sexta-feira, outubro 21, 2022

Marilyn Monroe nunca existiu

Ana de Armas no papel de Marilyn Monroe, aliás, Norma Jeane

Entre memória e esquecimento, o filme Blonde é um espelho fascinante da morte adiada do próprio cinema — este texto foi publicado no Diário de Notícias (9 outubro).

Não sabemos o que Jean-Luc Godard poderia ter pensado sobre o filme Blonde, de Andrew Dominik, baseado no romance homónimo de Joyce Carol Oates sobre Marilyn Monroe, disponível na Netflix. Convenhamos que o seu militante cepticismo em relação ao consumo caseiro de cinema o levaria, no mínimo, a manifestar alguma (também militante) indiferença. Ou então a reconhecer a contradição que ele próprio foi alimentando, trabalhando regularmente, desde os anos de ressaca de Maio de 68, em produções televisivas — sem esquecer que, agora, o “streaming” tem sido uma via privilegiada para descobrirmos ou revermos os filmes de Godard.
A esse propósito, lembremos apenas que a Netflix, entidade que produziu e difunde Blonde, apresenta no seu catálogo algumas preciosidades da filmografia “godardiana”. Entre elas está o raríssimo Détéctive (1985), com Johnny Hallyday, disponível com o título Mafia em Paris, devidamente (des)acompanhado pela banalidade informativa daquela plataforma de “streaming”.
Godard faleceu no dia 13 de setembro. Blonde chegou à Netflix quinze dias mais tarde. Essa “proximidade” é irrelevante, mas suscita algumas ideias que vale a pena evocar. Assim, algures na década de 1980, quando os mecanismos tradicionais de difusão do cinema sofreram renovados abalados comerciais (desde logo, através do novo papel das televisões), Godard foi questionado sobre o modo como encarava o facto de os seus filmes poderem ser vistos numa sala escura ou num ecrã caseiro. O autor de História(s) do Cinema (1989-1999) retorquiu com uma distinção que, do ponto de vista social e simbólico, não se alterou: dizia ele que, apesar de tudo, numa sala havia espectadores concretos que tinham tomado uma decisão no sentido de verem determinado filme; na televisão, pelo contrário, “não sei para onde os filmes vão”.
Objecto singular e fascinante, Blonde participa dessa estranheza que faz com que os filmes se percam, ou possam perder, na actual “generalização” que rege a sua difusão (realmente planetária). É verdade que Blonde é um dos sucessos do momento na Netflix, continuando a ocupar o respectivo Top 10 (em terceiro lugar, depois de se ter estreado na liderança). Mas não é menos verdade que isso está longe de lhe garantir a condição de fenómeno social que “todos” andamos a comentar ou discutir, e não apenas a trocar milhões de mensagens digitais a dizer que é “bom” ou “mau”… Como se se confirmasse outra máxima de Godard, expressa em 1987 (numa entrevista à televisão!): “A televisão fabrica esquecimento, o cinema sempre fabricou memórias.”
Fiel à escrita de Joyce Carol Oates, Andrew Dominik apresenta Marilyn como uma personagem convocada pela morte. O romance começa mesmo com a visita da Morte (a maiúscula é da escritora) à solitária Marilyn: “Assim chegou a Morte avançando ao longo do Boulevard em agonizante luz sépia.” O seu processo de aniquilamento passou, afinal, pelo nome falso de “Marilyn Monroe”, quer dizer, pela perda irreparável do nome original, Norma Jeane.
Várias vezes ao longo de Blonde, vemos e ouvimos a protagonista protestar em nome do recalcamento da sua identidade: Marilyn não está “aqui”… mas Norma Jeane vive marcada pela exigência de trazer para o ecrã essa Marilyn que, para ela, não existe. A certa altura, Joyce Carol Oates coloca na sua boca o carácter insustentável de tal contradição: “Porque nós não somos aquilo que nos dizem que somos, se não o disserem. Ou somos?”
O filme vive também dessa tensão irresolúvel entre uma história que avança de modo trágico, mesmo (ou sobretudo) quando nela se convoca um passado que já não pode ser resgatado, e um presente que nenhuma racionalidade parece capaz de organizar. Assim, Blonde envolve o confessionalismo de Norma/Marilyn, ao mesmo tempo que o seu despojamento e vulnerabilidade são sempre superados por um “outro” narrador que, no limite, só pode ser a própria Morte.
Há algo de raro, precioso e profundamente comovente no facto de uma actriz como Ana de Armas, dispensada de satisfazer um banal jogo mimético com a iconografia de Marilyn (que, obviamente, o filme evoca), ser capaz de se expor nessa condição de personagem que existe contra a desagregação a que o seu nome e a sua mitologia a condenam. Joyce Carol Oates anuncia isso mesmo numa das citações com que abre o romance. É de Michael Goldman e pertence a um livro publicado em 1975 (The Actor’s Freedom, ed. The Viking Pressa, Nova Iorque): “A área de representação é um espaço sagrado… onde o actor não pode morrer.”
Estranhos tempos estes em que milhões vêem filmes em casa e quase ninguém fala deles. Como se a possibilidade de refazermos, relançarmos e, num certo sentido, reinventarmos as nossas memórias estivesse a ser vencida, com o nosso beneplácito de espectadores, pelo conformismo televisivo do esquecimento. Perante o nosso torpor, Marilyn Monroe resiste no interior dessa morte impossível de morrer, fazendo de Blonde um também raro e cristalino filme de terror.