FOTO: Burhan Ozbilici Ankara, Turquia (19 Dez. 2016) |
O fotógrafo turco Burhan Ozbilici venceu o prémio de fotografia do ano, atribuído pelo World Press Photo, com a imagem do polícia Mevlüt Mert Altintaş pouco depois de matar Andrei Karlov, embaixador da Rússia na Turquia, protestando contra o envolvimento russo na guerra civil na Síria — este texto foi publicado no Diário de Notícias (14 Fevereiro), com o título 'O mal está feito'.
A fotografia do assassino do embaixador Andrey Karlov perturba-nos pela sua primordial quietude (já nos esquecemos que nem todas as imagens são “em movimento”), contrariando a preguiça de pensamento gerada pela monótona repetição de imagens do nosso dia a dia televisivo.
A televisão inventou mesmo uma expressão — “em tempo real” — que tem contribuído para a nossa indiferença pelas imagens. Deleitamo-nos nesse infantilismo cognitivo: se o tempo daquilo que nos é mostrado “coincide” com o tempo daquilo que está a ser vivido, então a imagem torna-se descartável. Celebramos a coincidência “temporal” e tratamos a representação que nos chega como natural e inimputável. Por alguma razão, o tique mais frequente dos repórteres televisivos consiste em virarem-se para trás e apontar: acreditam que o seu dedo indicador identifica uma verdade insofismável, sem rugas nem ambiguidades — “Se eu estou a apontar para lá, só pode ser verdade”.
A fotografia de Burhan Ozbilici pertence a outra linguagem. A sua “mensagem” é desarmante, já que o fotógrafo apenas pode acrescentar: “Eu estava lá”. Ou como diria Roland Barthes: “Isto aconteceu”. O tempo não é real, precisamente porque já aconteceu. Dessa distância, entre um real que já é passado e a sua dramática inscrição no nosso presente, nasce a mais arriscada forma de conhecer o mundo através das imagens: o realismo.
Muitas formas de informação televisiva tentam mascarar os nosso medos, alimentando a ilusão pueril de que qualquer imagem tende para um destino gratificante, separando, como que por magia, a “justiça” e a “injustiça” daquilo que nos é dado ver. Face a fotografias como a de Ozbilici, só podemos confirmar que o mal existe — nestes tempos difíceis, a tragédia visual ensina-nos a amar a humanidade que nos resta.