Através de Crimes do Futuro, reencontramos o fascínio e a inquietação do cinema de David Cronenberg. O filme chegou às salas poucos dias depois de o cineasta canadiano o ter apresentado no LEFFEST — esta entrevista foi publicada no Diário de Notícias (21 novembro), com o título 'A pandemia e a Netflix modificaram a paisagem do cinema'.
Cerca de oito anos antes de Crimes do Futuro, publicou Consumed, o seu primeiro romance em que corpo e Internet são questões centrais. Terá sido também um passo intermédio para chegar a este novo filme?
Sim, creio que sim. Na verdade, pensei que poderia não voltar a fazer filmes.
Podemos saber porquê?
Escrever um romance é uma experiência muito solitária, o que nem sempre é uma coisa boa, mas é muito menos “Sturm und Drang”, se assim me posso exprimir... Isto porque um filme envolve centenas de pessoas e não tinha a certeza se queria voltar a isso. Fazer o filme continuava a ser agradável, mas montar o projecto, obter financiamento, discutir o argumento, escolher os actores... comecei a pensar que eram coisas que não queria voltar a fazer. Não que eu considerasse que a minha vida criativa tinha chegado ao fim, mas talvez preferisse escrever outro romance. Até que o Robert Lantos me sugeriu que voltasse a ler o argumento de Painkillers. Não sei explicar de outra maneira. Primeiro, não foi nenhuma postura filosófica, apenas a sensação de que talvez não precisasse de fazer mais filmes... Depois, enfim, deu-me prazer, foi divertido e agora quero fazer mais.
E como foi dirigir Viggo Mortensen, Léa Seydoux ou Kristen Stewart? Escusado será dizer que não seria possível pedir-lhes que interpretassem Crimes do Futuro como se fosse a sua vida de todos os dias...
Não lhes disse isso [riso]! Gostaram do argumento, mas para um actor não é necessariamente todo o argumento que os mobiliza, mas a personagem que vão representar, qualquer coisa de excitante e revelador que a personagem lhes traz. Por isso, não precisámos de ter uma conversa de duas horas em que eu lhes explicasse a filosofia por trás do filme — não funciona assim.
A sua anterior longa-metragem, Mapas para as Estrelas, surgiu em 2014, mas pelo meio há curta que se chama A Morte de David Cronenberg. Nela podemos vê-lo prostrado junto a uma cama onde está o seu próprio cadáver. Apesar disso, e também apesar do título, talvez se possa dizer que é quase uma pequena comédia...
Será uma comédia ou uma tragédia, não tenho a certeza [riso]! Quem tiver uma visão mais pesada do assunto, dirá que se trata de Cronenberg a confrontar-se com a realidade da sua própria morte, o que até pode fazer sentido. A verdade é que nasceu do facto de eu ter participado como actor numa série sobre “serial killers”, intitulada Slasher. A minha personagem morre e, por isso, construiram aquele cadáver, modelado a partir do meu corpo, que acaba numa câmara frigorífica. Como é óbvio, eu não necessitaria de estar na rodagem daquela cena, já que o meu cadáver estava a representar a minha personagem... Mas quando mo mostraram, tive uma reacção muito intensa, senti uma estranha afinidade, afeição e ternura — daí a ideia de me filmar com o meu cadáver. Reconheço esse factor cómico, mas também é verdade que há pessoas que ficam muito perturbadas.