Michael Fassbender em O Assassino: vivendo um "presente imóvel ou de eternidade" |
Com o seu novo filme, O Assassino, David Fincher redescobre a montanha mágica do cinema — este texto foi publicado no Diário de Notícias (29 outubro).
Hans Castorp, personagem central de A Montanha Mágica, o romance do alemão Thomas Mann à beira de completar um século — a edição original é de novembro de 1924 —, experimenta o esplendor contraditório da natureza, outrora redentora, agora potencialmente trágica, como se fosse o derradeiro ser humano. Por uma coincidência impossível de racionalizar, lembremos que no mesmo ano, também na Alemanha, F. W. Murnau retratava a agonia de um velho porteiro de hotel, interpretado por Emil Jannings, num filme com um título, por assim dizer, paralelo ao romance de Mann: O Último dos Homens.
Para recordarmos a odisseia do seu olhar, citemos com alguma demora os sobressaltos da sua aventura física e mental (recorro à tradução de Herbert Caro, editada pelos Livros do Brasil): “Quando Hans Castorp parava, a fim de não se ouvir a si próprio, o silêncio era absoluto e perfeito, e o menor vestígio de som era como que abafado, um silêncio ignoto, jamais sentido, que não existia em nenhum outro lugar. Nenhuma brisa, por mais leve que fosse, roçava as copas das árvores; não se ouvia nenhum sussurro, nenhum pio de pássaro. Era o silêncio primitivo, aquele que Hans Castorp contemplava ao deter-se assim, apoiado no bastão, com a cabeça inclinada para um dos ombros e a boca entreaberta. E suave, incessantemente, a neve continuava a cair, a cair tranquilamente, sem um ruído.”
A figura central do novo filme de David Fincher, O Assassino (primeiro nas salas, a partir de 10 de novembro na Netflix), é um herdeiro paradoxal, porventura perverso, não exactamente de Castorp, mas desse misto de observação e mágoa em que Mann o envolve. Nos cenários da “antiga” natureza ou na nossa selva urbana, ambos vivem a mesma dificuldade de pertencer a um mundo que se desagrega — aliás, um mundo que alienou a crença na sua própria lei.
A imersão de Castorp nas maravilhas da natureza tem mesmo algo de luto silencioso por esse mundo que está a morrer, esvaziando o lugar clássico do ser humano. As medidas do tempo deixaram de ser acolhedoras, uma vez que “Hans Castorp já não sabia distinguir o “ainda” e o “de novo”, de cuja mistura e confusão resulta o “sempre” e o “nunca”, situados fora do tempo.”
Para o assassino de Fincher, interpretado pelo genial Michael Fassbender, o tempo é uma máscara impossível de decifrar. Como? Rasurando o passado, dispensando qualquer imaginação do futuro: tudo é vivido, percebido e habitado como um presente absoluto. Esse presente cristaliza no tempo de execução do próprio crime. A longa espera do alvo humano que abre o filme tem qualquer coisa desse tempo em que, sob o signo da doença, vive Hans Castorp. Como dizê-lo? Mann descreve-o como um “presente imóvel ou de eternidade.”
Observem-se as imagens recorrentes do relógio usado por Fassbender, não tanto para medir o tempo exterior, mas sim os seus ritmos interiores, tudo aquilo que faz dele um humano que descolou da própria humanidade, vivendo como uma entidade sempre em movimento no espaço, mas congelada no tempo. E lembremos o relógio de Hans Castorp: “A minúscula agulha saltitava pelo seu caminho, sem se importar com os números que alcançava, percorria, ultrapassava, ultrapassava muito, aproximava-se e alcançava de novo. Era insensível aos objectivos, às divisões e aos marcos. Deveria demorar-se por um instante no sessenta ou pelo menos assinalar de qualquer maneira que alguma coisa findara ali.”
Há uma noção de destino que se desagrega quando “o passado é idêntico ao presente e ao futuro.” As caminhadas de Hans Castorp na natureza atraem um niilismo que, no plano simbólico, não é estranho ao gelo existencial que o assassino de Fincher também experimenta e, ao experimentá-lo, partilha connosco. Esta frase de Mann poderia pertencer ao obsessivo monólogo de Fassbender: “Na imensa monotonia do espaço afoga-se o tempo, o movimento de um ponto para outro deixa de ser movimento, não existe tempo.”
O Assassino é esse filme em que as medidas do tempo, porque interiores, despidas de qualquer “mensagem” ecuménica, se afogam na ambígua sedução das imagens e na vibração ritualizada da música de Trent Reznor e Atticus Ross. Não é, ironicamente, e ao contrário de Oppenheimer, de Christopher Nolan, um cinema que reivindique a grandeza da sala clássica, o que não o impede de se demarcar do mercantilismo narrativo que alagou as plataformas de “streaming”. Com a agilidade de muitos telediscos (área em que Fincher se distinguiu no começo da carreira), deparamos com um ecrã que não “reproduz” o que quer que seja, antes fabrica um mundo novo, colado ao mundo a que chamamos “real”: o olhar do atirador e a disponibilidade incauta do nosso olhar de espectadores partilham a mesma energia primitiva. A saber: o desejo de ver, insaciável, pecado primordial da arte cinematográfica.
O Assassino nasce da ética ancestral do espectáculo em que recusamos a ideia segundo a qual um filme existe para expor “temas” do nosso mundo — o mundo evolui de forma selvagem, não cabe nos “temas” em que tentamos aprisioná-lo. Fincher actualiza, assim, as lições de Alfred Hitchcock, colocando no centro dos acontecimentos o desejo ambíguo que faz da personagem um espectador dentro do filme, transfigurando o espectador em personagem que poderia entrar no filme. Raras vezes o cinema sabe aceder a esse desencanto feliz que o fez nascer: personagem e espectador partilham as histórias de uma só solidão.
>>> Música do genérico de O Assassino (Trent Reznor & Atticus Ross).