sábado, abril 30, 2022

Florence and the Machine
— de Kiev, com amor

A ser lançado no dia 13 de maio, Dance Fever, quinto álbum de estúdio dos Florence and the Machine, tem como cartão de visita uma das mais belas canções políticas dos últimos tempos, devidamente sustentada por um enérgico teledisco assinado pela fotógrafa e realizadora Autumn de Wilde. Assim, em Free, encontramos Florence Welch, no seu próprio papel, com Bill Nighy a interpretar "a sua ansiedade".
O teledisco é "dedicado ao espírito, criatividade e preserverança dos nossos bravos amigos ucranianos" — a rodagem decorreu em Kiev, no dia 18 de novembro de 2021.

sexta-feira, abril 29, 2022

Esquerda(s) / Direita(s)
— pensamentos que chegam de França

[ 29 abril 2022 ]

A. Provavelmente — e este provavelmente arrasta uma multidão de pensamentos por pensar —, não é possível encarar nenhuma conjuntura nacional na Europa democrática sem integrar a dicotomia esquerda/direita. Ou, pelo menos, para não cedermos à facilidade de um esquematismo de equívoco poder redentor, uma dialéctica plural: esquerda(s)/direita(s).

B. Em França, na sequência da reeleição de Emmanuel Macron, e tendo já como horizonte estratégico as próximas eleições legislativas, tal questão está a desembocar (sentimos a urgência de um complexo aqui e agora) numa renovada, sem dúvida repetida, reflexão sobre a possibilidade/impossibilidade de união da(s) esquerda(s) — serão reconciliáveis?, pergunta o Libération. Ou como se escreve na primeira página do jornal: "Depois do falhanço da união na presidencial, multiplicam-se as reuniões entre os estados-maiores para tentar unir ecologistas, socialistas e comunistas em torno dos não alinhados [insoumis] tendo em vista as legislativas."

C. É um renovado cenário (que está longe de ser meramente francês) que, como é óbvio, renasce do reconhecimento das lógicas anti-democráticas de alguma(s) forças definidas em função da bandeira da(s) direita(s). Ao mesmo tempo, essa ideia/miragem de uma geometria transparente feita de incontestáveis linhas de demarcação esbarra com um outro tipo de problema que o eleitor anónimo não pode deixar de reconhecer. A saber: que há ou pode haver de comum, ou melhor, de reconciliável entre aqueles que, à excepção das vésperas de alguns actos eleitorais, gastam o seu tempo político & mediático a difamar e denunciar todos os outros que, supostamente, pertencem a uma mesma base político-ideológico e moral que nunca seria afectada pelos acontecimentos concretos da vida material? Ou ainda: as esquerdas estão a fazer história ou a tentar garantir a perenidade mitológica de uma união regularmente desmentida pelos seus actos e discursos?

Que cinema histórico?
— a propósito de
Salgueiro Maia - O Implicado

Salgueiro Maia - O Implicado faz o retrato de uma figura central nos acontecimentos do dia 25 de abril de 1974; infelizmente, o filme não consegue superar os limites de um cinema “ilustrativo”, enraizado numa linguagem académica de televisão — este texto foi publicado no Diário de Notícias (14 abril).

Em 1972, aquando do lançamento do seu penúltimo filme (o assombroso Frenzy, entre nós estreado como Perigo na Noite), Alfred Hitchcock definiu uma fronteira conceptual que rasga o pensamento do cinema em dois territórios estranhos entre si. Questionado sobre a atenção que prestava às críticas aos seus filmes, reconheceu que, na maior parte dos casos, o desiludiam. Porquê? Porque apenas descreviam o “conteúdo” (content), ignorando o “tratamento” (treatment). Hitchcock distinguia, assim, a mera inventariação dos factos narrados da respectiva abordagem através dos meios específicos do cinema: um filme não se define pelos factos que encena ou evoca, mas, justamente, pelo seu trabalho narrativo.
No nosso presente, há um impulso “culturalmente correcto” que normalizou tal simplismo: confundir um filme com os factos coligidos na sua sinopse já não é apenas o estilo de algumas variantes da crítica de cinema; passou a ser também um modelo de organização de muitos filmes. Assim acontece com Salgueiro Maia - O Implicado, de Sérgio Graciano, objecto típico de um cinema “ilustrativo”, enraizado numa linguagem académica de televisão, em que a importância simbólica dos factos evocados é tratada como uma proeza de revelação. A frase promocional reflecte essa ideologia do “desvendamento”: “A história nunca antes contada do herói de abril.”

Que epopeia?

O assunto afigura-se tanto mais delicado quanto Salgueiro Maia - O Implicado é apenas um pormenor no interior de uma dinâmica ideológica que adquiriu um poder imenso na sociedade portuguesa e na forma como partilhamos (ou julgamos partilhar) as convulsões da história colectiva, a começar pelas memórias do dia 25 de abril de 1974.
A encenação “obrigatória” do 25 de abril como epopeia redentora, quase religiosa, acontece quase sempre através de um misto de apagamento e demonização de tudo o que vivemos até ao dia 24 de abril do mesmo ano. Como se a celebração da democracia “obrigasse” a que o fascismo português seja reduzido a uma coleção de anedotas mais ou menos ridículas — será essa uma maneira inteligente de viver e pensar a democracia?
Sintomático é o tratamento em tom de caricatura grosseira de duas personagens de militares que não estavam com o Movimento das Forças Armadas: o pai do colega de Salgueiro Maia a cuja casa vão jantar e o oficial com que o próprio Salgueiro Maia se confronta na rua (interpretados por Miguel Borges e Paulo Calatré, respectivamente). É, no mínimo, bizarro que a lógica ditatorial do Estado Novo — e dos militares ao seu serviço — seja “exposta” através de figuras que apenas existem como patéticas marionetas.
Insisto: a questão excede o filme, o filme apenas a ilustra. E poderá mesmo levar alguns a perguntar se se trata de duvidar da seriedade de quem vem celebrar o triunfo da democracia e, neste caso particular, a importância estratégica e a dignidade humana de uma figura como Salgueiro Maia. Colocar a questão desse modo é, afinal, confirmar o vício descritivo apontado por Hitchcock — como se o “conteúdo” dispensasse qualquer reflexão sobre o “tratamento”.
Que encontramos, então, em Salgueiro Maia - O Implicado? Tão só um conceito teleológico da história: como personagem do filme, Salgueiro Maia é alguém que se limita a agir para ilustrar um destino antecipadamente traçado (pelo imaginário histórico que se quer satisfazer). Cedo se compreende, aliás, que o ziguezague temporal da acção, antes e depois do 25 de abril, entre o público e o privado, não passa de um tique “modernista” sem qualquer motivação dramática ou fundamento dramatúrgico.

