Hollywood, 1967: Robert Blake em A Sangue Frio |
No dia 9 de março de 2023 morreu Robert Blake, um dos grandes actores das décadas de 1960/70 em Hollywood, com uma filmografia que vai de Richard Brooks a David Lynch — este texto evocativo foi publicado no Diário de Notícias (12 março).
O actor Robert Blake faleceu no dia 9 de março, em Los Angeles — contava 89 anos. Inevitavelmente, as notícias da sua morte recordaram as muitas atribulações da sua existência: uma infância marcada pelo abuso de um pai alcoólico que o levaria a fugir de casa aos 14 anos; a condição de estrela precoce em Hollywood, graças à série de filmes infantis The Little Rascals, uma produção da MGM cujo elenco integrou de 1939 a 1944 (portanto, entre os seis e os onze anos); o suicídio do pai em 1956, tinha Blake 23 anos; enfim, o episódio trágico da morte de Bonny Lee Bakley, a sua segunda mulher, em 2001, assassinada a tiro à porta de um restaurante de Los Angeles.
As duas últimas décadas da vida de Blake ficaram marcadas por este episódio. Em 2002, foi acusado da morte da mulher, tendo cumprido um ano de prisão. Em novo julgamento, três anos mais tarde, seria absolvido. Um processo civil levou-o de novo ao tribunal, para ser julgado por eventual cumplicidade na montagem do crime, sendo condenado a pagar 30 milhões de dólares (valor mais tarde reduzido para metade) aos quatro filhos de Bonny Lee Bakley. Depois de ter declarado falência, Blake abriu um canal no YouTube, “I ain’t dead yeat” (à letra: “Ainda não estou morto”) que utilizou para partilhar memórias da sua carreira. Oficialmente, as condições da morte de Bonny Lee Bakley continuam por esclarecer.
No obituário publicado pela revista Variety, são recordadas as palavras breves, mas radicais, com que Blake, numa entrevista dada em 2011, resumiu a sua condição profissional: “Se não tivesse tido uma vida tão doentia e tão atribulada, talvez não tivesse sido um actor.” Como é óbvio, importa não desviar tais palavras para o determinismo com que, hoje em dia, se faz psicologia “social”, nomeadamente em alguns “talk shows” televisivos e na chamada imprensa cor-de-rosa. Acontece que, porventura por causa das convulsões da sua existência, mas sobretudo através de uma invulgar exigência profissional, Blake foi uma figura central (a meu ver, um dos mais notáveis actores) do cinema de Hollywood nas décadas de 1960/70.
Ao ler alguns obituários de Blake escritos nos EUA, não posso deixar de ficar chocado com a ligeireza com que é referido o seu filme Tell Them Willie Boy Is Here (entre nós, O Vale do Fugitivo). Desde logo porque marcou o regresso à realização de Abraham Polonsky (1901-1999), um dos “Dez de Hollywood”, marginalizados durante as perseguições do período “maccartista”, mas sobretudo porque se trata de um título fulcral na reconversão narrativa e simbólica do lugar dos índios no cinema americano.
Nele se encena a tragédia de Willie Boy (Blake), um índio marginal, acusado de um crime, que, depois de a sua tribo ter sido “deslocada” do território dos seus antepassados, se confronta com o xerife (Robert Redford) que o persegue… Dir-se-ia que, também em algum jornalismo cinematográfico, o “politicamente correcto” dos nossos dias se alimenta de uma desavergonhada ignorância, a ponto de as narrativas que abordam a complexidade da história dos índios (também das mulheres, também dos afro-americanos) serem reduzidas a um fenómeno exclusivo da última meia dúzia de anos… De facto, Tell Them Willie Boy Is Here transporta esse pecado insuperável de ter sido estreado há mais de meio século, em 1969! Já agora, com uma curiosa adenda portuguesa: foi o filme de abertura do cinema Apolo 70, em Lisboa, no dia 27 de maio de 1971, com programação da responsabilidade de Lauro António.
Entre os títulos incontornáveis da filmografia de Blake, recordo em particular o prodigioso A Sangue Frio (1967), de Richard Brooks, uma adaptação do romance homónimo de Truman Capote, investigando um crime ocorrido em 1959, no estado do Kansas. Muitas vezes referido como modelo do chamado “romance de não-ficção”, o livro de Capote (editado entre nós pela Dom Quixote, com tradução de Maria Isabel Braga) corresponde à emergência de novas matrizes realistas que o filme de Brooks transfigura numa impressionante narrativa cinematográfica, rodada a preto e branco, com direcção fotográfica de Conrad Hall (sem esquecer a música composta por Quincy Jones).
Ao interpretar um dos dois homens que assaltam e assassinam os membros de uma família rural, Blake consegue expor a perturbante “naturalidade” de um comportamento maligno que ignora a simples possibilidade de qualquer laço social — o mesmo se dirá, aliás, da composição do outro assaltante, por Scott Wilson (1942-2018), eterno e talentoso secundário de Hollywood (uma das suas derrradeiras personagens, entre 2011 e 2018, foi na série televisiva The Walking Dead).
Por alguma razão, em Lost Highway/Estrada Perdida (1997), David Lynch escolheu Robert Blake para interpretar o “Homem Mistério” — seria o seu último filme. É ele que, numa festa, sugere a um dos convidados, de nome Fred (Bill Pullman), que já se tinham encontrado. Fred acha que não e pergunta-lhe onde isso terá acontecido. Blake responde: “Em sua casa. Não se recorda?” Fred diz que não, o que leva Blake a esclarecer que, na verdade, naquele preciso momento, ele próprio está em casa de Fred…
Perante a reacção de Fred, Blake sugere que ele telefone para a sua própria casa — assim faz e o “Homem Mistério”… responde do outro lado [video]. Não haveria maneira mais eloquente de expor a clivagem interior da identidade humana. Ou, pelo menos, o medo de a pressentir através do misto de carnalidade e abstração que um actor pode dar a ver.