A Rede Social (2010) ou as ilusões do paraíso virtual |
A saga de Elon Musk no Twitter está para lá do pitoresco: é urgente discutir o próprio conceito de “rede social” — este texto foi publicado no Diário de Notícias (20 novembro).
As convulsões que Elon Musk trouxe ao Twitter constituem um fenómeno dramático. Como se tornou claro através da multiplicidade de notícias e análises que a situação tem suscitado, esta é uma saga que envolve questões muito complexas, desde a vida de uma companhia realmente global até aos valores éticos inerentes a qualquer forma de comunicação.
Estamos perante atribulações que, directa ou indirectamente, afectam pessoas em todos os recantos da Terra. Segundo dados recentes, o Twitter é usado todos os dias por 237 milhões de pessoas. Isto sem esquecer que a respectiva aquisição por Musk foi consumada através de 44 mil milhões de dólares (cerca de 55 vezes o orçamento da Cultura em Portugal).
Na sua clássica frieza, os números são a ilustração eloquente de uma verdade rudimentar das (chamadas) redes sociais — essa verdade foi exposta há mais de uma década nesse filme genial que é A Rede Social (2010), de David Fincher, com argumento de Aaron Sorkin (a partir do livro The Accidental Billionaires, de Ben Mezrich, publicado em 2009 pela editora Doubleday). A saber: as (ditas) redes sociais transfiguraram toda a cultura económica do planeta, consolidando novas formas de negócio e acumulação de lucros.
Daí a abordar as vidas de Mark Zuckerberg e seus pares como quem inventaria “santos” e “demónios” vai um passo que importa não favorecer. Assim, não me estou a colocar fora de tudo isto, até porque, se não consigo sequer imaginar-me a participar na agitação diária do Facebook, tenho duas contas no Instagram (plataforma que pertence ao Facebook, aliás à companhia Meta, aliás a Zuckerberg).
O que está em jogo começa por ser a própria percepção das “redes” que somos compelidos a chamar “sociais”. Deixámos até de reconhecer que tal classificação funciona como um recalcamento das singularidades (sociais, justamente) de milhares de anos da história da humanidade. Esquecendo que sempre vivemos através de muitas redes — familiares, profissionais, religiosas, etc. —, aceitámos consagrar as comunicações via Internet como as únicas “redes” a que damos o nome de “sociais”.
Um dos fenómenos mais perturbantes desta conjuntura é o facto de algumas formas de jornalismo terem adoptado a referência às (tais) redes sociais como uma espécie de oráculo que existe num limbo sem dramas nem contradições, porventura sem pessoas. Cada vez que uma notícia nasce daquilo que “dizem as redes sociais”, desaparecemos numa comunidade pobremente virtual, consumindo uma generalização vertiginosa feita de desreponsabilização individual e colectiva.
O que está em jogo não é a proverbial questão da comunicação. Porquê proverbial? Porque, de facto, comunicamos através de infinitos canais, incluindo Fabebook, Instagram, Twitter, etc. Porque não? O que está em jogo é o modo como fomos permitindo que o novo conceito de “social” ocupasse todas as nossas formas de vida, a ponto de minimizarmos a riqueza e a complexidade dos laços humanos. Julgar que somos “amigos” de um respeitável cidadão que vive no outro hemisfério apenas porque com ele trocámos alguns polegares ao alto corresponde a uma automática desvalorização, e consequente esvaziamento, de qualquer relação (humana, justamente).
Daí a escassez de pensamento com que estamos a lidar com o “apocalipse now” da plataforma Twitter. Por um lado, a confusão gerada por Elon Musk — envolvendo um trágico vazio de ideias e o afastamento, ora compulsivo, ora voluntário, de muitos trabalhadores do Twitter — configura uma incrível derrocada empresarial; no dia 18 de novembro, na CNN, numa intervenção de rara concisão analítica (disponível no YouTube), Oliver Darcy utilizava mesmo a expressão “caos total”. Por outro lado, torna-se difícil compreender que tal cenário não conduza, pelo menos, a alguma reflexão sobre outra derrocada. A saber: a do próprio conceito original de “rede social”.
Ainda que a acção de Elon Musk pareça enraizar-se num liberalismo, no mínimo, demagógico, a redução de tudo isto às suas “excentricidades” apenas reforça uma visão pitoresca da comunicação, infelizmente frequente no espaço (dito) mediático. Acontece que, como se prova, o comportamento de um homem pode perverter, de um instante para o outro, o mito fundador da própria “rede social” que passou a simbolizar.
Que mito é esse? A noção, algo cândida, por vezes apenas ridícula, segundo a qual o “social” da Internet existiria à margem das convulsões do mundo, casto, inerte, numa virgindade ontológica sem equivalente: vogávamos num infinito paraíso de comunicação, aberto, transparente e redentor, numa harmonia global alheia a todas os sobressaltos existenciais com que, ao longo dos séculos, fomos enganados por narradores medíocres como William Shakespeare, Marcel Proust ou Ingmar Bergman.
Subitamente, no outono triste de 2022, a nossa muito humana fragilidade leva-nos a pressentir que a criação de genuínos laços sociais talvez exija um pouco mais do que mensagens com um máximo de 280 caracteres. E vemo-nos confrontados com aquilo que quisemos recalcar: qualquer forma de comunicação começa, afinal, no reconhecimento da solidão de cada um de nós.