Que cinema?

Mas não seria legítimo fazer um filme que apostasse menos na complexidade da história e mais na vocação mitológica dos seus heróis? Claro que sim. Sem esquecer dois aspectos: primeiro, seria necessário sustentar o conceito de heroísmo como algo mais do que uma imitação da iconografia que as repetições televisivas transformaram em imagens de marca (exemplo: as cenas do Largo do Carmo são pueris derivações de tais imagens); segundo, a dimensão mitológica exige um sentido de espectáculo e uma vibração formal que Salgueiro Maia - O Implicado nunca possui (a herança de autores como o americano Cecil B. DeMille ou o francês Sacha Guitry poderá ajudar a separar as águas).
É pena que a boa vontade de um projecto como Salgueiro Maia - O Implicado acabe por desbaratar uma base técnica que, como se prova, superou as limitações que, durante décadas, assombraram a produção de cinema em Portugal. Até porque podemos perceber que, no plano da interpretação, a formatação “novelesca” não destruiu talentos como o protagonista Tomás Alves, José Condessa ou, em particular, Filipa Areosa, intérprete da mulher de Salgueiro Maia, que consegue alguns fogachos de genuína emoção, contrariando a debilidade dramática das suas cenas. É “apenas um filme”, como diria também Hitchcock, mas falta-lhe querer ser mais filme e menos estereótipo.

domingo, abril 24, 2022

The Kills reeditam No Wow

Alison Mosshart e Jamie Hince, isto é, The Kills vão assinalar os 17 anos do seu segundo álbum, No Wow (posto à venda no dia 21 de fevereiro de 2005), com uma especialíssima edição de dois LP, agendada para 3 de junho [Domino] — as remisturas estão a cargo de Tchad Blake.
Cartão de visita é o tema-título em teledisco de Sally Walker-Hudecki, combinando imagens em Super 8 com memórias do teledisco original, de Kenneth Cappello.

sábado, abril 23, 2022

Informação / desinformação [citação]

[New York Times]

>>> Estou convencido de que, neste momento, uma das maiores razões para os crescentes ataques contra a democracia, nos EUA e globalmente, é a mudança que está a acontecer no modo como comunicamos e consumimos informação. As mesmas tecnologias que tornam possível ligarmo-nos, em tempo real, com praticamente qualquer pessoa do mundo, estão a ser cada vez mais usadas para criar realidades alternativas que espalham o fogo da violência étnica, promovem o autoritarismo e espalham teorias da conspiração. O resultado tem sido uma gradual erosão da confiança nos representantes públicos, nas organizações mediáticas e nas instituições políticas que são necessárias para que a democracia funcione.

BARACK OBAMA
21 abril 2022

sexta-feira, abril 22, 2022

Nos 50 anos de Uma Abelha na Chuva

Laura Soveral e João Guedes filmados por Fernando Lopes:
corpos e fantasmas

O filme de Fernando Lopes, baseado no romance de Carlos de Oliveira, remete-nos para um passado que se refaz na visão do presente — este texto foi publicado no Diário de Notícias (10 abril).

Fernando Lopes
Há 50 anos, mais exactamente no dia 13 de abril de 1972, ocorreu a estreia do filme Uma Abelha na Chuva, de Fernando Lopes. Foi no cinema Estúdio, pequena sala do chamado circuito de Arte e Ensaio que integrava o majestoso edifício do cinema Império, uma das maiores salas de Lisboa, a par do Monumental e do Eden.
Meio século passado, a nostalgia não basta. Pode até ser má conselheira. Importa relembrar — e, a meu ver, celebrar — a perturbação artística e política gerada pelo filme de Fernando Lopes, perguntando: que é feito da herança do Cinema Novo português?
Será que a prática e, antes disso, o desejo de novas linguagens — apelando à inteligência dos espectadores e respeitando a complexidade do mundo — persiste na produção e no mercado de 2022? Haverá herdeiros desse desejo que continuam a filmar? E estarão esses herdeiros a saber e conseguir partilhar com os novos espectadores os valores de um cinema que resista à cultura consumista, aos clichés mediáticos e à agressiva formatação de imagens e sons?
As respostas são, de uma só vez, positivas e negativas. Positivas porque não se perdeu o legado de autores como Fernando Lopes (1936-2012), Paulo Rocha (1935-2012) ou Alberto Seixas Santos (1936-2016) — sem esquecer, claro, Manoel de Oliveira (1908-2015), por assim dizer ainda mais novo que o Cinema Novo. Negativas porque os poderes mais fortes, da produção ao marketing, passaram a estar do lado de um outro cinema, tele-dependente, subsidiário da mediocridade “novelesca” que algumas linguagens impuseram como modelo (supostamente) natural.
As interrogações e desafios que Uma Abelha na Chuva transportava não eram, obviamente, exclusivo do trabalho de Fernando Lopes, nem sequer do cinema português. Desde logo, porque o Cinema Novo pontuara de forma decisiva a década de 60, ecoando as convulsões temáticas e estéticas vividas em contextos muito diversos (a começar, claro pela Nova Vaga, em França). Depois, porque Uma Abelha na Chuva era também um reflexo de uma obsessão muito portuguesa, condensada numa pergunta latente: como filmar o que somos e como somos? Como contraponto, podemos recordar, num registo bem diferente, mas igualmente marcante, o filme Perdido por Cem, de António-Pedro Vasconcelos, lançado um ano mais tarde (recentemente editado em DVD pela Academia Portuguesa de Cinema). Curiosamente, por essa altura, Fernando Lopes e António-Pedro Vasconcelos, eram personalidades decisivas no reaparecimento da revista Cinéfilo, o primeiro como director, o segundo como chefe de redacção.
O romance de Carlos de Oliveira em que Uma Abelha na Chuva se baseia, por certo uma das obras-primas da literatura portuguesa do século XX (disponível, por exemplo, numa edição de bolso: “Colecção Miniatura”, Livros do Brasil), talvez se possa resumir como um decisivo momento de ruptura no imaginário neo-realista: mantendo-se ligado ao seu programa simbólico, ao mesmo tempo estilhaçando as matrizes da sua escrita. Logo no primeiro capítulo, os lugares surgem assombrados por um realismo que, de modo irreversível, discute as suas próprias fronteiras: “Havia sobre a vila, ao redor de todo o horizonte, um halo de luz branca que parecia o rebordo duma grande concha escurecendo gradualmente para o centro até se condensar num côncavo alto e tempestuoso.”
A adaptação que sustenta o filme (da responsabilidade do próprio realizador) decorre de um corte com qualquer determinismo naturalista que pudesse contaminar a encenação daquele mundo rural. O par que ocupa o centro da tragédia — Laura Soveral e João Guedes — existe, assim, como uma entidade de perturbante simbolismo, como se a vibração dos corpos os empurrasse para um teatro de fantasmas.
Certamente não por acaso, há uma cena de uma representação teatral do Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco, que abre o filme para uma narrativa de sucessivos assombramentos. Mestre da montagem, Fernando Lopes expunha uma ferida muito portuguesa, de um narcisismo ambíguo, porventura intemporal: a de um destino enredado no seu silêncio. Um pouco como num poema de Carlos de Oliveira publicado em 1977: “Rodar a chave do poema / e fecharmo-nos no seu fulgor / por sobre o vale glaciar. Reler / o frio recordado.”

