sexta-feira, novembro 15, 2024

A morte quotidiana do pudor

Carol (Todd Haynes, 2015): Cate Blanchett e Rooney Mara

No espaço público, há quem fale ao telemóvel como se estivesse no recato de sua casa: a solidão já não é o que era — este texto foi publicado no Diário de Notícias (13 outubro).

Cena do quotidiano nº 1: num autocarro cheio, um passageiro marca um número no telemóvel e começa a falar com alguém que poderá ser um parente próximo; falam de uma pessoa de família limitada por uma saúde precária, situação que coloca problemas em relação à sua assistência diária e também à gestão da sua conta bancária — a conversa dura a totalidade dos 50 minutos da viagem.

Cena do quotidiano nº 2: num comboio, alguém atende uma chamada no telemóvel, encetando um diálogo pormenorizado por causa de um problema suscitado por uma pessoa que trabalha numa escola; parece haver um enorme mal-estar gerado pelo não cumprimento das regras hierárquicas — a conversa começa algures no meio do país e dura mais de uma hora, até à entrada na estação onde termina a viagem.

Cena do quotidiano nº 3: numa carruagem do metro, ouve-se um telemóvel que é atendido por uma voz ansiosa, em tom algo agastado, perguntando de imediato se a encomenda já foi entregue; segue-se uma altercação que faz supor que, do outro lado, está alguém que não consegue explicar o que aconteceu — o passageiro sai meia dúzia de estações mais à frente, sem interromper o telefonema, continuando a dialogar com a mesma energia.

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Que fazer com estes sons que habitam o nosso quotidiano? Não estou a colocar uma questão banalmente pessoal, quanto mais não seja porque, como é fácil perceber, estive longe de ser o único a escutar tais conversas — em boa verdade, a ser socialmente coagido a escutá-las na companhia de uma pequena multidão involuntária e relutante.
Também não quero suscitar qualquer especulação pueril sobre o facto de o telemóvel ser uma aquisição cujo misto de utilidade e fascínio não está em causa. Além do mais, todos temos consciência das funções paradoxais que um telemóvel pode desempenhar, seja na futilidade de uma rixa de namorados, seja num momento trágico em que pode estar em jogo a sobrevivência de seres humanos.
A minha pergunta é: onde está o pudor? Que é feito desse equilíbrio de exposição e contenção que aprendemos também no cinema, através de filmes como Esplendor na Relva (Elia Kazan, 1961), Beijos Roubados (François Truffaut, 1968), Olhos Negros (Nikita Mikhalkov, 1987), A Idade da Inocência (Martin Scorsese, 1993) ou Carol (Todd Haynes, 2015)?
Ao formular tal pergunta, sei dos muitos equívocos que posso atrair, em parte semelhantes aos que, ciclicamente, algumas almas sofridas tentam relançar, preocupados com o “sexo e violência” que se vê nos filmes. Num livrinho muito interessante sobre a evolução dos conceitos de pudor, anterior à idade digital em que estamos a viver (Histoire de la Pudeur, ed. Olivier Orban, 1986), Jean Claude Bologne lembrava o óbvio: qualquer figuração ou narrativa do pudor existe historicamente determinada. Com serena ironia, refere, por exemplo, que “uma mulher nua no século XVII pode ser mais pudica que uma mulher vestida”. Por isso mesmo, não confundamos o assunto com a miséria jornalística da imprensa “cor-de-rosa”, massacrando o seu público com o inventário dos centímetros de pele nua revelados por uma qualquer vedeta de telenovelas.
Perguntar onde está o pudor é, antes do mais, reconhecer as convulsões que têm abalado o chamado espaço público. A obscenidade do Big Brother televisivo e a estupidez social em rede violentaram as coordenadas — mais do que isso: os valores — da privacidade. No limite, muitas pessoas passaram a ignorar, para não dizer menosprezar, o mínimo de recato em relação à sua vida privada.
Os exemplos de utilização dos telemóveis não passam de uma gota de água num oceano de relações humanas em que o pudor é quotidianamente assassinado em nome de uma indiferença visceral. Indiferença em relação aos outros, sem dúvida, mas também indiferença de cada um em relação às singularidades e enigmas da sua própria identidade. Na sua dimensão mais perturbante, são histórias de uma terrível solidão: aquela que não reconhece a solidão do outro.