Fotografia de alguns dos documentos retidos por Donald Trump na sua propriedade de Mar-a-Lago [New York Times*, imagem do Departamento de Justiça dos EUA]
* Uma das imagens mais impressionantes do documento [de acusação a Trump] é uma fotografia de uma caixa de documentos top secret da segurança nacional que, em 2021, se tinha espalhado no chão de uma sala de arrumações acessível a muitos dos empregados da propriedade.
A obra de Anselm Kiefer revista e reinventada por Wim Wenders
Wim Wenders trouxe a Cannes um novo trabalho documental: Anselm é um magnífico retrato do artista alemão Anselm Kiefer, cruzando memórias da guerra com o fascínio das imagens a três dimensões — este texto foi publicado no Diário de Notícias (19 maio).
Se julgarmos que os filmes a três dimensões se esgotaram na fúria comercial (e na mediocridade criativa) dos super-heróis da Marvel, talvez estejamos a passar ao lado do que realmente importa… Tendo em conta o documentário Anselm, uma realização de Wim Wenders sobre o artista Anselm Kiefer, o menos que se pode dizer é que o 3D resiste e, num caso como este, se revela um instrumento precioso para um tratamento (realmente) cinematográfico das imagens.
Não é a primeira vez que Wenders recorre ao 3D: a técnica dos “filmes para ver com óculos” era já fundamental na sua abordagem do universo de Pina Bausch (Pina, 2011). O certo é que, agora, ele próprio reconhece que Anselm beneficiou da espectacular evolução deste tipo de tecnologia, conferindo ao filme uma dimensão de ambíguo fascínio: quanto mais nele se documentam as obras do protagonista, mais sentimos que vogamos num universo visual (também sofisticadamente sonoro) que tende para o imponderável do sonho.
Sonho e pesadelo, importa acrescentar. Nascido a 8 de março de 1945, cerca de seis meses antes do fim da Segunda Guerra Mundial, Kiefer pertence à geração de alemães que, literalmente, cresceram no meio da destruição deixada pela guerra — as imagens de crianças a brincar em cenários de ruínas são impressionantes de crueldade e candura. A sua visão, sempre a meio caminho entre pintura e escultura, envolve o desejo “insensato” de ocupar todas as paisagens e construir um mundo cuja materialidade não exclui, antes intensifica, a dimensão mais íntima da dor e da memória.
Projectado extra-competição, numa das “Séances Spéciales” da seleção oficial, Anselm é apenas “metade” da presença de Wenders em Cannes: Perfect Days, o seu novo filme de ficção, rodado em Tóquio com um elenco totalmente japonês, será apresentado a concorrer para a Palma de Ouro.
Catherine Deneuve está no belíssimo cartaz oficial da 76ª edição do Festival de Cannes (16-27 maio) e esteve também na respectiva sessão oficial de abertura. Foi ela que proclamou a frase oficial — "Está aberto oficialmente..." —, não são deixar antes uma mensagem muito sentida de condenação dos horrores da guerra na Ucrânia.
A seu lado estava Michael Douglas, que foi receber uma Palma de Ouro honorária, partilhando memórias de Cannes e também da herança moral e profissional que recebeu do pai. Ambos foram apresentados por Chiara Mastroianni, filha de Deneuve, que desempenhou com invulgar sobriedade o papel de condutora da cerimónia de abertura, desta vez relativamente breve e em tom de louvável sobriedade.
O filme escolhido para o arranque do festival — Jeanne du Barry [trailer] — foi uma boa surpresa, conseguindo relançar um certo modelo de melodrama histórico, neste caso encenando a saga, de uma só romântica e política, do Rei Luís XV e da sua amante de eleição (a personagem-título). Realizado por Maïwenn, que também assume o papel de Jeanne, o filme permitiu-nos reencontrar Johnny Depp que, com serena contenção, compõe um monarca a meio caminho entre a pompa e o burlesco. Apresentado extra-competição, esperemos que Jeanne du Barry seja um sinal da variedade, e também das surpresas, que todos queremos encontrar.
Ninguém é perfeito... mas há histórias com um final que roça a perfeição. Aconteceu agora com o teledisco de American Life, a canção-título do álbum de Madonna publicado há 20 anos.
Recordemos que, na altura do seu lançamento, a invasão do Iraque definia as principais coordenadas da geo-política, a ponto de Madonna ter retirado o teledisco de circulação: "Decidi não difundir o meu video. Foi filmado antes da guerra começar e não creio que seja apropriado emiti-lo neste momento. Devido ao volátil estado do mundo, por manifestação de sensibilidade e respeito pelas forças armadas, que apoio e por quem rezo, não quero correr o risco de ofender quem quer que seja que possa interpretar erradamente o significado deste video."