Mass - Reunião
— os diálogos e os seus silêncios

Evocando um massacre numa escola, Mass-Reunião, escrito e realizado pelo estreante Fran Kranz, é um dos grandes acontecimentos da mais recente produção independente dos EUA — este texto foi publicado no Diário de Notícias (7 abril).

Revelação do ano? Falo de Fran Kranz, nascido em Los Angeles, em 1981: é um daqueles actores que foi construindo uma carreira mais ou menos secundária (e como secundário) na enxurrada de filmes de terror e comédias “juvenis” gerada por alguma produção independente dos EUA. Até que, há pouco mais de um mês (6 de março), o seu filme de estreia como realizador, Mass, foi consagrado nos Independent Spirit Awards com o Prémio Robert Altman — a distinção, atribuída em nome do autor de Nashville (1975) e Short Cuts (1993), consagra o realizador, o elenco e o director de “casting”.
Pois bem, Mass aí está, lançado com o título português Reunião e convém não termos ilusões: está destinado à mesma passagem discreta pelas salas que passou a “castigar” todos os títulos que não encaixem nas rotinas de super-heróis, filmes de animação e pouco mais.
Que o filme tenha recebido uma distinção para o seu elenco, eis o que está longe de ser banal. Estamos, de facto, perante um impressionante “tour de force” de quatro actores. São eles Jason Isaacs, Martha Plimpton, Reed Birney e Ann Dowd. Os dois primeiros interpretam os pais de um jovem que foi morto durante um tiroteio numa escola; os segundos surgem como os pais do autor do crime — reunem-se seis anos depois da tragédia, tendo como único cenário a igreja onde existe, precisamente, uma sala disponível para encontros relacionados com problemas emocionais do foro íntimo dos participantes.


Tendo em conta que vivemos um tempo em que há toda uma ideologia “purificadora” que trata as relações humanas como mecanismos transparentes e facilmente descritíveis (por exemplo, em certas rubricas de “talk shows” televisivos), importa sublinhar que Mass-Reunião nada tem que ver com tais dispositivos. A perturbação inerente ao passado que as personagens evocam não desemboca, de modo algum, numa qualquer “lição” ou “tese” sobre os casos “semelhantes” que têm pontuado a história social dos EUA nas últimas décadas, aliás com ecos importantes no cinema (lembremos Bowling for Columbine, de Michael Moore, e Elephant, de Gus Van Sant, respectivamente de 2002 e 2003).
Nesta perspectiva, a singularidade cinematográfica de Mass-Reunião não decorre apenas (nem sobretudo) da perturbação inerente aos respectivos ecos sociais, mas sim do modo como os seus “temas” são objecto de um sofisticado tratamento do espaço e do tempo, dos diálogos e seus silêncios. Há muito tempo que não víamos um filme que evocasse de modo tão particular (e tão talentoso) o teatro e o cinema de David Mamet — sem esquecer que Fran Kranz é também autor do argumento.
O que aqui mais conta é esse poder (único, a meu ver) que pode fazer do cinema uma montra da pluralidade das emoções humanas, mesmos as mais devastadoras, expondo-as através de gestos, olhares e palavras que pesam como acontecimentos irredutíveis e irrepetíveis. Da crueza obscena da morte até à hipótese divina do perdão, Mass-Reunião devolve-nos o cinema como linguagem de um fascínio sem equivalente.

>>> Sundance: conversa com os actores e o realizador de Mass.

quarta-feira, abril 20, 2022

Na intimidade de Susan Sontag

Uma memória de 1962: Anna Karina em Viver a Sua Vida

Com Susan Sontag aprendemos que escrever ou filmar são formas de enfrentar a infinita complexidade da vida íntima, por vezes podem ser actos de renascimento — este texto foi publicado no Diário de Notícias (3 abril).

