Mostrar mensagens com a etiqueta Cinema - Estreia. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Cinema - Estreia. Mostrar todas as mensagens

sábado, novembro 26, 2016

Quando a guerra se desmorona
sobre quem a não fez


Ver a guerra pelo ponto de vista de quem a perdeu. Não é um espaço comum, mas também não se trata de nada inédito. Afinal, e focando a II Guerra Mundial (que é do que falamos) já Rosselini o tinha mostrado, ainda a quente, em Alemanha, Ano Zero (1948). Mais recentemente, em A Queda (2004), de O. Hirschbiegel, acompanhámos o desmoronar do regime a partir do bunker de Hilter, no coração de Berlim. Em Lore (2012), um outro título absolutamente referencial, a realizadora Cate Shortland saía contudo de Berlim e entrava na Alemanha profunda para, através de cinco irmãos (que supomos filhos de uma alta patente das SS com papel no Holocausto), que ficaram sem casa, sem comida, sem conforto, sem poder, nos dar um retrato do que é um país derrotado. A Primavera de Christine, da austríaca Mirjam Unger, acrescenta agora um outro ponto a este conto.

A ação situa-se, também em 1945, mas agora na Áustria, território anexado pela Alemanha nazi bem antes da eclosão da guerra. Estamos por isso em terreno que corresponde ao grande reich anterior a 1939, mas num tempo em que a guerra está perdida, os cidadãos têm as suas casas demolidas pelos raides aéreos, maldizem a figura de Hitler e os feitos do regime e, com medo, esperam a chegada dos russos. Tal como em Lore, a realizadora escolhe alguém que não tem ainda idade para compreender as complexidades da guerra para nos colocar naquele tempo e lugar. E, tal como os irmãos que corriam pela floresta negra em busca de novo porto seguro, também aqui a pequena Christine irá compreender melhor os jogos em questão, mostrando contudo uma abordagem diferente aos conceitos de amigo e inimigo. Não os procura na identidade que a farda ou berço traduzem. Mas no modo como com ela se relacionam.

Baseado num romance autobiográfico de Christine Nöstlinger, o filme toma como centro para a acção uma villa aristocrática onde as diferenças de classe entre patrões e empregados se dissipam perante a luta pela sobrevivência. A mesma villa na qual um comandante do exército russo escolhe para instalar o seu quartel provisório. Tal como em Lore, o filme não procura traçar uma parábola coletiva. Evita o uns contra os outros, não funciona no preto e branco dos bons e dos maus. Porque há cinzentos em todo o lado. Desenvolve sobretudo as personagens, a sua relação entre si, o processo de progressiva tomada de consciência daqueles que ali moram sobre o que se passou antes e, depois, quem são os que entretanto chegam. O ponto de vista da pequena protagonista habita o tutano da história. Mas não vamos reduzir A Primavera de Christine a uma visão inocente de uma guerra, do seu desfecho e das trocas de poder que o balanço de vencedores e vencidos comporta. Está tudo lá. E para olhos de crescido ver.

sábado, maio 30, 2015

Humanismo contra fundamentalismo

Através da história da ocupação de uma zona do Mali por fundamentalistas islâmicos, Abderrahmane Sissako ecoa uma actualidade dramática e incontornável — este texto foi publicado no Diário de Notícias (28 Maio), com o título 'Um filme marcado pelos valores universais do humanismo'.

Abderrahmane Sissako (cineasta da Mauritânia, nascido em 1961) desempenhou, este ano, em Cannes, as funções de presidente do júri das curtas-metragens e dos filmes apoiados pela Cinéfondation. A nota biográfica que encontramos no site do festival começa com uma citação que vale a pena reproduzir: “Quando faço um filme, tenho uma atitude de dúvida constante, e sei que isso é visível. Mas, muito lá no fundo, como que escondida, acompanha-me uma convicção que não partilho com ninguém”.
Perante a estreia de Timbuktu (que esteve na competição de Cannes, em 2014), importa sublinhar essa convicção. Este é, obviamente, um filme motivado pela crença muito forte no cinema como instrumento privilegiado para alertar os espectadores para as convulsões do mundo contemporâneo, nessa medida reavivando as componentes mais básicas da tradição do chamado “cinema político”.
Abderrahmane Sissako
Em cena estão o poder, a arbitrariedade e as formas de violência de um grupo de fundamentalistas islâmicos que impõem as suas leis numa pequena comunidade do Mali. Desde o consumo dos cigarros à escuta da música, passando pela prática do futebol, todas as actividades quotidianas são sujeitas a um apertado sistema de normas que elege o terror como modelo de “equilíbrio” social. Centrando a sua acção nos dramas enfrentados pela família de um pastor, Timbuktu distingue-se por um metódico realismo que, além do mais, possui o mérito de resistir a todas as formatações mediáticas, em particular de natureza televisiva.
Não é secundária esta questão. Enquanto “consumidores” de notícias, estamos todos expostos a modelos de informação que tendem a privilegiar a fragmentação e o soundbyte, menosprezando a complexidade labiríntica de universos em que, como é o caso, a intolerância se combina com o poder das armas. Nesta perspectiva, importa não esquecer que o trabalho de Abderrahmane Sissako visa, em última instância, a celebração de um Islão aberto e tolerante, tradicionalmente sensível aos valores universais do humanismo.

segunda-feira, abril 27, 2015

No país do Capitão Falcão

É bem verdade que, globalmente, a relação do cinema português com a história de Portugal parece ser algo sempre em défice [nota em baixo, publicada no Diário de Notícias]. Ou porque há filmes que investem essa história a partir de um primarismo simbólico, de vulgar sobre-significação; ou porque o fazem com uma alegria pueril em que qualquer componente histórica só é imaginável num plano banalmente caricatural. Capitão Falcão, de João Leitão, é um objecto em que tais caminhos parecem convergir, consagrando um modelo de humor que se impôs através da conjugação de factores paradoxais: combina a fragmentação do YouTube com uma espécie de irrisão festiva que, em todo o caso, procura algum efeito historicista — são sinais de uma cultura "juvenil" e "televisiva" que, há que reconhecê-lo, se tornou social e mediaticamente dominante.

* * * * *

Revisitar as memórias do Estado Novo em registo satírico? Por que não? O problema não é esse e não adianta penalizar Capitão Falcão por aquilo que não tem para dar: uma perspectiva histórica (seja ela qual for) que tente olhar para a ditadura salazarista como algo mais do que um buraco negro sem gente viva lá dentro. Infelizmente, o projecto esgota-se na criação de uma personagem — um “super-herói” ao serviço de Salazar — que tem a espessura e a duração de um clip do YouTube. É pena, quanto mais não seja porque se sente que estamos perante uma produção executada com know how técnico e também porque não deixa de ser penoso ver actores com o talento de Gonçalo Waddington a tentarem sustentar um universo à deriva. Reabre-se, assim, a reflexão sobre as diferenças entre inventar “bonecos” mais ou menos caricaturais e construir uma narrativa cinematográfica.