quarta-feira, maio 14, 2008

Cannes, 14 de Maio de 2008

Bizarra perversão dos rituais cinematográficos: Blindness, o filme de Fernando Meirelles baseado no romance Ensaio Sobre a Cegueira, de Josá Saramago, á a primeira grande notícia de Cannes 2008. E, no entanto, o primeiro grande filme desta 61.ª edição do festival dá pelo nome de Valse avec Bachir e vem de Israel.
Não me interpretem mal. Nada contra o risco assumido por Meirelles de aceitar lidar com um romance tão rico e tão... "inadaptável". O certo é que a parábola de um mundo de cegos fica reduzida a um tom algo "ilustrativo", muito elaborado no plano cenográfico, mas algo básico nas suas ressonâncias simbólicas — no seu melhor, Blindness faz lembrar uma certa agilidade artesanal de alguns clássicos da ficção científica mais ou menos apocalíptica.
Em paralelo, e por contraste, Valse avec Bachir lida também com as imagens que faltam — as ressonâncias traumáticas da invasão do Líbano, em 1982, pelas tropas israelitas — e, sobretudo, com a necessidade de enfrentar as memórias mal esclarecidas dos massacres de palestinianos. No fundo, o realizador Ari Folman está a fazer uma documentário sobre a sua própria experiência, uma vez que, com apenas 19 anos, ele integrava as tropas israelitas. Só que se trata de um documentário... em desenhos animados! Assim mesmo, literalmente: desenvolver um labor de investigação e representá-lo em registo de animação [ver imagem em cima].
É coisa nunca vista, directa, perturbante, capaz de nos (re)interrogar sobre a verdade das imagens e, sobretudo, o seu efeito de verdade. Fica a pergunta (urgente): alguém vai exibir este filme nas salas portuguesas?