Uma exposição em Paris sobre os irmãos Lumière serve de pretexto para uma evocação dos tempos fundadores do cinematógrafo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (20 Abril), com o título 'Quando o cinema era uma invenção sem futuro'.
A exposição permite conhecer os 1422 filmes que constituem o património cinematográfico dos Lumière, a par de uma minuciosa reconstituição, da responsabilidade do decorador Jacques Grange, do Salon Indien do Grand Café, onde se realizou a primeira sessão. A contextualização histórica da saga dos Lumière envolve também um regresso à figura emblemática do seu pai, Antoine Lumière (1840-1911), pintor e fotógrafo, decisivo inspirador dos filhos. E não apenas no plano estético, também no desenvolvimento das técnicas fotográficas, em particular na criação de um sistema de placas (a partir das chamadas “placas secas” de gelatina) que tornava a obtenção e revelação de fotografias muito mais acessível — uma célebre imagem de 1888, registada por Louis, com o irmão Auguste a pular sobre uma cadeira, serviu de símbolo promocional do novo sistema.
O sucesso desses materiais foi de tal ordem que, em 1892, a Fábrica Lumière se tornou a maior empresa europeia de placas fotográficas, apenas superada a nível mundial pela Kodak (a empresa manteria a sua actividade, com o nome Lumière, até 1982, altura em que foi integrada pela Ilford France).
São muitos e fascinantes os capítulos que, ao longo do séc. XIX, conduziram à invenção das primeiras máquinas de filmar. A começar pelas experiências de Étienne-Jules Marey e Eadweard Muybridge que, com as suas cronofotografias, anteciparam as bases técnicas do movimento cinematográfico. Como se escreve nas notas da exposição do Grand Palais, a “espingarda fotográfica” de Marey, concebida em 1882, permitiu-lhe registar, a partir de um mesmo ponto de vista, 12 imagens num segundo, dando a ver de modo radicalmente novo os movimentos de seres humanos e animais.
No séc. XXI, com a generalização do digital, desde as fases de produção dos filmes até à sua projecção nas salas, a herança dos Lumière adquire uma inusitada dimensão simbólica, porventura contribuindo para gerar novas leituras do cinema, da sua relação com as matérias que regista e também das suas componentes sociais e mitológicas. Para já, podemos supor que as celebrações em torno da sua herança vão encontrar algum eco na cada vez mais importante programação de clássicos do Festival de Cannes — até porque Thierry Frémaux acumula as suas funções no Instituto Lumière com a de delegado geral do certame da Côte d’Azur.