Joel Edgerton, O Mestre Jardineiro: "A jardinagem é a manipulação do mundo natural" |
Nos filmes de Paul Schrader, o herói (ou anti-herói) é sempre alguém que procura alguma forma de redenção. No caso de O Mestre Jardineiro, Joel Edgerton interpreta um homem que pratica a jardinagem como “uma crença no futuro” — este texto foi publicado no Diário de Notícias (15 novembro).
Ao descobrirmos a mais recente realização de Paul Schrader, O Mestre Jardineiro, talvez seja inevitável evocar e, num certo sentido, invocar outras referências da sua obra. A começar, claro, pelo ciclo que este filme encerra, uma trilogia que o próprio Schrader não terá programado, mas que acabou por reconhecer como um modo pertinente de descrição: primeiro, surgiu No Coração da Escuridão (2017), com Ethan Hawke a interpretar o sacerdote de uma pequena congregação novaiorquina, à deriva no meio das atribulações do seu rebanho; depois, Oscar Isaac protagonizou The Card Counter: O Jogador (2021), cuja agilidade nos jogos de cartas coexiste com os fantasmas do seu passado militar; agora, Joel Edgerton assume a personagem de um jardineiro profissional que arrasta os estigmas de uma vida marcada pela ideologia da supremacia branca.
O que liga estas personagens é uma dimensão transcendental que o próprio Schrader reconhece estar ligada à sua educação religiosa e à sua formação teológica — será também inevitável repetirmos que ele é autor de um clássico da literatura cinematográfica, O Estilo Transcendental no Cinema - Ozu, Bresson, Dreyer (disponível em edição portuguesa: Edições 70, 2023). Se quisermos sistematizar essa componente, diremos que no centro de cada um destes filmes encontramos uma personagem que, na sua solidão primordial, formula, de forma angustiada, a possibilidade de encontrar alguma redenção. Como ele gosta de dizer, são dramas de um homem só num quarto (“man in the room dramas”).
E há um paradoxo a ter em conta que, como é óbvio, marca também os filmes de Martin Scorsese em que Schrader trabalhou como argumentista — com destaque para Taxi Driver (1976) e A Última Tentação de Cristo (1988). Nasce esse paradoxo da demanda em que está enredado cada um dos protagonistas: a possível redenção da alma expõe-se — aliás, filma-se — através de uma inusitada intensificação da presença material dos corpos.
No caso de Narvel Roth, a personagem de Edgerton em O Mestre Jardineiro, esse factor paradoxal é tanto mais perturbante quanto o passado racista da personagem está, literalmente, inscrito no seu corpo. Podemos mesmo dizer que as suas tatuagens são uma forma de escrita que, de uma maneira ou de outra, ele vai dar a ler às duas mulheres que pontuam o seu destino: Norma (Sigourney Weaver), a dona da propriedade em que trabalha, e Maya (Quintessa Swindell), a sobrinha de Norma que Narvel está encarregado de iniciar nos segredos da jardinagem.
Logo na cena inicial, vemos Narvel sentado a uma mesa, a escrever (um homem só no seu quarto…), inventariando vários modelos de arranjo dos jardins e estabelecendo a sua própria utopia: “A jardinagem é uma crença no futuro, uma crença de que as coisas acontecerão de acordo com o que foi planeado e que a mudança acontecerá no tempo devido.” Muito mais tarde, ouviremos dizê-lo que “a jardinagem é a manipulação do mundo natural”. Ou ainda: “uma criação de ordem onde a ordem é apropriada”.
Schrader reafirma-se, assim, como o último dos cineastas religiosos. Não no sentido simplista de professar uma religião, mesmo se ele é o primeiro a reconhecer que as suas raízes calvinistas marcam toda a sua existência (afinal de contas, como ele já disse, até cerca dos 18 anos não tinha autorização para ver filmes). Antes como detentor de uma visão em que, mesmo nas convulsões mais violentas das suas histórias, há uma parte de sagrado que persiste, algures, no labirinto do mundo — uma ordem assombrada pela sua desordem.