Decididamente, vale mesmo a pena continuar a debater algumas ideias em torno do estado actual dos blogs, da informação que neles circula e do modo como circula, dos pontos de vista que se explicitam ou dos que se dão como antecipadamente explicitados (ver 'Violência dos blogs'). O pretexto é um post do blog Sociedade de Debates ("um projecto de alunos da Faculdade de Direito da Universidade do Porto unidos pelas suas constantes divergências, e que procuram através do debate não chegar a conclusão nenhuma").
Num post intitulado 'Foguetes e bailarinas', Tiago Ramalho tece algumas considerações sobre a cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos de Pequim. Creio que o resumo correcto será este: o autor do post considera que o espectáculo — que cita, ironicamente, como "maravilhosa cerimónia" e "magna encenação" — foi apenas uma manobra de diversão para esconder algumas realidades mais cruas do regime chinês ("censura, julgamentos (?) sumários, condições desumanas de trabalho"). Conclui Tiago Ramalho, ainda com ironia: "Bem, enquanto houver festa a gente entretém-se, dança e aproveita. E esquece os problemas da vida. Como a China o sabe; como os convivas o fazem por ignorar."
Pelo meio, o autor do post é mais explícito em relação ao facto de, segundo ele, a cerimónia ter enganado muitas pessoas ou, pior do que isso, ter sido recebida com falsidade por alguns desses "convivas". E escreve: "Pior não é que o vulgo espectador se deslumbre; o mais aberrante é que um cronista de jornal de referência o afirme (como João Lopes no DN), já para não referir os doutos jornalistas desportivos."
Confesso que não gosto de ver nenhum grupo ("jornalistas", "estudantes", seja quem for) mencionado como um colectivo esquemático e forçosamente homogéneo — penso, assim, que os jornalistas desportivos não são uma "casta" e que, como em todas as profissões, há pessoas com muitas e significativas diferenças entre si. Mas permito-me ser mais pessoal e recordar na íntegra a crónica que escrevi no Diário de Notícias (9 de Agosto) sobre a abertura dos Jogos Olímpicos. Dizia assim:
A notícia, incontestavelmente objectiva, é esta: as televisões portuguesas podem mobilizar-se, em uníssono, para fazer directos com o major Valentim Loureiro a sair do tribunal... mas não por causa da cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos. Mundo global? Sim, mas tudo o que fique para além de Gondomar é demasiado complicado.
A questão não é anedótica. Nem pode ser entendida como um prurido crítico. É bem certo que os críticos têm as costas largas e continuam a servir de bode expiatório a todos os discursos que não querem pensar o nosso presente. Mas como contornar a importância simbólica de um evento que, entre nós, se ficou pelo espaço minoritário da RTP2? Louve-se, ao menos, a existência de tal espaço, na certeza de que o peso relativamente discreto que o acontecimento adquiriu nas televisões portuguesas reflecte uma cultura desportiva & informativa dominada pelo futebol (cujas delícias, como é óbvio, não estão em causa), pelas suas histórias e personagens.
Para os chineses, o momento não tinha mesmo nada de anedótico. Tratava-se de marcar pontos numa arena (televisiva) realmente global. E se os valores de síntese são marcantes nessa arena, então importa dizer que raras vezes se terá assistido a um espectáculo que, com tão elaborada precisão formal, combinasse referências tão paradoxais: as coreografias tradicionais e as suas reinvenções modernas, as memórias iconográficas e a tecnologia futurista.
Sabemos que tudo isto acontece num contexto em que o confronto da China com as razões dos direitos humanos existe (e deve, imperiosamente, continuar). Mas será que nos vamos dar ao luxo de ser apenas “panfletários”?
Porventura herdando o papel aglutinador da cultura americana no século XX, a China veio mostrar-nos que, na nossa fragilizada aldeia global, o espectáculo pode ser um primeiro traço de união. Seria demasiado fácil ignorar, simplificar ou difamar tanta beleza e tamanha energia. Seria, além do mais, um erro político. Afinal de contas, somos todos chineses.
Não tenho a pretensão de ter a "razão" do meu lado. Não espero que Tiago Ramalho "coincida" com os meus pontos de vista. O certo é que o meu texto — classificado sumariamente de "aberrante" sem sequer ter direito a uma palavra citada — procurava pelo menos não escamotear três vectores temáticos, a meu ver importantes neste contexto:
1 - a relação contraditória das televisões portuguesas com os acontecimentos globais;
2 - o significado simbólico dos Jogos (e da cerimónia em particular) para os cidadãos anónimos chineses;
3 - a importância política de saber lidar com os prazeres próprios do espectáculo sem deixar, neste caso tão particular, de confrontar a China com questões polémicas da sua governação que têm marcado a agenda política internacional.
Aliás, neste último aspecto, o texto lembrava, explicitamente, que o confronto da China com as razões dos direitos humanos existe — e acrescentava uma opinião, também ela política, considerando que esse confronto deve, imperiosamente, continuar (o autor do post não tem, obviamente, obrigação de conhecer tudo o que escrevo, mas permito-me recordar que, depois da publicação deste texto, já voltei a escrever, neste mesmo blog, sobre os actuais modos de percepção mediática da China — post: 'China ou a febre da (des)informação'.)