Como falar da intimidade? Como escrever nela e sobre ela? Como olhar e respeitar a sua infinita complexidade? Como mostrá-la? Como filmá-la?
Num texto de 1964 sobre o filme Vivre sa Vie (1962), de Jean-Luc Godard — estreado em Portugal, em 1973, como Viver a sua Vida —, Susan Sontag celebrava as aventuras narrativas de Godard como “um método de exposição genuinamente novo”. Que faz esse método? Expõe algo que aconteceu: deparamos com uma série de capítulos (“Um filme em doze quadros”, diz o subtítulo) sobre o caminho trágico de Nana, prostituta de Paris interpretada por Anna Karina, então casada com Godard. Como escreve Sontag: “Mostra que algo aconteceu, não por que aconteceu. Expõe a inexorabilidade de um acontecimento.”
O texto está incluindo na colectânea Contra a Interpretação e Outros Ensaios (Gótica, 2004, tradução de José Lima), remetendo-nos para a fronteira de um período da vida de Sontag cujos sinais podemos agora encontrar num livro fascinante intitulado Renascer (Quetzal, 2022, tradução de Nuno Guerreiro Josué). O subtítulo de Renascer esclarece essa cronologia: “Diários e apontamentos, 1947-1963”.
Valerá a pena referir que assistimos, de facto, ao processo multifacetado e convulsivo de construção de uma personalidade — aconteceu, diria ela. Afinal de contas, as primeiras notas são de 23 de novembro de 1947: Sontag nasceu em Nova Iorque a 16 de janeiro de 1933, o que quer dizer que tinha, nessa altura, 14 anos.
Corrijo. Será precipitado e, mais do que isso, simplista considerar que Sontag nos relata a “construção” da sua identidade. Decididamente, esta não é, nem poderia ser, uma narrativa cuja autora se assume como “proprietária” do seu destino, à maneira dos telefilmes que apresentam os seus heróis ou heroínas como seres que se limitam a “ilustrar” um futuro redentor que nós, espectadores, já conhecemos.
No plano simbólico, Sontag vive, morre e renasce através da própria escrita. A justificação para o título do livro surge numa nota de 31 de maio de 1949 em que fala da sua companheira: “A Irene esteve muito perto de me destruir — cristalizando o incipiente sentimento de culpa que sempre tive em relação ao meu lesbianismo, fazendo-me sentir repulsiva perante mim própria. Agora sei a verdade — sei o quanto amar é bom e legítimo — foi-me, de certa forma, dada autorização para viver. Tudo começa a partir de agora — Renasci.”
Sem esquecer que, no limite, este nem sequer pode ser descrito como “um livro de” Susan Sontag. Na verdade, as notas soltas que aqui encontramos resultam de um trabalho de selecção, organização e anotação da responsabilidade de David Rieff, filho de Sontag. Diz ele no prefácio: “No que me diz respeito, ela tinha um direito absoluto de morrer como desejasse. À medida que lutava pela vida, ela não devia nada à posteridade, e muito menos a mim. Mas, obviamente, a sua decisão teve consequências não intencionais — sendo aqui a mais importante o facto de ter passado para mim a decisão de como publicar os escritos que ela deixou para trás.”
Por vezes, sentimos mesmo que as palavras de Sontag nos colocam perante esse assombramento, terno e cruel, inerente ao labor de um grande escritor (ou um grande cineasta). Que é como quem diz: será que queremos entrar no território que para nós se abriu? Somos leitores ou intrusos daquela intimidade? Diz ela, por exemplo, em nota de 8 de agosto de 1960: “Amar é doloroso. É como se nos oferecêssemos para ser esfolados, sabendo que a outra pessoa pode ir-se embora a qualquer momento com a nossa pele.” Mais tarde, a 23 de abril de 1961, isto é relançado de forma escatológica: “O problema das emoções geralmente tem que ver com o seu escoamento. A vida emocional é um complexo sistema de esgotos.”
Tendo em conta que este é um livro de notas escritas até aos 30 anos, importará reconhecer também que não o podemos resumir como um esboço de auto-retrato (Sontag faleceu com 71 anos, a 28 de dezembro de 2004, na sua cidade natal, vítima de síndrome mielodisplásica, uma forma de cancro sanguíneo). Fica, em todo o caso, a herança de uma exigência de escrita que resiste, ponto por ponto, à futilidade, seja privada ou familiar, seja pública e mediática. Ou como está escrito num apontamento de 7 de janeiro de 1958: “A seriedade é realmente para mim uma virtude, uma das poucas que aceito existencialmente e aceitarei emocionalmente. Adoro ser alegre e descuidada, mas isso só tem significado contra um pano de fundo imperativo de seriedade.”

segunda-feira, abril 18, 2022

#StandUpForUkraine: Annie Lennox

A campanha #StandUpForUkraine tem mobilizado também muitas vozes do mundo do entertainment e, em particular, do meio musical — eis a contribuição de Annie Lennox, cantando Here Comes the Rain Again, tema do álbum Touch (1983), dos Eurythmics.
 

Eunice Muñoz (1928 - 2022)

Camões (1946), de Leitão de Barros

Eunice Muñoz, personalidade e símbolo ímpar da história do teatro em Portugal, faleceu no dia 15 de abril, contava 93 anos. A sua herança passa também pelo cinema e muitas produções televisivas, mas, neste momento, talvez seja especialmente pertinente sublinhar essa sua identidade vivida, configurada e reinventada, antes do mais, através dos palcos — através dos limites e sobressaltos do próprio meio, a sua herança organiza-se em torno de um inabalável amor pela arte de representar.

>>> Trailer de Manhã Submersa (1980), de Lauro António + video da agência Lusa (15 abril).




>>> Eunice Muñoz: obituário e perfil biográfico [Diário de Notícias].
>>> Nota biográfica [Instituto Camões].

sexta-feira, abril 15, 2022

SOUND + VISION Magazine / FNAC
— Livros & etc. [hoje, 16 abril]

Jean-Pierre Léaud
Beijos Roubados (1968), de François Truffaut

O nosso Magazine está de volta à FNAC: antecipando o Dia Mundial do Livro, queremos celebrar o gosto da leitura, sem esquecer as suas derivações musicais e cinematográficas — são 'Livros de ver e ouvir'.

>>> FNAC / Chiado, hoje, 16 de abril (17h00).

quinta-feira, abril 14, 2022

Cronenberg em Cannes & etc.

David Cronenberg, os irmãos Dardenne e Hirokazu Kore-eda são alguns habitués que vão reaparecer na selecção oficial de Cannes/2022 (17-28 maio)... sem esquecer Jerzy Skolimowski, Baz Luhrmann ou Marco Bellocchio (os dois últimos fora de competição). A lista de títulos (ainda incompleta) pode ser consultada no site do festival. Para já, este é o trailer francês de Crimes of the Future, by Cronenberg.

segunda-feira, abril 11, 2022

Pathos Ethos Logos estreia dia 14

A. Por onde começar? Talvez dizendo apenas que Pathos Ethos Logos, de Joaquim Pinto / Nuno Leonel, é um experiência radical, capaz de interrogar as raízes da nossa relação com o cinema. Ou melhor: dos modos de ver e pensar um filme.

