segunda-feira, outubro 10, 2022

O amor da escrita
segundo Annie Ernaux [1/2]

Annie Ernaux, com os filhos,
no cartaz do filme apresentado
em Cannes/2022

Vencedora do Nobel da Literatura, Annie Ernaux escreve sobre homens e mulheres tocados pelo movimento das paixões (simples, como ela diz no título de um dos seus livros), aliado à sensação de que as imagens não são suficientes para dar conta do que vivemos: para ela é preciso escrever, continuar a escrever — este texto foi publicado no Diário de Notícias (7 outubro).

Este ano, pouco antes do Festival de Cannes (17-28 maio), a Gallimard lançou Le Jeune Homme, 17º livro da editora com assinatura de Annie Ernaux. Havia uma sugestiva rima cinematográfica: a Quinzena dos Realizadores iria revelar Les Années Super 8, com assinatura da escritora e do seu filho David Ernaux-Briot, filme de memórias familiares (em película Super 8) que pode ser descrito como uma derivação do livro auto-biográfico Os Anos, lançado em 2008, evocando um período situado entre 1941 e 2006 (recorde-se que a autora nasceu em 1940).
Mesmo não conhecendo toda a vasta obra de Ernaux (é o meu caso), os livros citados ajudam-nos a abrir caminho para um tema, de uma só vez social e fantasmático, que assombra a sua escrita. Será um misto de desencanto e perseverança, exaltando o direito de cada um de nós contar — e, num certo sentido, resgatar — as convulsões da sua própria história. Aliás, Os Anos abre com uma esclarecedora citação de José Ortega Y Gasset: “A única história que temos é a nossa e ela não nos pertence.” Logo na primeira frase, deparamos com um estranho sinal de luto: “Todas as imagens irão desaparecer.”
Como viver tudo isto? A resposta da mulher agora consagrada com o Nobel é inequívoca: escrevendo! Em Le Jeune Homme, evocando, na primeira pessoa, uma relação com um homem trinta anos mais novo que ela, está desde o começo exposto um cristalino programa pessoal, de uma só vez artístico e político: “Se não as escrevo, as coisas não seguiram até ao seu fim, foram apenas vividas.”
Como enfrentar, então, essa “insuficiência” do acto de viver? Escrevendo, escrevendo sempre. Mas então escrever já não é viver? De alguma maneira, é arriscar uma intensidade que nos faz sair das evidências do acto de viver, para abraçar aquilo que, mesmo através da certeza nua da morte, se pode partilhar ainda como exaltação da vida. O seu livro de notas auto-biográficas, editado em 2011, relançado também este ano (com algumas páginas inéditas de Mémoire de Fille, de 2016) tem como título L’Atelier Noire (à letra: O Atelier Negro). Ou como ela escreve em Os Anos, estabelecendo um genuíno princípio de trabalho, trata-se de “salvar qualquer coisa do tempo onde não voltaremos a estar.”