Num post intitulado 'Foguetes e bailarinas', Tiago Ramalho tece algumas considerações sobre a cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos de Pequim. Creio que o resumo correcto será este: o autor do post considera que o espectáculo — que cita, ironicamente, como "maravilhosa cerimónia" e "magna encenação" — foi apenas uma manobra de diversão para esconder algumas realidades mais cruas do regime chinês ("censura, julgamentos (?) sumários, condições desumanas de trabalho"). Conclui Tiago Ramalho, ainda com ironia: "Bem, enquanto houver festa a gente entretém-se, dança e aproveita. E esquece os problemas da vida. Como a China o sabe; como os convivas o fazem por ignorar."
Pelo meio, o autor do post é mais explícito em relação ao facto de, segundo ele, a cerimónia ter enganado muitas pessoas ou, pior do que isso, ter sido recebida com falsidade por alguns desses "convivas". E escreve: "Pior não é que o vulgo espectador se deslumbre; o mais aberrante é que um cronista de jornal de referência o afirme (como João Lopes no DN), já para não referir os doutos jornalistas desportivos."
Confesso que não gosto de ver nenhum grupo ("jornalistas", "estudantes", seja quem for) mencionado como um colectivo esquemático e forçosamente homogéneo — penso, assim, que os jornalistas desportivos não são uma "casta" e que, como em todas as profissões, há pessoas com muitas e significativas diferenças entre si. Mas permito-me ser mais pessoal e recordar na íntegra a crónica que escrevi no Diário de Notícias (9 de Agosto) sobre a abertura dos Jogos Olímpicos. Dizia assim:
A notícia, incontestavelmente objectiva, é esta: as televisões portuguesas podem mobilizar-se, em uníssono, para fazer directos com o major Valentim Loureiro a sair do tribunal... mas não por causa da cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos. Mundo global? Sim, mas tudo o que fique para além de Gondomar é demasiado complicado.
A questão não é anedótica. Nem pode ser entendida como um prurido crítico. É bem certo que os críticos têm as costas largas e continuam a servir de bode expiatório a todos os discursos que não querem pensar o nosso presente. Mas como contornar a importância simbólica de um evento que, entre nós, se ficou pelo espaço minoritário da RTP2? Louve-se, ao menos, a existência de tal espaço, na certeza de que o peso relativamente discreto que o acontecimento adquiriu nas televisões portuguesas reflecte uma cultura desportiva & informativa dominada pelo futebol (cujas delícias, como é óbvio, não estão em causa), pelas suas histórias e personagens.
Para os chineses, o momento não tinha mesmo nada de anedótico. Tratava-se de marcar pontos numa arena (televisiva) realmente global. E se os valores de síntese são marcantes nessa arena, então importa dizer que raras vezes se terá assistido a um espectáculo que, com tão elaborada precisão formal, combinasse referências tão paradoxais: as coreografias tradicionais e as suas reinvenções modernas, as memórias iconográficas e a tecnologia futurista.
Sabemos que tudo isto acontece num contexto em que o confronto da China com as razões dos direitos humanos existe (e deve, imperiosamente, continuar). Mas será que nos vamos dar ao luxo de ser apenas “panfletários”?
Porventura herdando o papel aglutinador da cultura americana no século XX, a China veio mostrar-nos que, na nossa fragilizada aldeia global, o espectáculo pode ser um primeiro traço de união. Seria demasiado fácil ignorar, simplificar ou difamar tanta beleza e tamanha energia. Seria, além do mais, um erro político. Afinal de contas, somos todos chineses.
Não tenho a pretensão de ter a "razão" do meu lado. Não espero que Tiago Ramalho "coincida" com os meus pontos de vista. O certo é que o meu texto — classificado sumariamente de "aberrante" sem sequer ter direito a uma palavra citada — procurava pelo menos não escamotear três vectores temáticos, a meu ver importantes neste contexto:
1 - a relação contraditória das televisões portuguesas com os acontecimentos globais;
2 - o significado simbólico dos Jogos (e da cerimónia em particular) para os cidadãos anónimos chineses;
3 - a importância política de saber lidar com os prazeres próprios do espectáculo sem deixar, neste caso tão particular, de confrontar a China com questões polémicas da sua governação que têm marcado a agenda política internacional.
Aliás, neste último aspecto, o texto lembrava, explicitamente, que o confronto da China com as razões dos direitos humanos existe — e acrescentava uma opinião, também ela política, considerando que esse confronto deve, imperiosamente, continuar (o autor do post não tem, obviamente, obrigação de conhecer tudo o que escrevo, mas permito-me recordar que, depois da publicação deste texto, já voltei a escrever, neste mesmo blog, sobre os actuais modos de percepção mediática da China — post: 'China ou a febre da (des)informação'.)
Que fazer? Por um lado, é inevitável relembrar que, neste registo, nenhum diálogo é possível: ninguém gosta de ver o seu trabalho classificado de "aberrante" e, já agora, se alguém o fizer que, pelo menos, não o reduza ao silêncio, escamoteando as suas matérias. Por outro lado, talvez seja oportuno insistir na noção muito simples — mas também muito firme — de que só faz sentido utilizar os espaços públicos (os blogs, por exemplo) para confrontar as ideias dos outros se nos quisermos colocar para além da alusão simplista e anedótica.
Se é verdade que todos temos direito ao labor e ao produto da nossa subjectividade, não é menos verdade que tal só pode acontecer a partir da definição de um espaço de alguma objectividade processual a partir do qual possamos pensar, partilhar e confrontar pensamentos.