B. Eis uma aventura em três partes, seguindo três mulheres que se transfiguram como personagens, atraindo e, de alguma maneira, gerando outras personagens cujos graus de existência podem oscilar entre a evidência carnal e a transcendência religiosa — a ponto de evidência e transcendência se revelarem como entidades em permanente contaminação.

C. Passado e futuro, história e filosofia da história, Portugal e o mundo, tudo desagua no fascinante caudal de Pathos Ethos Logos, afinal celebrando o cinema como uma forma de existir — para quem filma, para quem descobre aquilo que outros filmaram.


>>> Pathos Ethos Logos estará em exibição no cinema Ideal, a partir do dia 14 de abril.

A IMAGEM: Stuart Franklin, 2022

STUART FRANKLIN / Magnum
Refugiados ucranianos a caminho da Roménia
28 fevereiro 2022

sábado, abril 09, 2022

O Tarzan de Johnny Weissmuller
celebra 90 anos

Maureen O'Sullivan e Johnny Weissmuller:
cartaz original de Tarzan, o Homem Macaco (1932)

Foi a 2 de abril de 1932 que ocorreu a estreia de Tarzan, o Homem Macaco, com o campeão de natação Johnny Weissmuller a interpretar o herói criado por Edgar Rice Burroughs — este texto foi publicado no Diário de Notícias (2 abril).

Foi há 110 anos, portanto em 1912, que surgiu, publicado em fascículos, Tarzan of the Apes, primeiro romance de Tarzan assinado por Edgar Rice Burroughs (1875-1950). Mas há um outro aniversário do “Homem Macaco” que importa assinalar. Assim, há 90 anos — mais precisamente, no dia 2 de abril de 1932 — estreava-se nas salas dos EUA o filme Tarzan, the Ape Man, realizado por W. S. Van Dyke, primeiro dos 12 títulos protagonizados por Johnny Weissmuller (1904-1984); o último, Tarzan and the Mermaids/Tarzan e as Sereias, foi lançado em 1948.
Estreado em Portugal como Tarzan, o Homem Macaco (cerca de um ano mais tarde), este é um filme que exemplifica bem a importância industrial, comercial e mitológica do conceito de aventura na produção de Hollywood do começo da década de 1930. Vivia-se, de facto, uma fundamental revolução tecnológica — a passagem do mudo para o sonoro —, pontuada por muitas inovações temáticas e formais. A mais óbvia dessas inovações foi, obviamente, o género musical — para nos ficarmos por um exemplo sintomático, lembremos que 1932 é também o ano de lançamento de Girl Crazy, com coreografia do lendário Busby Berkeley.
A mitologia da personagem de Tarzan no cinema têm as suas raízes, como é óbvio, na obra de Burroughs: através das dezenas de histórias que escreveu, o seu herói (humano, criado por macacos) simboliza de forma exuberante a tensão carnal e moral entre Natureza e Civilização. No cinema, tal energia mitológica não pode ser dissociada do próprio Weissmuller, figura eminentemente popular graças aos muitos recordes de natação que estabelecera ao longo da década de 1920: em várias edições dos Jogos Olímpicos, ganhou seis medalhas (cinco de ouro e uma de bronze), tendo sido o primeiro nadador a percorrer os 100 metros livres em menos de um minuto.
Johnny Weissmuller numa foto promocional de 1932

Maureen O’Sullivan (1911-1998), intérprete de Jane, companheira de Tarzan, é outra imagem essencial deste universo durante o “reinado” de Weissmuller (participou em seis dos seus filmes). Num certo sentido, talvez se possa dizer que estes foram filmes capazes de conciliar duas componentes espectaculares, essenciais para o arranque da “idade de ouro” de Hollywood: a sedução dos pares românticos e a sugestão de que o cinema podia encenar aventuras muito para lá da experiência do comum dos humanos, epopeias realmente maiores que a vida.
Foram filmes que, além do mais, consolidaram o respectivo estúdio produtor, Metro Goldwyn Mayer, como uma das entidades fortes no interior do sistema de Hollywood. A MGM produziu os primeiros seis títulos com Weissmuller, tendo depois a respectiva “franchise” passado para a RKO Pictures.
Com alguma ironia, podemos mesmo considerar que a evolução do conceito de “filme de aventuras” vai pontuando todas as eras do cinema através, precisamente, das histórias de Tarzan. Assim, desde Tarzan of the Apes, dirigido por Scott Sidney em 1918, o “Homem Macaco” começou por ser um herói da produção muda. Ao longo das décadas, Lex Barker, Gordon Scott ou Christopher Lambert foram exemplos de actores que ganharam alguma fama graças à interpretação da personagem de Tarzan. Sem esquecer, no campo da animação, as respectivas variações, com destaque para Tarzan (1999), com chancela dos estúdios Disney. Em boa verdade, mesmo com grande impacto nas bilheteiras, nenhum deles terá conquistado a dimensão lendária de Johnny Weissmuller.

>>> Dois trailers: Tarzan, o Homem Macaco (1932), com Johnny Weissmuller, e Tarzan, o Magnífico (1960), com Gordon Scott.
 



>>> Johnny Weissmuller numa prova de natação, em 1925 (imagens: British Pathé).

sexta-feira, abril 08, 2022

David Fonseca: aventuras no tempo

"Um disco que é um filme, um filme que é um disco, um álbum visual."
Assim define David Fonseca o seu novo álbum, Living Room Bohemian Apocalypse, de que surgiu agora o primeiro tema: Chasing The Light. Não se trata apenas de um teledisco para "lançar" uma canção, mas do primeiro de sete objectos de fusão imagens/sons, a serem revelados nas próximas semanas, cumprindo o citado conceito de "álbum visual". O calendário é este:

— 7 abril: Chasing the Light.
— 22 abril: Live It Up.
— 6 maio: I Gotta Learn How To Let You Go.
— 20 maio: Love Me or Leave Me.
— 27 maio: In The Zone.
— 3 junho: Not You.
— 10 junho: Falling Out of Love.

