sexta-feira, agosto 22, 2008

A propósito de um blog do Porto (cont.)

LUIS BUÑUEL Belle de Jour (1967)

Há dias, escrevi aqui um post sobre os modos de leitura/avaliação/discussão dos sinais, informações e imagens que nos chegam dos Jogos Olímpicos de Pequim. Era também uma reacção a uma referência a um texto meu num post, assinado por Tiago Ramalho, do blog de um grupo de alunos da Faculdade de Direito do Porto, Sociedade de Debates. Era ainda uma forma de diversificar uma reflexão, que aqui tenho desenvolvido, sobre algumas formas de violência na esfera bloguista.

Agora, nesse mesmo blog, outro dos seus autores, que assina MJ, vem fazer-se eco do meu texto, convocando para a respectiva leitura o próprio Tiago Ramalho.

Creio que vale a pena prosseguir a troca de ideias.

> IDEIAS - Desde logo, importa referir a observação de MJ sobre a origem do próprio comentário: “É pena que não tenha sido pelos melhores motivos nem com o conteúdo que eu desejaria.” De facto, gostaria de sublinhar exactamente o contrário: independentemente de estarmos mais ou menos de acordo seja sobre que tema for, o blog Sociedade de Debates é um espaço interessantíssimo de ideias e confronto de ideias. É mesmo uma clara excepção.
Não exagero se disser que 99 % dos comentários que se podem encontrar na esfera bloguista são de uma indigência atroz (“oi meu, fui ver o filme Y; porreiro, fixe, posta qualquer coisa...”), além de que pelo menos 98% se refere aos escritos e ideias dos outros praticando a mentira, a difamação e o insulto — não exagero, insisto, nem pretendo ser brando em tal apreciação: a qualidade do(s) debate(s) é simplesmente catastrófica.

> CONTRADITÓRIO - Depois, creio também que podemos reflectir um pouco sobre o que seja o confronto de ideias e o muito propalado “contraditório”. Na verdade, importa lidar com o facto de, não apenas nos blogs, mas no próprio tecido social, prevalecer uma noção muito... "bloguística" da gestão desse chamado contraditório. Num dos comentários ao post de MJ, há mesmo um dos autores da Sociedade de Debates, que assina Hugo e cita estas linhas minhas:

"Se é verdade que todos temos direito ao labor e ao produto da nossa subjectividade, não é menos verdade que tal só pode acontecer a partir da definição de um espaço de alguma objectividade processual a partir do qual possamos pensar, partilhar e confrontar pensamentos."

Depois, Hugo conclui:

A parte do "confronto de pensamentos" é "aberrante" num blog sem a possibilidade de comentários...

Enfim, com ou sem aspas, continuo a considerar que a palavra “aberrante” não é uma grande proeza de reflexão... E permitam-me o desabafo: tenho a noção muito clara de que as minhas ideias são discutíveis, porventura inconsistentes, por certo não universais, mas ser classificado de “aberrante” não é muito motivador para dialogar com os outros.

Serenamente — preferindo não classificar o outro (seja ele quem for) de forma demasiado expeditiva —, podemos lembrar:

1 – que os blogs “abertos” são quase invariavelmente dominados pelos discursos mais simplistas e agressivos (remeto para o que escrevi na alínea anterior) — aliás, numa reacção ao post de MJ, respondendo a Hugo, Tiago Ramalho reconhece isso mesmo quando especula sobre o que será “(...)ter todos os dias uns tipozinhos a virem incomodar, sem qualquer intuito de discutir a temática.”

2 – que o Sound + Vision não foi concebido como um blog “aberto”, mas sim um espaço de características eminentemente jornalísticas — certamente com as marcas muito subjectivas dos seus autores — cuja lógica editorial, de facto, não inclui um ping pong constante com os seus visitantes;

3 – que consideramos que essa lógica não corresponde a nenhuma atitude “aberrante” face a esses mesmos visitantes, mas sim à definição legítima de um sistema de regras que, naturalmente, qualquer um pode rejeitar (e nunca mais nos visitar);

4 – que o Sound + Vision possui um mail através do qual recebemos sugestões, ideias e reparos críticos (alguns por nós publicados);

5 – que o simples facto de estarmos aqui (vocês desse lado e nós deste) a expor as nossas concordâncias e diferenças significa que o modelo é possível e viável — e que, acima de tudo, nada nos obriga a considerar como boas e enriquecedoras as regras dominantes da esfera bloguista apenas porque são... dominantes.

6 – que a acumulação de muitos conceitos minoritários (do Sound + Vision, da Sociedade de Debates, etc., etc.) pode contribuir para a criação de novas dinâmicas de confronto de ideias em que se exija — a nós e aos outros — mais do que classificar o outro como “aberrante”...

> CHINA – Não deixa de ser curioso, e por certo revelador, que esta nossa reflexão cruzada passe, não apenas pelos Jogos Olímpicos, mas sobretudo por essa entidade imensa, imen-samente plural e contraditória, impossível de reduzir a qualquer maniqueísmo social, político ou ético, que dá pelo nome de China.
O meu somos todos chineses — que, modestamente, tentava retomar uma fórmula de Eduardo Lourenço na sua fascinante reflexão sobre a globalização cultural: "somos todos americanos" — era uma maneira de tentar sugerir o facto de o nosso presente e, por certo, muito do nosso futuro passarem pelo presente e pelo futuro da China.
Permito-me, por isso, citar um outro post que escrevi já depois do anterior sobre a Sociedade de Debates e que tem a ver com o facto de a pequena cantora da cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos ter feito playback. De facto, passou pela esfera bloguista uma onda de “denúncia”: tal playback seria a prova real de que a China é uma terrível ditadura!!!
Não quero simplificar seja o que for. E, ainda que de forma linear, resumo algo que já escrevi anteriormente:
1 – há uma urgência global, e globalmente política, de confrontar o governo chinês com as questões incontornáveis dos direitos humanos e, em particular, com a situação no Tibete.
2 – é impossível e, sobretudo, não tem qualquer consistência histórica e argumentativa reduzir a sinais maniqueístas (por exemplo: um playback...) um povo e um país onde confluem muitos séculos de história; acima de tudo, é absurdo confundir a vitalidade imensa, por certo imensamente contraditória, de milhares de milhões de chineses com as medidas concretas do seu Governo (por mais discutíveis que possam ser).
O meu post era, justamente, sobre essa desproporção argumentativa.

Agradeço a MJ a possibilidade de ter relançado estas ideias. O vosso blog é um dos poucos que faz a diferença — não precisamos de estar de acordo para reconhecer isso e para continuarmos a praticar esse exercício, hoje em dia tão vilipendiado, que dá pelo nome de pensar.