segunda-feira, outubro 17, 2022

O amor da escrita
segundo Annie Ernaux [2/2]

Vencedora do Nobel da Literatura, Annie Ernaux escreve sobre homens e mulheres tocados pelo movimento das paixões (simples, como ela diz no título de um dos seus livros), aliado à sensação de que as imagens não são suficientes para dar conta do que vivemos: para ela é preciso escrever, continuar a escrever — este texto foi publicado no Diário de Notícias (7 outubro).

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Ao longo de cinco décadas de escrita — o seu primeiro romance, Les Armoires Vides, surgiu em 1974 —, Ernaux nunca deixou de viajar nesse ziguezague entre o que é vivido no interior das fronteiras da mais radical intimidade e o que acontece no espaço “social”. Talvez, para lá de todas as diferenças, aproximando-a um pouco desse gesto que levou outra escritora francesa, Marguerite Duras, a usar a expressão “vida material” no título de um livro de 1987 — afinal de contas, Ernaux escreveu um Journal du Dehors (1993) e ainda La Vie Extérieure (2000), ambos remetendo para o que se passa “lá fora”. Seja como for, o valor da intimidade não tem que ver com uma Annie Ernaux eremita. Lembremos, por exemplo, que ela foi uma das signatárias do chamado “Manifesto dos 58”, em finais de novembro de 2015, reagindo contra o facto de, na sequência dos atentados terroristas em Paris (no dia 13 do mesmo mês), as autoridades municipais, invocando questões de segurança, terem tentado interditar as manifestações públicas.
O nome da escritora está também (indirectamente) ligado ao chamado “Manifesto das 343”, documento fulcral na história social e política da França na segunda metade do século XX. Assim, a 5 de abril de 1971, a revista Le Nouvel Observateur publicou um texto assinado por 343 mulheres, apelando à legalização do aborto em França, lembrando que havia “um milhão de mulheres a praticar anualmente o aborto” e explicitando: “Declaro que sou uma delas”. Expunham-se, assim, à possibilidade de serem indiciadas legalmente e a penas que podiam ir até à prisão — entre as signatárias estavam Simone de Beauvoir (redactora do manifesto), Catherine Deneuve, Marguerite Duras, Gisèle Halimi e Jeanne Moreau.
Ernaux tinha feito um aborto clandestino em 1964, mas não assinou o documento, vindo a relatar a experiência vivida num livro perturbante, O Acontecimento, lançado no ano 2000, depois adaptado ao cinema por Audrey Diwan (filme admirável, vencedor do Festival de Veneza de 2021). Em 2014, numa entrevista ao jornal L’Humanité, recordou esse contexto: “Em 1971, estava fora de questão [assinar o manifesto]. Era impensável. Eu não era nada. Para mais, estava casada com um executivo e declarar publicamente que tinha abortado teria o efeito de uma bomba.” Na mesma entrevista, a escritora refere que o seu livro foi recebido pela “lei do silêncio”, citando mesmo um jornalista que lhe disse que não quis abordá-lo publicamente porque a sua leitura lhe “deu náuseas”.
Uma Paixão Simples (1991) deu origem a outro filme invulgar, realizado por Danielle Arbid em 2020. No seu centro dramático encontramos, ainda e sempre, o amor da escrita obcecado pelo modo como dois seres se aproximam e tocam (literal ou simbolicamente). Aí ela escreve (cito a tradução portuguesa de Tereza Coelho): “Quando eu era criança, para mim o luxo eram casacos de pele, vestidos compridos e vivendas à beira-mar. Mais tarde, pensei que fosse ter uma vida de intelectual. Agora parece-me também que é poder viver uma paixão por um homem ou por uma mulher.”