Viggo Mortensen e Léa Seydoux sob o olhar de David Cronenberg: um futuro na fronteira do humano |
O novo filme de David Cronenberg, Crimes of the Future, ficará como um dos títulos fundamentais de Cannes/2022: alheio às convenções do “cinema de terror”, o cineasta canadiano encena um tempo futuro em que os corpos humanos se estão a transformar a partir do seu interior — estes parágrafos pertencem a um texto publicado no Diário de Notícias (26 maio).
O canadiano David Cronenberg está de volta à competição do Festival de Cannes com um filme tão inclassificável quanto fascinante: seja qual for o palmarés, 2022 ficará como o ano de Crimes of the Future, um daqueles objectos que nos faz sentir que o gosto e a imaginação do cinema ainda não foram devorados pelos valores mercantis que contaminam muitas formas de produção e consumo.
Tudo se passa num futuro mais ou menos próximo, encenado em cenários de gigantescas construções degradadas (a rodagem decorreu na Grécia, na zona de Atenas). Dir-se-ia um futuro resultante de ruínas de meados do século XX, o que não deixa de envolver uma desconcertante “coincidência”: a solidão granítica dos ambientes faz lembrar a segunda longa-metragem de Cronenberg, lançada em 1970 e também intitulada Crimes of the Future; nela se narra uma “peste” que atinge as mulheres que usaram determinados produtos de cosmética… A acção situa-se em 1997.
Seja como for, não estamos perante um “remake”. As personagens do novo Crimes of the Future vivem assombradas por um inusitado fenómeno, aparentemente gerado pelas componentes sintéticas das novas formas de vida. Assim, sem qualquer interferência humana, alguns corpos passaram a comportar-se como máquinas geradoras de… novos órgãos — no seu interior, entenda-se.
Por um lado, isso leva um artista como Saul Tenser (Viggo Mortensen) a montar espectáculos marginais com a sua companheira Caprice (Léa Seydoux), performances que são verdadeiras cirurgias de amostragem daquilo que está a acontecer dentro do seu corpo; por outro lado, as autoridades tentam registar e controlar o fenómeno através de burocratas como Timlin (Kristen Stewart), figura emblemática de um novo departamento oficial: o Registo Nacional de Órgãos.
Dito isto, talvez seja oportuno acrescentar que, uma vez mais, a inscrição do trabalho de Cronenberg nas rotinas do “cinema de terror” não faz qualquer sentido. Para o autor de filmes como A Mosca (1986), Irmãos Inseparáveis (1988) ou eXistenZ (1999), o que mais conta é essa noção, de uma só vez filosófica e poética, de que o corpo, sendo o instrumento visível da nossa humanidade, existe também como motor (orgânico, é caso para dizer) daquilo que abala as certezas do factor humano. Em Irmãos Inseparáveis, sobre dois gémeos ginecologistas, há uma cena em que Jeremy Irons diz que devia haver também concursos dedicados ao interior dos corpos e à beleza dos seus órgãos — pois bem, está feito!