A ambição é sedutora, até porque, com os seus quase 15 minutos de duração, o teledisco de Chasing The Light contraria as normas deste modelo de encenação, celebrando o tempo (ou melhor, a duração) como uma miragem que pode atrair um envolvente exercício de colagens — um acontecimento musical que é, afinal, uma bela curta-metragem.

quinta-feira, abril 07, 2022

A actualidade segundo o IMDb

[ 7 abril 2022 ]

... eis uma imagem a ter em conta.

Que filme ou filmes estão em preparação?
Quem os irá dirigir?
Algum deles será a continuação de algum outro filme?
Com novas personagens?
Retomando alguma história mais antiga?

Eis o tipo de perguntas com que o IMDb gosta de fabricar a actualidade cinematográfica.
Em boa verdade, o respectivo conceito de actualidade distingue-se pela sua monotonia: só existem filmes de super-heróis — o resto são incidentes sem importância.

>>> Tendo em conta que está é uma mensagem típica do tipo de informação que o IMDb vai colocando regularmente nas nossas caixas de e-mail, não será exagero dizer que tal mensagem surgiu, instantaneamente, nos computadores de muitos milhões de pessoas. O que justifica uma pergunta: quantos milhões entre esses milhões julgam que a actualidade cinematográfica se pode reduzir àquilo que o IMDb promove?

Patti Smith com Jools Holland

Não será preciso uma efeméride para justificar esta revisitação...
... mas se for, aqui vai: foi em abril de 2002 — faz agora 20 anos — que Patti Smith esteve no programa de Jools Holland, Later..., para cantar Because the Night.
Como se fosse hoje.
 

quarta-feira, abril 06, 2022

Para redescobrir as estações
do cinema de Eric Rohmer

Eric Rohmer durante a rodagem de "Conto de Inverno":
entre as imagens e as palavras

Um dos nomes grandes da história moderna do cinema francês está de volta às salas portuguesas: os “Contos das Quatro Estações”, de Eric Rohmer, podem ser vistos ou revistos em cópias restauradas — este texto foi publicado no Diário de Notícias (30 março).

O cinema de Eric Rohmer (1920-2010) continua a ter um lugar muito especial nas salas de cinema portuguesas. Depois dos ciclos dedicados aos seus “Contos Morais” e “Comédias e Provérbios”, respectivamente em julho e outubro de 2021, chegam agora os “Contos das Quatro Estações”, tal como os anteriores em cópias magnificamente restauradas — a partir de 31 de março, a começar pelo cinema Nimas (Lisboa) e o Teatro Campo Alegre (Porto), depois percorrendo várias salas do país.
De facto, vale a pena recordar que, ao longo das décadas, mesmo antes de 1974, Rohmer sempre foi uma presença regular no mercado português, aliás a par de outros emblemáticos autores da Nova Vaga francesa (Godard, Truffaut, Chabrol, etc.). Dir-se-ia que há uma dimensão intemporal do seu cinema, capaz de ir mobilizando novas gerações de espectadores. Tal poder é tanto mais paradoxal e fascinante quanto os seus filmes, mesmo possuindo a dimensão de elaboradas demonstrações filosóficas (contos morais, precisamente), nunca menosprezam as singularidades dos ambientes em que a acção decorre.
Nesta perspectiva, poderá dizer-se que entre as quase três dezenas de títulos que Rohmer realizou ao longo de meio século — entre La Sonate à Kreutzer (1956) e Os Amores de Astrea e Celadon (2007) — podemos encontrar muitas variações sobre a evolução dos “usos e costumes” na sociedade francesa da segunda metade do século XX. No caso dos “Contos das Quatro Estações”, rodados entre 1990 e 1998, isso é tanto mais sensível quanto, mais do que nunca, Rohmer aposta numa interrogação existencial, afinal contaminada por uma desconcertante ironia: como é que os ciclos da natureza pontuam, eventualmente influenciam, as relações humanas?

A luz e as cores

Curiosamente, os quatro títulos não foram rodados pela ordem cronológica das próprias estações. Rohmer começou por Conto da Primavera (1990) e Conto de Inverno (1992), interrompendo o ciclo para filmar A Árvore, o Presidente e a Videoteca (1993) e Os Encontros de Paris (1995); seguiram-se Conto de Verão (1996) e Conto de Outono (1998).
O ziguezague temporal acaba por ser revelador do pensamento inerente a este ciclo de filmes. Não se trata tanto de acompanhar as transfigurações visuais das estações, mas sim de encenar o tempo específico de cada uma delas — apetece dizer: a sua secreta respiração. No limite, poderá dizer-se também que cada uma dessas estações existe como uma personagem (cenográfica e anímica) que contamina as acções de todos os homens e mulheres cujos desejos Rohmer se afadiga a expor e, de algum modo, decompor.
Não admira, assim, que o tratamento da luz e das cores de cada uma das estações seja uma questão fulcral, sustentada, aliás, pela impecável direcção fotográfica de Luc Pagès, nos dois primeiros filmes, e Diane Baratier, nos dois últimos. Nada a ver, entenda-se, com qualquer lógica “decorativa”, muito menos banalmente “simbólica”. O que mais importa é a sensação ambígua dos elementos naturais, pontuando todos os gestos humanos, ao mesmo tempo que só parecem existir através da enigmática precisão desses mesmos gestos.
As personagens de Rohmer surgem sempre divididas entre a estranheza do que sentem, ou dizem sentir, e o desejo insensato de tudo reduzir a um racionalismo sem falhas. Lembremos a naturalidade com que, em Conto de Verão, Melvil Poupaud e Amanda Langlet caminham pela praia, com ele, com a precisão de um teorema matemático, a sistematizar a sua aritmética passional: “Como ninguém me ama, também não amo ninguém.”