Duas décadas mais tarde, American Life, realizado por Jonas Akerlund, continua a ser aquilo que era: uma obra-prima cujo fulgor narrativo é indissociável da sua contundente mensagem contra a guerra e as muitas formas de mediatização gratuita das respectivas imagens (e sons). Com um toque de magia: podemos vê-lo agora em imaculada versão 4K.
Elephant, quarto registo de estúdio de The White Stripes, objecto fulcral da sua discografia e do seu rock realmente independente, foi lançado no dia 1 de abril de 2003. Para assinalar o 20º aniversário do álbum, Jack White e Meg White vão relançá-lo (21 abril) numa edição Deluxe que inclui um concerto no Aragon Ballroom de Chicago — desse evento, eis The Hardest Button to Button; em baixo, o video original, dirigido por Michel Gondry.
No dia 9 de março de 2023 morreu Robert Blake, um dos grandes actores das décadas de 1960/70 em Hollywood, com uma filmografia que vai de Richard Brooks a David Lynch — este texto evocativo foi publicado no Diário de Notícias (12 março).
O actor Robert Blake faleceu no dia 9 de março, em Los Angeles — contava 89 anos. Inevitavelmente, as notícias da sua morte recordaram as muitas atribulações da sua existência: uma infância marcada pelo abuso de um pai alcoólico que o levaria a fugir de casa aos 14 anos; a condição de estrela precoce em Hollywood, graças à série de filmes infantis The Little Rascals, uma produção da MGM cujo elenco integrou de 1939 a 1944 (portanto, entre os seis e os onze anos); o suicídio do pai em 1956, tinha Blake 23 anos; enfim, o episódio trágico da morte de Bonny Lee Bakley, a sua segunda mulher, em 2001, assassinada a tiro à porta de um restaurante de Los Angeles.
As duas últimas décadas da vida de Blake ficaram marcadas por este episódio. Em 2002, foi acusado da morte da mulher, tendo cumprido um ano de prisão. Em novo julgamento, três anos mais tarde, seria absolvido. Um processo civil levou-o de novo ao tribunal, para ser julgado por eventual cumplicidade na montagem do crime, sendo condenado a pagar 30 milhões de dólares (valor mais tarde reduzido para metade) aos quatro filhos de Bonny Lee Bakley. Depois de ter declarado falência, Blake abriu um canal no YouTube, “I ain’t dead yeat” (à letra: “Ainda não estou morto”) que utilizou para partilhar memórias da sua carreira. Oficialmente, as condições da morte de Bonny Lee Bakley continuam por esclarecer.
No obituário publicado pela revista Variety, são recordadas as palavras breves, mas radicais, com que Blake, numa entrevista dada em 2011, resumiu a sua condição profissional: “Se não tivesse tido uma vida tão doentia e tão atribulada, talvez não tivesse sido um actor.” Como é óbvio, importa não desviar tais palavras para o determinismo com que, hoje em dia, se faz psicologia “social”, nomeadamente em alguns “talk shows” televisivos e na chamada imprensa cor-de-rosa. Acontece que, porventura por causa das convulsões da sua existência, mas sobretudo através de uma invulgar exigência profissional, Blake foi uma figura central (a meu ver, um dos mais notáveis actores) do cinema de Hollywood nas décadas de 1960/70.
Ao ler alguns obituários de Blake escritos nos EUA, não posso deixar de ficar chocado com a ligeireza com que é referido o seu filme Tell Them Willie Boy Is Here (entre nós, O Vale do Fugitivo). Desde logo porque marcou o regresso à realização de Abraham Polonsky (1901-1999), um dos “Dez de Hollywood”, marginalizados durante as perseguições do período “maccartista”, mas sobretudo porque se trata de um título fulcral na reconversão narrativa e simbólica do lugar dos índios no cinema americano.
Nele se encena a tragédia de Willie Boy (Blake), um índio marginal, acusado de um crime, que, depois de a sua tribo ter sido “deslocada” do território dos seus antepassados, se confronta com o xerife (Robert Redford) que o persegue… Dir-se-ia que, também em algum jornalismo cinematográfico, o “politicamente correcto” dos nossos dias se alimenta de uma desavergonhada ignorância, a ponto de as narrativas que abordam a complexidade da história dos índios (também das mulheres, também dos afro-americanos) serem reduzidas a um fenómeno exclusivo da última meia dúzia de anos… De facto, Tell Them Willie Boy Is Here transporta esse pecado insuperável de ter sido estreado há mais de meio século, em 1969! Já agora, com uma curiosa adenda portuguesa: foi o filme de abertura do cinema Apolo 70, em Lisboa, no dia 27 de maio de 1971, com programação da responsabilidade de Lauro António.
