É bem verdade que, globalmente, a relação do cinema português com a história de Portugal parece ser algo sempre em défice [nota em baixo, publicada no Diário de Notícias]. Ou porque há filmes que investem essa história a partir de um primarismo simbólico, de vulgar sobre-significação; ou porque o fazem com uma alegria pueril em que qualquer componente histórica só é imaginável num plano banalmente caricatural. Capitão Falcão, de João Leitão, é um objecto em que tais caminhos parecem convergir, consagrando um modelo de humor que se impôs através da conjugação de factores paradoxais: combina a fragmentação do YouTube com uma espécie de irrisão festiva que, em todo o caso, procura algum efeito historicista — são sinais de uma cultura "juvenil" e "televisiva" que, há que reconhecê-lo, se tornou social e mediaticamente dominante.
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Revisitar as memórias do Estado Novo em registo satírico? Por que não? O problema não é esse e não adianta penalizar Capitão Falcão por aquilo que não tem para dar: uma perspectiva histórica (seja ela qual for) que tente olhar para a ditadura salazarista como algo mais do que um buraco negro sem gente viva lá dentro. Infelizmente, o projecto esgota-se na criação de uma personagem — um “super-herói” ao serviço de Salazar — que tem a espessura e a duração de um clip do YouTube. É pena, quanto mais não seja porque se sente que estamos perante uma produção executada com know how técnico e também porque não deixa de ser penoso ver actores com o talento de Gonçalo Waddington a tentarem sustentar um universo à deriva. Reabre-se, assim, a reflexão sobre as diferenças entre inventar “bonecos” mais ou menos caricaturais e construir uma narrativa cinematográfica.