Ser ou não ser

A dimensão filosófica, entenda-se, não tem nada de “tese” sobre a vida das personagens: é qualquer coisa que faz parte dessa vida. Ironicamente, ou talvez não, a personagem central de Conto da Primavera é mesmo uma professora de filosofia (Anne Teyssèdre) cujos diálogos com uma estudante de música vão virar do avesso todas as certezas que, supostamente, sustentavam a sua vida. Em Conto de Outono, numa ironia clássica, à beira da comédia de costumes — as amigas da jovem viúva (Béatrice Romand) querem “sugerir-lhe” um novo companheiro —, todos parecem equivocar-se através da ilusória transparência dos impulsos amorosos. Enfim, em Conto de Inverno, uma mulher (Charlotte Véry) vive a nostalgia de um amor que passou, como quem transporta um fantasma que os outros homens, afinal, repõem no seu quotidiano…
Num tempo (aqui e agora) em que as relações homens/mulheres surgem frequentemente contaminadas por estereótipos morais, políticos e mediáticos, Rohmer reabre-nos o espírito para a pluralidade das pessoas. Há nele a paciência criativa de quem parece estar “apenas” a olhar para o movimento das cores e das formas de cada estação do ano. Tudo isso acontece através de uma metódica observação dos lugares e um infatigável amor pela infinita riqueza das palavras. No cinema de Rohmer, falar está longe de ser uma mera troca de informações: falar implica o que somos, o que desejamos ser e, por fim, o que não sabemos que somos.

segunda-feira, abril 04, 2022

Ouistreham
— ser ou não ser jornalista

Juliette Binoche filmada por Emmanuel Carrère:
aventuras da subjectividade

O novo filme de Emmanuel Carrère, Ouistreham - Entre Dois Mundos, interroga-nos sobre o que seja dizer, escrever, filmar o mundo à nossa volta — este texto foi publicado no Diário de Notícias (27 março).

Vários domínios do jornalismo contemporâneo vivem assombrados pelo “síndrome Amanpour”. Foi, de facto, através do trabalho da inglesa Christiane Amanpour, na CNN Internacional, que a imagem do jornalista “em acção” num contexto perigoso (quase sempre um cenário de guerra) adquiriu o simbolismo perverso de uma identidade transcendental: se uma bomba rebenta atrás da repórter que fala para a câmara, então isso deve ser reconhecido como um suplemento de verdade…
A descrição é redutora, até porque omite o talento de Christiane Amanpour. A diversidade do seu trabalho e, em particular, o seu actual programa de entrevistas distingue-se por uma marca muito pessoal (o título é apenas: Amanpour.), marca de gosto e empenho em confrontar os seus interlocutores com questões sérias e complexas, evitando ceder ao infantilismo de supor que quanto mais rasteiras passar ao entrevistado melhor será o factor jornalístico — quando se passa uma rasteira alguém cai, é verdade, mas não acontece nada de interessante.
O que está em causa é a simplificação pueril do olhar, supostamente legitimada por uma determinada experiência-limite: define-se e, não poucas vezes, promove-se o jornalista como aquele que, microfone na mão, eventualmente envergando um colete à prova de bala, se distingue por surgir “sobreposto” a algum fundo em que se detecte ou pressinta um qualquer sinal de perigo ou violência. Claro que o jornalista pode até estar a arriscar a vida, mas no limite mais cruel do dispositivo em que está inserido surge apenas como uma derivação redundante do aparato do estúdio. O inevitável efeito prático (entenda-se: social) é a desqualificação do próprio labor jornalístico.
Neste contexto, não surpreende que o valor social do cinema esteja também muito desvalorizado. Ou, pior um pouco, empolado de modo caricatural: a dimensão social dos filmes passou a ser confundida com o cumprimento de quotas (de género, de raça, etc.), frequentemente reduzindo a infinita pluralidade da experiência humana a um amontoado determinista de personagens e comportamentos.
Recentemente lançado nas salas portuguesas, Ouistreham - Entre Dois Mundos, de Emmanuel Carrère, é um filme realmente fora de série — do meu ponto de vista, ficará mesmo como uma das grandes estreias de 2022 — que nos pode ajudar a repensar todas essas questões. Até porque não há nele nenhuma chantagem moralista sobre o que seja, ou possa ser, o jornalismo. Estamos perante o relato de uma experiência singular, porventura irrepetível, que nos recoloca perante uma interrogação vital: como dizer, escrever, filmar o mundo à nossa volta?
Há um “segredo” no filme de Carrère que me atrevo a desmontar por uma razão muito básica: está revelado em todas as suas formas de divulgação, a começar pelo trailer. Assim, começamos por conhecer a personagem central, interpretada por Juliette Binoche (de novo admirável), como uma mulher algo à deriva: chega à cidade de Ouistreham, na costa da Normandia, e consegue emprego como empregada de limpeza nos barcos que fazem a travessia do Canal da Mancha, a caminho do porto inglês de Portsmouth — em poucos minutos saberemos que ela é Marianne Winckler, jornalista e escritora que quer conhecer directamente aquelas condições de trabalho como matéria para um livro.
Inspirado num livro em que Florence Aubenas relatou a sua própria experiência de investigação, Ouistreham - Entre Dois Mundos é o contrário do novo-riquismo cultural que apresenta o jornalista como um anjo da guarda abençoado pelo dom de “transcrever” uma verdade universal que se confunde com uma revelação divina. Aqui, Marianne expõe-se como um olhar hesitante, um corpo que escreve, enfim, alguém que procura palavras que possam ecoar a experiência perturbante em que se envolveu — e tanto mais quanto a sua duplicidade vai abalar os laços de confiança que conseguiu estabelecer com as “colegas” de trabalho.
Estamos perante um objecto de cinema enraizado numa invulgar depuração dramática. Nenhum feminismo de “talk show”, nenhuma ideologia de santificação das “mulheres” e demonização dos “homens”: Ouistreham - Entre Dois Mundos é uma narrativa hiper-elaborada, alheia a qualquer formatação das identidades individuais e das relações humanas.
E não será necessário sublinhar o facto de Carrère ser, antes do mais, um romancista — autor, por exemplo, de O Adversário, transformado em filme, em 2002, sob a direcção de Nicole Garcia —, assinando aqui a sua segunda realização cinematográfica (estreou-se em 2005, com La Moustache/Amor Suspeito, também adaptado de um dos seus romances). Para ele, trata-se de usar o cinema como espelho e bisturi da arte de olhar o mundo à nossa volta, aqui confrontando o jornalismo com a subjectividade que, de modo mais ou menos consciente, o fundamenta.

