quinta-feira, dezembro 08, 2022

DAVID CRONENBERG:
"Não há maneira de escapar ao corpo" (1/3)

[FOTO: Paulo Alexandrino]

Através de Crimes do Futuro, reencontramos o fascínio e a inquietação do cinema de David Cronenberg. O filme chegou às salas poucos dias depois de o cineasta canadiano o ter apresentado no LEFFEST — esta entrevista foi publicada no Diário de Notícias (21 novembro), com o título 'A pandemia e a Netflix modificaram a paisagem do cinema'.

David Cronenberg esteve no LEFFEST para acompanhar a apresentação do seu filme mais recente, Crimes do Futuro. Revelado no passado mês de maio, no Festival de Cannes, trata-se de um acontecimento tanto mais empolgante quanto o cineasta canadiano reconhece que, depois de Mapas para as Estrelas (2014), encarou seriamente a hipótese de não voltar a filmar. Na raiz do projecto está a ideia “futurista” segundo a qual os corpos podem começar a gerar órgãos “selvagens”, sem função aparente na dinâmica da própria existência humana. De tal modo que as performances do artista interpretado por Viggo Mortensen têm como matéria principal a contemplação desses órgãos. Ou como diz a personagem de Kristen Stewart: “A cirurgia é o novo sexo”. Para o cineasta que encenou muitas e surpreendentes transformações da figura humana — de A Mosca (1986) a eXistenZ (1999), passando por Irmãos Inseparáveis (1988) ou O Festim Nu (1991), este inspirado em William S. Burroughs —, as histórias do presente, tanto quanto as fábulas do futuro, envolvem sempre as relações entre corpos e tecnologia.

No dossier de imprensa de Crimes do Futuro encontramos uma curiosa afirmação de Viggo Mortensen. Diz ele que o filme “poderá ser a história mais autobiográfica de Cronenberg” — como encara esta afirmação?
Creio que ele não está a dizer que o filme seja “autobiográfico” no sentido de estar a contar histórias da minha vida, a minha infância ou o meu dia a dia em Toronto. Obviamente, não é isso. Mas o facto de ele próprio interpretar a personagem de um artista que, literalmente, oferece ao espectador as suas entranhas leva-me a supor que me encara como um artista que dá sempre tudo, absolutamente tudo, sem censura, sem se preocupar com qualquer tipo de política, seja política de género ou política social.

Sente-se assim? Como alguém que dá tudo dessa maneira?
Não exactamente, parece-me que ele estava a tentar ser provocador.

Porque decidiu repetir o título de um filme que tinha realizado em 1970?
Na verdade, foi algo de muito simples. O título original era Painkillers [“Analgésicos”], escrevi-o em 1998. O certo é que, depois disso, houve pelo menos uns quatro filmes Painkillers e mais três séries de televisão com o mesmo título... Robert Lantos, o meu produtor, chamou-me a atenção para tal vulgarização, dizendo-me que iríamos precisar de outro título. Ele próprio sugeriu que “roubássemos” o título ao meu velho filme. Fazia sentido. Esse filme era, realmente, sobre “crimes do futuro”, mas as coincidências ficam por aí: o novo filme não é um “remake” nem uma adaptação.

Ainda assim, talvez possamos fazer um contraponto, dizendo que o primeiro Crimes do Futuro tinha a ver com dermatologia e cosmética, o exterior do corpo, a pele, enquanto agora se trata de ir mesmo ao interior do corpo.
Há alguma verdade nisso, mas alguém me recordou algo que tinha mais ou menos esquecido. De facto, no primeiro filme há uma cena num laboratório em que um homem está a apresentar órgãos do corpo humano que foram criados sem qualquer função específica...

Será que estamos a perder o conhecimento do nosso corpo? Ou aquilo que está em jogo é algum tipo de libertação do próprio corpo?
Não, não creio que alguma vez possamos libertar-nos do nosso corpo. Nem sequer penso que isso pudesse ser uma coisa boa. Provavelmente, já toda a gente me ouviu dizer isto em algum contexto, mas como um existencialista, ou alguém que por vezes se vê como um existencialista, acredito que o corpo é aquilo que somos: é uma coisa fantástica, mas é também a única coisa. Ou seja: não há vida depois da morte, não há vida antes da morte — é algo difícil de aceitar, mas é essa a realidade, a realidade existencial. Ou ainda: não há maneira de escapar ao corpo.

Podemos, então, perguntar: que corpo?
Podemos, de facto, discutir como é que estamos a transformar o corpo. Um animal, na floresta, não controla a sua evolução, mas nós assumimos o controle da nossa própria evolução, talvez sem estarmos muito conscientes do que estávamos a fazer. A começar pelo facto de não aceitarmos que, quando o sol se põe, tenhamos escuridão: temos luzes, temos calor... E estamos a pôr muitos químicos no interior dos nossos corpos, seja porque os recebemos da atmosfera, seja de forma deliberada, como medicina — incluindo nas crianças. Daí as respostas evolutivas por parte do corpo, tentando acomodar tudo isso. Julgo que esse é, de certo modo, o tema de Crimes do Futuro. Seja como for, sem querer ser tão extremado como aquilo que o filme conta, creio que os nossos corpos, os seus órgãos, neurónios, etc., não são nem de longe nem de perto como os corpos gregos, há 3000 anos. Nem sequer como há 200 anos, desde a Revolução Industrial: os nossos corpos mudaram em resposta ao que fizemos ao ambiente, primeiro com as cidades, depois no próprio planeta. Seria interessante que pudéssemos dizer que estamos, agora, conscientes do facto de sermos responsáveis pela nossa própria evolução. E perguntássemos: o que queremos que, realmente, nos aconteça? Será que isso pode acontecer sem ser demasiado perigoso ou catastrófico?