domingo, janeiro 04, 2009

Líbano, 1982: filmar, desenhar

Sonho ou pesadelo? Realidade ou ficção? Que significa fazer um documentário em... desenhos animados? A pergunta pode parecer absurda, mas o certo é que Ari Folman tem resposta — este texto foi publicado no Diário de Notícias (3 de Janeiro), com o título 'O documentário desenhado'.

Ari Folman fez Valsa com Bashir para ajustar contas com as suas próprias recordações, ou melhor, com a dificuldade de a elas aceder. O objectivo é relembrar a invasão do Líbano pelas tropas israelitas, em 1982, precisamente quando Folman era um jovem soldado, mal saído dos anos da adolescência. Para ele, a estratégia documental e, mais concretamente, o diálogo com alguns dos seus companheiros de armas impuseram-se como uma via fundamental: trata-se, afinal, de reavaliar a memória traumática de uma geração, as convulsões da sociedade israelita e, em última instância, as tensões histórias do Médio Oriente.
Mas... tudo isto em desenhos animados! É verdade. Não é fácil descrever. E não terá sido por acaso que Valsa com Bashir constituiu uma das mais desconcertantes surpresas da secção competitiva do Festival de Cannes de 2008. A partir do cruzamento de entrevistas e “reconstituições”, Folman transfigura todas as suas imagens em animação cinematográfica, instalando uma fascinante ambivalência: por um lado, há nos testemunhos essa verdade visceral de quem, mesmo não compreendendo muito bem o que lhe estava a acontecer, viveu directamente as tensões específicas de uma guerra; por outro lado, a animação introduz uma espécie de filtro, a um tempo formal e emocional, que reforça a sensação paradoxal de que tudo aquilo, de facto, aconteceu.
Dificilmente Valsa com Bashir dará origem a uma nova tendência ou género cinematográfico. O dispositivo do “documentário em desenho animado” corre o risco, noutros casos, de se reduzir a uma solução formalista e algo exibicionista. Seja como for, o labor de Folman rapidamente nos impõe a sua justeza formal, a par da sua pertinência temática. Dir-se-ia que Valsa com Bashir relança a energia do olhar documental, combatendo também a ilusão de uma qualquer verdade automática e espontaneísta. Fazer uma ficção é rever, reconstruir e propor um novo arranjo narrativo dos factos e memórias. E documentar? Pois bem, é exactamente o mesmo.