Nixon, retrato íntimo de Richard Nixon lançado em 1995 —, Stone filma no coração do Sonho Americano, pressentindo que já não há heróis puros. Em tempos em que se confundem ideias com polegares (acima ou abaixo), a perturbação da ambivalência não poderia ser popular.