Entre os títulos incontornáveis da filmografia de Blake, recordo em particular o prodigioso A Sangue Frio (1967), de Richard Brooks, uma adaptação do romance homónimo de Truman Capote, investigando um crime ocorrido em 1959, no estado do Kansas. Muitas vezes referido como modelo do chamado “romance de não-ficção”, o livro de Capote (editado entre nós pela Dom Quixote, com tradução de Maria Isabel Braga) corresponde à emergência de novas matrizes realistas que o filme de Brooks transfigura numa impressionante narrativa cinematográfica, rodada a preto e branco, com direcção fotográfica de Conrad Hall (sem esquecer a música composta por Quincy Jones).
Ao interpretar um dos dois homens que assaltam e assassinam os membros de uma família rural, Blake consegue expor a perturbante “naturalidade” de um comportamento maligno que ignora a simples possibilidade de qualquer laço social — o mesmo se dirá, aliás, da composição do outro assaltante, por Scott Wilson (1942-2018), eterno e talentoso secundário de Hollywood (uma das suas derrradeiras personagens, entre 2011 e 2018, foi na série televisiva The Walking Dead).
Por alguma razão, em Lost Highway/Estrada Perdida (1997), David Lynch escolheu Robert Blake para interpretar o “Homem Mistério” — seria o seu último filme. É ele que, numa festa, sugere a um dos convidados, de nome Fred (Bill Pullman), que já se tinham encontrado. Fred acha que não e pergunta-lhe onde isso terá acontecido. Blake responde: “Em sua casa. Não se recorda?” Fred diz que não, o que leva Blake a esclarecer que, na verdade, naquele preciso momento, ele próprio está em casa de Fred…
Perante a reacção de Fred, Blake sugere que ele telefone para a sua própria casa — assim faz e o “Homem Mistério”… responde do outro lado [video]. Não haveria maneira mais eloquente de expor a clivagem interior da identidade humana. Ou, pelo menos, o medo de a pressentir através do misto de carnalidade e abstração que um actor pode dar a ver.
José Duarte faleceu no dia 30 de março, contava 84 anos [DN]. Deixa um legado precioso como divulgador do jazz e, mais do que isso, militante de uma cultura do conhecimento e da paixão artística. O seu programa da Antena 1 — Cinco Minutos de Jazz — é o perfeito cartão de visita desse legado. Aqui fica o tema que, a partir da sua criação, em 1966 (na Rádio Renascença), serviu de entrada ao programa: Lou's Blues, do saxofonista norte-americano Lou Donaldson, faixa de abertura do seu álbum The Time Is Right (1960).
Da música ao cinema, incluindo a música para cinema, o japonês Ryuichi Sakamoto é uma personalidade única e fascinante da história artística das últimas décadas: faleceu, vítima de cancro, no dia 28 de março (a morte só foi divulgada a 2 de abril, já depois das cerimónias fúnebres) — contava 71 anos.
Dos tempos heróicos da banda electrónica Yellow Magic Orchestra, fundada em 1978 com Haruomi Hosono e Yukihiro Takahashi, até ao álbum 12, lançado em janeiro de 2023, reflectindo as condições de saúde do seu autor, Sakamoto foi um criador de muitos cruzamentos estéticos, sempre seduzido por um intimismo tendencialmente minimalista, mesmo quando as suas composições não temiam expor-se com pompa e circunstância.
Um dos seus títulos mais universais é, por certo, o filme Feliz Natal, Mr. Lawrence (1983), de Nagisa Oshima, em que partilhava o protagonismo com David Bowie — a respectiva banda sonora valeu-lhe um Globo de Ouro da Associação da Imprensa Estrangeira de Hollywood. Com a música de O Último Imperador (1987), de Bernardo Bertolucci, obteve um Oscar da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood (partilhado com David Byrne e Cong Su).
>>> Yellow Magic Orchestra, Rydeen (1979).
>>> Trailer de Feliz Natal, Mr. Lawrence.
>>> Piano solo: tema de Feliz Natal, Mr. Lawrence.
>>> We Love You (Jagger/Richards), canção incluída no álbum Beauty (1989) — com Arto Lindsay, no Apollo Theater, Nova Iorque, 1990.
>>> Snake Eyes (1998), tema para o filme homónimo de Brian de Palma, com Nicolas Cage.
>>> Como intérprete de Rain (1993), de Madonna — realização de Mark Romanek.
>>> "20220304", faixa final de 12, derradeiro álbum de estúdio.