domingo, abril 03, 2022

Joe Biden por Fareed Zakaria

Que faz a popularidade de um político?
Ou como é que essa popularidade se sustenta ou desagrega?
São as componentes específicas da sua gestão (política, precisamente)?
Ou serão os factores (positivos e negativos) da conjuntura global em que se exerce tal gestão?
Eis uma curiosa reflexão de Fareed Zakaria, na CNN Internacional, no seu programa GPS. A sua emissão ocorreu em meados de dezembro de 2021, portanto há pouco mais de três meses, mas a consistência dos argumentos utilizados continua a ser um bom pretexto de reflexão.
 

sexta-feira, abril 01, 2022

Jessica Chastain & Tammy Faye

Tammy Faye reinventada por Jessica Chastain:
um prodígio de representação

Centrado no notável trabalho de Jessica Chastain, Os Olhos de Tammy Faye evoca de modo subtil uma figura emblemática da história agitada das igrejas evangelistas dos EUA — este texto foi publicado no Diário de Notícias (24 março, três dias antes dos prémios da Academia de Hollywood), com o título 'Jessica Chastain a caminho do seu primeiro Oscar'.

Jessica Chastain
Num tempo de tão chocante desvalorização social do pensamento crítico, recordemos uma verdade rudimentar do campo cinematográfico: o trabalho do crítico, seja qual for o grau do seu talento, não se confunde com a pueril “adivinhação” do que quer que seja — a começar pelos possíveis vencedores dos próximos Oscars (na madrugada de domingo para segunda-feira, em Los Angeles).
O que não impede a suposição de que, graças à sua prodigiosa composição em Os Olhos de Tammy Faye (Disney+), Jessica Chastain irá arrebatar a estatueta dourada de melhor actriz. Não se trata de um palpite pessoal (irrelevante, para todos os efeitos), mas sim do resultado de diversas análises de jornalistas dos EUA — nomeadamente em The Hollywood Reporter e Variety, ou no site Gold Derby —, conhecedores directos das dinâmicas internas da indústria de Hollywood.
Jessica Chastain tem assim a terceira nomeação para um Oscar, depois de The Help/As Serviçais (2011), de Tate Taylor, neste caso como secundária, e Zero Dark Thirty/00:30 A Hora Negra (2012), de Kathryn Bigelow. Sem esquecer, claro, que a sua filmografia inclui títulos tão admiráveis como A Árvore da Vida (2011), de Terrence Malick, Miss Julie (2014), de Liv Ullmann, ou Jogo da Alta Roda (2017), de Aaron Sorkin.
Dir-se-ia que ela possui essa “duplicidade” dramática que, noutros tempos, distinguiu actrizes como Katharine Hepburn ou Bette Davis: uma clássica aura de estrela (com ela, a expressão “star power” volta a ter sentido) e uma invulgar, por vezes desarmante, capacidade de transfiguração que a faz escapar a qualquer estereotipo ou “imagem de marca”. Assim acontece a interpretar a personagem, nada óbvia, afinal misteriosa, de Tammy Faye (1942-2007).

Religião & televisão

No imaginário popular dos EUA, a figura de Tammy Faye surge como protagonista de um capítulo fulcral na história das igrejas evangelistas. É um capítulo visceralmente televisivo, uma vez que, com o seu marido Jim Bakker (interpretado pelo também magnífico Andrew Garfield), ela criou o programa The PTL Club, verdadeiro “talk show” de evangelização emitido ao longo de 14 temporadas, entre 1974 e 1989 (PTL: “Praise the Lord”, “Louvado seja Deus”).
A vida de Tammy Faye contém uma avalanche de elementos susceptíveis de transformar a respectiva evocação num rol de peripécias caricaturais ou num inventário dos escândalos a que, inevitavelmente, o seu nome surgiu associado. Primeiro, porque a exuberância e a lógica de “entertainment” das suas aparições públicas — foi também cantora, tendo gravado cerca de duas dezenas de álbuns — a definem como uma entidade “kitsch”, bizarra e desconcertante; depois, porque The PTL Club foi objecto de um inusitado desenvolvimento financeiro, incluindo a criação do Heritage USA (“parque temático cristão”, encerrado em 1989), numa teia de esquemas fraudulentos que levaram Jim Bakker à prisão.
Numa entrevista dada ao Gold Derby (disponível no YouTube), Abe Sylvia, responsável pelo extraordinário argumento de Os Olhos de Tammy Faye, define de forma exemplar uma regra de trabalho que, em boa verdade, contamina todos os aspectos do filme. A saber: a definição da personagem central através de um princípio de partilha de amor por todos os seus semelhantes. Isso não exclui que o seu enriquecimento tenha acontecido em paralelo com a acção do marido, mas também não a reduz a um ícone parado no tempo. Por vezes, a sua acção desafiou mesmo os preconceitos da sua igreja: recordando a adolescência em que escondeu a sua própria homossexualidade, Abe Sylvia evoca o afecto de Tammy Faye pela comunidade gay, aliás explicitado numa lendária entrevista televisiva, em meados da década de 80, com Steve Pieters, homossexual, pastor cristão, atingido pela sida.

Michael Showalter
Uma escrita realista

Surpreendente em tudo isto é o misto de contenção e contundência da realização de Michael Showalter, ele cuja carreira tem passado sobretudo pela televisão, com algumas derivações cinematográficas, incluindo a curiosa comédia romântica Amor de Improviso (2017). Os Olhos de Tammy Faye possui, aliás, as qualidades de um modelo de biografia em que a cuidada contextualização histórica das personagens e da sua acção — lembrando, por exemplo, o papel dos evangelistas na eleição de Ronald Reagan — evita sempre a sua redução a “símbolos” parados no tempo. Abe Sylvia diz isso mesmo, lembrando como era importante que as personagens não surgissem “como se já conhecessem o seu lugar na história”.
A composição de Tammy Faye por Jessica Chastain é tanto mais complexa quanto o filme contorna todas as possibilidades de determinismo dramático, resistindo a qualquer demonização da personagem, mas também recusando tratá-la como expressão de uma inocência desligada dos factos e da época da sua história. Nesta perspectiva, creio que importa não confundir as suas componentes teatrais com a escrita do próprio filme: Os Olhos de Tammy Faye é um objecto de um realismo intransigente e, afinal, fora de moda.