Vivemos num mundo em que muito boa gente passou a considerar que só é bom cidadão quem for... "polícia"! Daí as práticas de "denúncia" — e histérica dramatização — a pretexto das coisas mais lineares.
O exemplo mais recente tem a ver com o facto de, na cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos de Pequim, a pequena Lin Miaoke [9 anos, em cima à direita], que interpretou uma ode à China, se ter limitado a fazer playback — a verdadeira voz pertencia a Yang Peiyi [7 anos, imagem da esquerda].
O exemplo mais recente tem a ver com o facto de, na cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos de Pequim, a pequena Lin Miaoke [9 anos, em cima à direita], que interpretou uma ode à China, se ter limitado a fazer playback — a verdadeira voz pertencia a Yang Peiyi [7 anos, imagem da esquerda].
De facto, há quem se mostre chocado pela troca e pelas suas razões (segundo a organização, a melhor solução era "combinar" a voz de uma e a imagem de outra), choque esse que é perfeitamente legítimo e compreensível — sabemos que o conflito entre o visual e a identidade atravessa, hoje em dia, muitas formas da vida social. O que é espantoso é que isso sirva como "prova" da repressão do regime chinês e de todo um rol de horrores em que China e governo chinês, cidadãos chineses e forças políticas da China, tudo se confunde num caldeirão de monstros.
Há, por certo, razões muito humanas e humanitárias para confrontar a administração chinesa com algumas formas de tratamento da oposição política e, em particular, com o delicadíssimo problema da defesa dos direitos humanos — neste blog, à nossa modesta escala, tem-se procurado não simplificar o que está em jogo. Mas chega a ser delirante o modo como se tenta transfigurar um evento tão particular e específico numa espécie de filtro mágico para compreender "toda" a China — uma vez mais, a generalização caricata funciona como promoção da ignorância.
Vindo dos EUA, alguns dos protestos são desastradamente anedóticos, quanto mais não seja porque revelam um ingénuo desconhecimento dos mecanismos do espectáculo do seu próprio país. Será que os autores de tal protesto sabem da existência de um um objecto como My Fair Lady, de George Cukor, por mero acaso distinguido com oito Oscars, incluindo o de melhor filme de 1964... E será que sabem que a radiosa protagonista, Audrey Hepburn, cantava todas as suas canções... em playback [voz de Marni Nixon]? Será que nunca viram uma obra-prima como Serenata à Chuva (1952) onde, por coincidência, se evoca o playback como técnica estruturante do próprio espectáculo musical?
Repare-se: não se trata de "defender" o playback como uma nova verdade absoluta. Trata-se, isso sim, de relembrar o simples facto de o universo do entertainment não ser feito de verdades absolutas. E que o olhar "policial" não é necessariamente o melhor para fruir a pluralidade do mundo.
Já agora, para não nos ficarmos pelo silêncio, lembremos Audrey Hepburn (e Marni Nixon!) em My Fair Lady — talvez Cukor fosse chinês...